De volta à estrada

Jade entrou instintivamente em posição de defesa. Estava desarmada, longe do seu ápice físico, mas nunca dera as costas para amigos em necessidade. Se Apolo ainda achava que ela era uma ameaça que seus lacaios viessem reclamar a sua vida: ela não entregaria com facilidade.

Os três gigantes olharam entre si, confusos. Ao que parece a última coisa que esperavam de um mortal quando apareciam na sua frente era uma posição de luta. A senhora de vestes orientais deu um passo a frente. Ela reduziu de tamanho até ficar do tamanho de uma pessoa normal, seu brilho diminuindo até quase sumir. Sua voz saiu doce e melodiosa, como a de uma jovem e dedicada mãe que tenta acalmar e ninar seu filho:

– Jade-san, não tenha medo. Não viemos fazer mal algum a você. Precisamos conversar. O tempo urge e temo não haver um momento adequado para apresentações formais. Eu sou Amaterasu, a Grande Deusa Augusta que Ilumina os Céus. Ao meu lado estão Hórus, o deus falcão solar, o rei dos vivos e senhor do Sol e o avatar de Balder, o deus divino dos céus.

Se antes os deuses estavam confusos agora era a vez de Jade que não estava entendendo nada. Que ela soubesse havia apenas um deus do sol: seu pai, Apolo para os gregos e Febo para os romanos. Ela já tinha ouvido falar de outras mitologias, mas jamais pensou que pudessem existir de verdade. Mas pensando bem, por que não? O mundo oculto pela névoa era muito mais largo e vasto do que poderiam supor os mortais. Se não estivesse com tanta pressa e com tanta coisa acontecendo na sua vida ela adoraria sentar com os três e conversar longamente sobre deuses de panteões diferentes e coisas assim. Será que todos eles dividiam a biga de Apolo para cavalgar pelo firmamento?

O homem falcão deu um passo a frente ficando do tamanho de Jade. A sua cabeça tornou-se humana, coma exceção de seus olhos: cada um de uma cor, uma representando o dia e o outro representando a noite. Ele vestia um conjunto camiseta branca com o escudo da seleção egípcia de futebol e calça de moleton verde.

– Cada um de nós somos deuses do sol. Assim como o seu pai. Somos aspectos, representações da mesma coisa. Esta é a forma como nós, deuses, podemos interagir com humanos. Suas mentes simplórias e primitivas não são capazes sequer de compreender a ideia da nossa existência. – a sua voz era carregada de um forte sotaque árabe – Por isso manifestamos aspectos divinos, baseados na cultura mortal, para que vocês possam nos entender.

A ênfase no entender deu a Jade a impressão que o homem falcão queria dizer adorar ou obedecer, mas preferiu guardar essa opinião para si mesma. A valquíria deu um passo a frente e falou com a voz de homem:

– Eu sou o representante de Balder, Villum, e falo com sua voz na terra dos mortais enquanto os dias do Ragnarok não chegam e meu senhor não possa abandonar seu salão no reino Helgardh para lutar ao lado dos deuses novamente. Como afirmou sabiamente Hórus, existe um arquétipo divino para que os deuses possam ser entendidos pelos mortais. Todos nós somos reflexos desse arquétipo criador. Todos somos Tiferet. Todos somos a beleza, a arte, o esplendor do brilho. Somos todos o sol.

– Quer dizer que esse Tiferet é o verdadeiro deus do sol? – a pergunta de Jade saiu sem querer e só depois que a última palavra escapou de sua boca é que ela se arrependeu de verdade. Estava passando tempo demais com Oliver e Eric. Estava agindo feito eles.

– Eu disse que as mentes dos humanos são simplistas demais. E olha que essa daí tem o sangue dos deuses correndo nas veias. Vou dizer, se não fosse tão importante eu não... – Hórus calou-se perante o gesto apaziguador de Amaterasu. Ele ainda olhou para Jade, o olhar carregado de desprezo sendo aos poucos substituído pelo olhar de pena.

