Sobre portais e canecas de vinho

Quando deixara Jade no começo da manhã para se dirigir com Eric para checar um possível meio de transporte para São Paulo, Oliver sentiu-se culpado. Sabia que seja lá o que Eric planejava envolvia passar pelo Sesc de Fortaleza. Justo no dia que estaria acontecendo uma mega convenção de anime e seriados. Ele se sentia culpado por querer acompanhar o amigo sabendo de tudo isso. Porque no fundo apesar de já ter vivido muitas aventuras Oliver ainda era um moleque fã de animes, quadrinhos e coisas do gênero. Era um geek de 16 anos, com um cartão de crédito em boas condições e uma brecha na agenda para se desligar de homens de preto e deuses antigos. Mas o maior motivo para se sentir culpado é que ele queria mesmo ir.

Eric e Oliver levaram pouco tempo para chegar à convenção. A fila, mais que característica desses eventos, já tinha dado a volta no quarteirão. Mas Eric, que vestia uma camiseta regata preta com o símbolo da “corporação cápsula” de dragon ball, passou direto por ela, segundo pela rua. Passou também pelo portão do evento, onde seguranças suavam dentro de ternos escuros e baratos. Oliver não entendia nada, mas a amizade com Eric era uma relação de muita confiança e poucas perguntas. Desceu pela rua Padre Mororó, ignorando um grupo fantasiado de Vingadores que tirava fotos com turistas japoneses, virando em seguida na avenida Duque de Caxias. Ele parou em frente a outro prédio do Sesc e examinou a fachada do prédio em busca de alguma coisa. Ele olhou fixamente para ela, procurando algo até que seu olhar foi guiado na direção de uma bela menina vestida como a Tomb Raider clássica. Ele sorriu sem jeito ao perceber a careta de desaprovação de Oliver (embora ele mesmo tenha desviado discretamente o olhar para ver as pernas da menina) e depois apontou para uma placa metálica com a face estilizada de Hermes que dizia “Fecomércio: sesc-senac-ipdc”.

– É para lá que vamos. – disse, adiantando-se na rampa que dava acesso a escura porta de blindex. Ele parou na frente da porta, onde se lia uma plaquinha “fechado para reformas, favor contatar a sede na Rua Bóris 90”. Não que isso o detivesse. Ele colocou a mão sobre a estrutura de vidro e a porta deslizou para o lado como se fosse uma porta japonesa.

– O rei das fechaduras apronta novamente – comentou Oliver sorrindo.

– É... nem todo mundo tem o poder de uma estrela supernova na ponta dos dedos. – disse Eric dando uma piscadela e adentrando ao recinto. – Alguns de nós tem de ser mais sutis.

A sala era uma recepção larga e espaçosa. Existia uma mesa de recepção moderna, feita em MDF perolado, vermelho e branco, e por trás dela uma ninfa fazendo trabalho de escritório. Logo atrás dela um grande telão de LCD mostrava a programação de TV local e imagens de câmeras de segurança do prédio, além de números de senha chamados ou a serem chamados.

Eric foi até a máquina de senhas e apertou o botão. Pegou a senha e sentou-se numa das cadeiras da sala. Mal deu tempo de sentir a falta de maciez da cadeira de escritório quando sua senha foi chamada.

– Bom dia – disse a recepcionista. Ela vestia uma longa toga grega esvoaçante, cabelos castanhos presos num coque tradicional. Tinha também um headset sem fio com o qual conversara até a pouco com alguém. Sua voz era doce, e carregada pelo delicioso sotaque nordestino. – Em que posso ajudar?

– Bom dia – respondeu Eric – Gostaria de saber com quem eu posso falar para obter liberação total nas instalações?

– Liberação total? – a moça espantou-se – o senhor tem certeza de que veio ao lugar certo?

– Tenho – disse Eric pousando na mesa um dracma de ouro. O seu dracma de ouro, com a face de Hermes de um dos lados e uma roda dos ventos do outro. A moeda que seu pai lhe dera e que vinha servindo de guia por muito tempo.