– Não pequena. – Villum adiantou-se – Existe uma série de forças criativas e criadoras do universo. A simples idéia dessas forças é complexa demais para a mente do ser humano. Seria como pedir que uma formiga entendesse de equações biquadradas do segundo grau. – por um momento Jade se viu de volta à escola, mas com a aparência de uma formiga com chapéu de burro. Equações biquadradas eram criação dos inimigos dos deuses e destruidores da humanidade. Só podia ser, já que ela não entendia nada daquilo. Villun continuou, pacientemente – Essas forças se organizam em dez arquétipos: Keter, Hochma, Binah, Hesed, Giburah, Tiferet, Netzach, Hod, Yesod, e Malkuth, conhecidos em seu conjunto como Kabbalah. Todos nós somos aspectos do arquétipo de Tiferet. É como se fôssemos representações diferentes, faces diferentes da mesma coisa.

Jade assentiu. Parecia estar entendendo finalmente.

– Quando Zeus foi aprisionado a sua presença foi extirpada do multiverso. Quando isso aconteceu, o arquétipo de Hesed, o aspecto arquetípico do chefe do panteão foi ameaçado. Todos os deuses, mesmo aqueles que não sabem disso, precisam que Zeus seja libertado para que o equilíbrio volte à Kababalah. Você faz parte da profecia que promete libertar Zeus. Mas sem sua centelha divina, aquela que Apolo tomou de você, não existe esperança para o Olimpo. Sem ela você não é uma semideusa completa e não pode completar sua parte na profecia.

Antes que Jade pudesse dizer ou pensar em algo tinha sido interrompida novamente.

– É por isso que estamos aqui. Cada um de nós está disposto a adotá-la como filha. Sendo assim, com a nossa centelha divina você pode ajudar seus amigos a cumprir o seu destino. – Hórus falou coçando o queixo com uma das mãos ainda convertida numa garra de falcão. Você pode escolher qualquer um de nós. Você ganhará novos poderes para substituir aqueles que lhe foram tomados. E com seus novos poderes terá também novas responsabilidades.

– Mas tem um preço não é? Com os deuses tudo tem um preço. – disse Jade desafiadora – Qual é o preço de vocês?

– Da fato – começou Amaterasu – você terá de viver sob as nossas leis e não mais as leis do seu Santuário. Você ainda será uma semideusa completa, mas de um arquétipo diferente. Terá de nos honrar como pai ou mãe... e quando chegar o momento certo terá de empreender uma perigosa jornada em nosso nome. Uma jornada que pode custar mais que sua vida. – Os três abriram espaço mostrando a Jade uma mesa. Nela estavam três conjuntos de itens em miniatura, como se fossem delicados broches: um escudo circular azul com raios dourados emanando de seu centro por cima de uma espada viking, um broquel de bronze com o símbolo de Hórus e uma kopesh (espada egípcia) por cima e finalmente uma katana e uma wakisashi. – Escolha apenas um dos conjuntos.

– Como assim eu tenho que escolher? – Isabel exclamou. Estava ouvindo explicações da irmã Morgana durante horas sobre magia. A menina absorvia tudo como uma esponja absorvia água do mar, retirando os nutrientes da mesma, devolvendo água para o oceano. Morgana já tinha tido alunas talentosas, mas nenhuma como Isabel.

– Você deve escolher a forma como a magia funciona com você. Existem várias formas. Por exemplo, vá até a cozinha e me traga um copo de água.

Isabel foi até a cozinha, abriu o armário e de lá sacou um copo americano. Depois abriu a geladeira e de lá tirou uma garrafa cheia de água gelada. Despejou o líquido no copo até perto da boca. Depois guardou a garrafa na geladeira e atravessou a casa de volta aonde Morgana estava. Morgana agradeceu e pôs o copo na mesa. Ela entoou algumas palavras em latim, gesticulando de leve, como se imitasse alguns movimentos e outro copo igualzinho ao primeiro surgiu em sua mão. Ferun aquam!