A ninfa pegou a moeda nas mãos e começou a tremer discretamente. Ela devolveu a moeda a Eric e chamou por alguém no headset. Poucos segundos depois um ciclope do tamanho de um homem adulto, vestindo roupas de segurança paramilitar particular cor de caqui, entrou na sala. Ela comentou rapidamente a situação com ele num grego carregado de sotaque nordestino e o ciclope sorriu. Ele estendeu a mão na direção de Eric e comentou animadamente:

– Olá senhor! Eu sou Evandro Palanteu, chefe de segurança da Unidade Fortaleza do Fecomércio: sesc-senac-ipdc. – por um momento Oliver ficou em dúvida se a criatura bateria continência ou se cumprimentaria Eric. O menino, no entanto, reservou-se a sorrir, cheio de elegância, dando a mão para o ciclope num aperto firme.

– Prazer em conhecê-lo chefe Palanteu. Como sua recepcionista deve ter lhe avisado eu preciso de acesso irrestrito a todas as instalações do Sesc. E preciso disso o quanto antes.

– O senhor pode me chamar só de Evandro. Deixe das formalidades de chefe de segurança de lado. – O gigante apressou-se em retribuir o aperto de mão e olhou de soslaio para Oliver. – se me permite dizer, o senhor se parece muito mais com a sua mãe do que com o senhor seu pai.

Só então a ficha de Oliver caiu. Eric era o filho de Hermes. Deus da eloquência, da hermenêutica, das comunicações e viagens, do comércio, da ginástica, da astronomia, da magia, dos ladrões, dos diplomatas e de algumas outras formas e coisas que Oliver nem desconfiava. E o Sesc era Serviço Social do Comércio. Era como se cada prédio do Sesc, Senac, Fecomércio, Correios e ainda mais coisas fosse um templo de Hermes. Até mesmo o símbolo do Sesc era a figura estilizada de Hermes com o tradicional chapéu com asas. Mas toda aquela cortesia parece que se dava muito mais em consideração do peso da moeda do que da figura de Eric em si.

Eric forçou um sorriso. Falar da mãe inevitavelmente trouxe lembranças ruins. Ele largou a mão do gigante e continuou:

– Obrigado, Evandro. E quanto ao meu pedido? Pode ser feito?

– Normalmente não... – disse o gigante com um tom pesaroso – mas no seu caso vamos abrir uma exceção. Acho que é a primeira exceção que abrimos desde 1950. – o gigante continuou a detalhar dados e itens de segurança enquanto guiava os meninos pelo interior do prédio. Pararam numa porta de ferro, de um tom empalidecido de vermelho, onde se lia “segurança” pintada em letras garrafais douradas. O gigante abriu a porta revelando uma moderna sala de monitoramento. Ele atravessou toda a sua extensão até chegar num pequeno armário forrado de chaves. Mexeu um pouco nos inúmeros molhos e tirou uma pequena chave simples de bronze. Olhou a chave contra a luz como se inspecionasse a sua pureza e a entregou em seguida para Eric.

– Aqui está. Esta chave abre todas as portas de todos os Sesc do Brasil. Ela também serve como crachá: não queremos que ninguém confunda ao senhor como se fosse um penetra qualquer.

– Obrigado. Afinal eu não sou mesmo um penetra qualquer. – disse o garoto colocando a chave num cordão e colocando o cordão no pescoço. – Só mais uma coisa: pode me mostrar o corredor das viagens?

O gigante olhou para Oliver novamente, dessa vez com alguma preocupação. Ele estava pronto a dizer alguma coisa quando Eric pôs a mão no seu ombro, tentando tranquilizá-lo.

– Não se preocupe Evandro. Oliver é um amigo. Mais que isso é quase um irmão. A mesma cordialidade que você estende a mim pode estender a ele.

– Se o senhor diz – disse o gigante ainda não muito convencido.

– Vamos. Tem um corredor para nos mostrar, não tem?

A BMW preta de vidros espelhados desceu pela avenida Desembargador Moreira, sempre movimentada a qualquer horário, chamando a atenção de quem por ela passava. Parou na frente da sede da TV Verdes Mares. O motorista apressou-se para descer e abrir a porta. Eduardo Albuquerque desceu vestindo uma calça social marrom e uma camisa gola polo lacoste branca. Ele sorriu para o motorista.

– Adorei seu serviço. – disse o semideus deslizando o dedo pela tela do seu iphone – vou colocar um bônus aqui de gorjeta.