– Essa é uma das formas. Neste caso a magia é uma ferramenta que acelera o que você quer fazer. Eu consegui instantaneamente tudo o que você levou alguns minutos para fazer. O problema é fazendo assim eu me caso num instante o que eu cansaria em minutos. Se eu quisesse me transportar instantaneamente para o outro lado de Fortaleza, digamos, 30km daqui eu chegaria num piscar de olhos e no mesmo momento gastaria a mesma energia que eu gastaria para chegar lá normalmente. – Morgana explicava de forma direta e simples, sem rodeios e mistérios. – Essa é uma das formas mais simples de se fazer magia. Magos com pouco poder a usam com frequência.

Ela parou e começou a gesticular em silêncio, como se estivesse tocando uma harpa invisível. O copo de água tremeluziu e mudou de cor. O cheiro inconfundível de coca-cola encheu o ar e o copo espumou de leve.

– Você transformou água em coca-cola! – apesar de ser uma semideusa e de já ter visto muita coisa nessa vida Isabel ficou atônita. Fazer um copo vir cheio de água da cozinha era uma um feito legal, mas transformar água em coca-cola parecia mesmo impossível, até para a filha da deusa da magia!

– É... conheci um mago que ficou famoso por transformar água em vinho. Acho que ela fazia muito sucesso nas festas. O vinho que ele fazia era muito bom. Fico imaginando se o tio Baco faria melhor. – por um momento Morgana pareceu envolvida por lembranças muito distantes. – Para entender isso, imagine que todo o mundo que você conhece e o que você não conhece estão ligados por fios invisíveis. Esses fios tencionados e afrouxados controlam o devir das coisas, e suas mudanças. Algumas dessas mudanças são naturais, outras nem tanto. A magia nada mais é do que entender como puxar e afrouxar as “cordas certas” para obter o efeito que se deseja. Essa é uma forma mais sofisticada e poderosa de magia. Mas ela inda tem seus limites. Ela não cria nada do nada. Eu precisei do copo de água para fazer um copo de refrigerante. Eu poderia transformar um cavalo num pégasso ou invocar uma tempestade de raios... se eu tiver um cavalo ou nuvens no céu. Uma feiticeira esperta usa o meio ambiente a seu favor. É mais fácil fazer um chão molhado ficar liso como se estivesse coberto de óleo do que fazer um pedaço de madeira virar uma chave de ferro. Você entende o que eu quero dizer?

Isabel concordou silenciosamente. Ela forçou a vista e através da névoa viu alguns fios. Mas não sabia para que serviam. Arriscou-se a tocar alguns deles e o espelho da sala tremeluziu, mostrando seus amigos. Estavam desacordados e acorrentados. Ela sentiu uma agonia terrível ao vê-los assim. Tinha perdido a noção do tempo. Estava ali em busca de proteção e de uma forma de ajudar os amigos. Proteção ela já tinha conseguido, mas sentia-se culpada por não ser capaz de estendê-la para os amigos. Morgana percebeu aflição da meia irmã. Sentia-se tocada pelo talento e pela dedicação da menina. Se Morgana não soubesse o futuro que aguardava por Isabel e não soubesse também que era necessário que a menina sofresse tudo aquilo que ainda ia sofrer ela a convidaria para viver na ilha Avalon. Lá poderia desfrutar de uma vida cheia de estudos com pessoas como ela. O refúgio final de todos os filhos da magia.

– Temos que nos apressar. Existe apenas mais um tipo de magia que você deve conhecer. É a magia do sangue. Você usa o seu sangue para empoderar suas magias. Mas cuidado... esse tipo de magia cobra um preço alto. Use-o com frequência e você vai enlouquecer, ferir e maltratar àqueles que ama. Use-o ainda mais e você será destruída. Além de qualquer cura. Acredito que você já sabe o bastante para ajudar a salvar seus amigos.