– O senhor é muito gentil – disse o motorista, genuinamente agradecido – se um dia precisar dos meus serviços novamente é só chamar.

– Pode deixar. – disse o semideus dando um discreto tchau com os dedos enquanto o a BMW desaparecia no transito. Eduardo esperou o carro se afastar um pouco mais para poder entrar na recepção da TV Verdes Mares. Era impressionante como uma sede tão pequena pudesse esconder uma estrutura televisiva tão poderosa. Era um prédio baixo, que se espalhava com arquitetura moderna e angular, típica dos anos setenta, por todo o quarteirão. Mas isso era o que a névoa mostrava. Eduardo podia ver a enorme torre que crescia em espiral em volta da enorme antena de transmissão.

Ele entrou sendo acossado pelo delicioso sopro do ar condicionado. Na recepção uma mocinha negra, enfiada um terninho executivo, sorriu ao vê-lo. Todos no Ceará eram muito educados e simpáticos. Ele sentia falta disso quando viajava para outros lugares.

– Em que posso ajudar? – disse ela solícita.

– Eu tenho hora marcada com Dona Partenope. Eduardo Albuquerque.

A mocinha verificou na agenda do seu computador e confirmou as informações. Ela sorriu novamente.

– O senhor está sendo esperado. No final do corredor, ao lado da máquina de soft drinks, o senhor pode pegar o elevador executivo. Basta apertar o botão escrito “cobertura”.

Eduardo fez como solicitado e em pouco tempo estava dentro do elevador. Dentro tocava uma musiquinha chata, um concerto de harpas. Tão chato que ele quase cochilou. O elevador levou cerca de cinco minutos em subida constante para chegar até o lugar escolhido: a cobertura.

Luxuoso seria pouco para descrever o lugar. Por onde começar? Pelo piso de mármore Carrara finamente encaixado com frisos de platina? Pelas colunas no estilo greco-romano, adornadas laços de ouro puro? Pelo enorme salão circular cercado por janelas quase invisíveis que davam uma privilegiada visão de toda cidade de Fortaleza, centenas de metros abaixo? Pelas maravilhosas tapeçarias que amaciavam ao toque dos pés? Pela fonte de água salgada que brotava da boca de uma imagem em tamanho natural de Posseidon, o rei dos mares, enchendo o ar de atmosfera convidativa? Nenhuma palavra parecia boa o bastante. Não que Eduardo desconhecesse o lugar. Ele já tinha estado aqui antes. Muito tempo atrás.

Num canto ele divisou a pessoa que buscava. Partenope de Anceu. O nome fazia jus à sua aparência. Do grego Partenópe: “que tem o rosto de uma menina”. Era uma mulher alta e muito bonita, corpo bem feito, longos cabelos escuros que pareciam estar sempre molhados. Mas seu rosto era de menina, de moça jovem, olhos incendiando paixão. Ela vestia uma saia executiva pouco abaixo dos joelhos, uma camisa social carmesin e um pequeno blazer por cima de tudo. Estava descalça. Ao ver Eduardo ela estendeu a mão, fazendo sinal para que se aproximasse. Uma lufada de vento trouxe até ele o perfume dela e inadvertidamente seu coração acelerou.

Ela tirou o blazer e desabotoou a camisa deixando ambos no chão como uma trilha de migalhas de pão que guiariam João e Maria para saírem da floresta. Quando ela entrou na piscina formada pela água salgada da fonte, revelou sua verdadeira forma. As pernas converteram-se em linda cauda de peixe com escamas prateadas e os olhos assumiram a cor verde esmeralda brilhante, característica indelével das cores do mar de Fortaleza.

Ela suspirou apontando para uma jarra de vinho, pousada sobre uma travessa de prata, onde duas taças de ouro esperavam para serem cheios. Eduardo foi até lá e pegou jarra, servindo ambos os copos. Entregou uma taça a Partenope e depois tirou a camisa e a calça, ficando apenas de cuecas boxer. Logo depois ele entrou na água.

– Você demorou para voltar – disse ela com a voz cheia de dengo. Ela nem precisava usar o famoso canto da sereia para derreter o coração de qualquer um.

– Como foi que você disse da última vez que estive aqui? “O tempo não importa nada para mim”. – disse Eduardo pousando o cálice de vinho na lateral da fonte.

– Não seja cruel. – disse ela aproximando-se – Sabe que eu não disse por mal. Não pode culpar uma mulher pelo que ela diz quando está irritada... como é que diz aquela musiquinha irritante dos Raimundos? “mulher de fases”...

– É... mas e quando a mulher de fases joga a gente de um prédio invisível com centenas de metros de altura? – o sarcasmo e a ironia foram tão evidentes dessa vez que Partenope sentou-se ereta, deixando a taça de vinho de lado.

– Mas você sobreviveu. Vocês semideuses sempre sobrevivem. – parecia haver um traço de tristeza na sua voz.

– Demigods don’t die easy. Você deve saber que não vim para lutar e nem para desafiar você. Lá no fundo você deve saber também que não vim aqui para reatar qualquer coisa que você acha que eu e você tivemos quase vinte anos atrás. Eu vim pedir um favor.

As pernas de Partenope voltaram a ser humanas e ela se levantou da água. Foi até uma mesinha lateral e pegou dela uma toalha branca, que parecia ter a mesma fofura das nuvens. Enquanto secava-se, caminhou seguindo a trilha de roupas, recolhendo-as do chão e vestindo-as com graciosidade.

– Vamos até o meu escritório, se é de negócios que você veio tratar.

Quando a porta se abriu não era bem o que Oliver esperava. Era um corredor mais ou menos apertado, apinhado com portas ao longo de todo o seu comprimento. Parecia haver mais de cem portas, uma ao lado da outra. Todas eram mais ou menos parecidas umas com as outras. Mas ao olhar com atenção o menino perceber que cada um tinha um pequeno nome gravado nela. Uma pequena etiqueta metálica com um nome endereço. Numa delas leu “Rua Clélia, 93 - Barra Funda, São Paulo”.

– Boa cara. Essa parece ser uma porta tão boa como qualquer outra. – Eric tirou a chave do pescoço e, sob a atenta supervisão de Evandro, a posicionou na fechadura. A porta se abriu revelando um corredor movimentado. Lá fora podiam ouvir o barulho da chuva. Evandro fechou a porta atrás dele.

– Aqui estamos senhor. Sesc Pompéia. São Paulo. A hora local é 14:44. – disse o gigante de um olho só em tom solene.

– Mas quando entramos no prédio em Fortaleza pouco passava de uma da tarde. Levamos pouco mais de uma hora para percorrer quase 3 mil quilômetros? Que maravilha cara! Podemos trazer todo mundo por aqui quase que instantaneamente! Por que você não avisou que poderia fazer isso?

– Eu não sabia que podia. Meu pai me avisou faz pouco tempo. Visitou-me em sonhos. Mas tem um porém. Só posso fazer duas viagens por dia. Quando voltarmos à Fortaleza será no mínimo umas três da tarde. E depois teremos que esperar pelo menos 24 horas de novo para usar o corredor. Podemos curtir um pouco em Sampa antes de voltar... o que me diz?

Oliver parou e ponderou um pouco. Então ele puxou o celular-tablet-torradeira e mostrou para Eric uma foto da Tomb Raider cover vista por trás, num ângulo bastante avantajado e pouco lisonjeiro...

– Seu safado! Será que ela ainda está na convenção? Para os batcorredores espaciais!

– Entendo... – disse Partenope tamborilando os dedos impacientemente enquanto ouvia o relato de Eduardo sobre a mais nova crise do Olimpo. A crise daria uma boa reportagem. Já imaginava mandar equipes para todo o Brasil em busca de como os semideuses estavam reagindo a todas aquelas mudanças. Conseguiria uma entrevista com Apolo? Uma exclusiva, bem no jornal do meio dia...

– Então, é imperativo que aquele seu bode metido a comentarista policial, o Genânion Katsíka, pare de perseguir meu sobrinho e seus amigos.

– Claro... mas com uma condição... se você me disser como sobreviveu à queda daqui de cima, quando eu te joguei pela janela.

Eduardo levantou-se, foi até um mapa mundi em forma de globo e o abriu, revelando no seu interior algumas cervejas. Recostou-se na cadeira, colocou os pés sobre a mesa de Partenope e começou a contar a hiiistória...

– Você se lembra que naquele tempo eu andava com uma galera da pesada...