– Sim, acho que sim – disse Isabela ainda angustiada.

– Você poderia fazer um favor para mim? – a voz de Morgana tornou-se estranhamente solícita. – Nas suas viagens vejo que você pode chegar até as terras de São Paulo. Lá busque o cemitério do Araçá, próximo ao metrô Clínicas. Se passar por lá, prometa que vai colocar este amuleto sobre o túmulo no qual repousa sentado um anjo da morte, trazendo consigo uma grande foice.

– Como eu poderia recusar, depois de tudo o que você me fez? Toda ajuda que me prestou... estou eternamente em débito com você, irmã – o coração de Isabel iluminou-se. Sempre quis uma irmã. O ideal é que fosse um bebê pequeno para que ela ajudasse a criar, mas ter uma irmã mais velha não aprecia uma ideia ruim. Ela estendeu a mão e recebeu o amuleto. Uma pequena ametista ovalada, pouco maior que uma bola de gude, presa num cordão de couro de três pontas, rusticamente trançado.

– Só mais uma coisa, pequena... – disse Morgana trazendo nas mãos um pequeno embrulho.

Jade caminhava decidida. Ela estava inundada de energia, como nunca sentira na sua vida. Se sentia cheia de uma energia brilhante, selvagem. A sua escolha tinha sim preenchido o espaço vazio que Apolo lhe arrancou. Mas seja lá o que foi colocado no lugar brilhava de forma mais intensa, vívida, selvagem. Era como se a energia de Apolo fosse uma pombinha e essa nova energia fosse uma majestosa água caçadora. Não, não era a sensação correta. Apolo era arte, música e guerra. Esta nova energia era guerra, selvageria, sobrevivência. Havia sim uma certa arte. Podia-se notar pela espada do broche que trazia presa no cinto da calça jeans.

Ela cruzou o último beco em direção à praça. Saiu na lateral e não nos fundos da mesma, como inicialmente queria. Caminhou decidida e de peito aberto em direção à lanceira que estava de guarda. Não fez qualquer menção de ser furtiva. Caminhava altiva, guerreira, imponente. Não era como se fosse arrogante. Não. A postura era mais desafiadora. Como se ela não tivesse medo. Uma leoa que andava em direção dos inimigos a fim de proteger o seu bando. Como se dissesse: “é você que tem que ter medo de mim”.

– Eu vim libertar meus amigos. Você pode sair do meu caminho ou ficar nele. Não importa. O resultado final será o mesmo. Vamos sair daqui todos juntos.

– Eu não teria dito melhor. Você e seus amigos vão sair daqui juntos sim... juntos para serem julgados pelos seus crimes no Santuário. – a voz de Dezan ecoou pela praça e ele e seus lanceiros surgiram de seus esconderijos, cercando o perímetro. Mesmo os lanceiros que pareciam desacordados se levantaram, prontos para ação. Tinha sido tudo um truque. Um engodo para atrair Jade e Isabel com a esperança de que conseguiriam vencer. A primeira lanceira avançou sobre ela, com a lança crepitando de energia elétrica.

O golpe atingiu Jade em cheio. A lanceira sorriu ao ver a semideusa curvar-se sobre a ponta da lança, recebendo a atordoante carga de energia. Estava calibrada para derrubar até o mais forte dos filhos de Ares – não seria um simples filha renegada de Apolo que suportaria seus efeitos. Mas algo saiu errado. Jade levantou a cabeça por entre os cachos que estavam se aloirando aos poucos. Os olhos brilhavam com um azul intenso. Ela agarrou a lança com as duas mãos e com um rápido movimento girou o corpo, tomando a lança das mãos da atônita hoplita (antiga unidade grega que lutava com escudo e lança). Jade girou a lança no ar, com um floreio e atingiu a lanceira no rosto, bem perto do queixo, num lugar onde os lutadores de MMA chamavam de “botão de desligar”. A lanceira ainda caía no chão desacordada, enquanto Jade se projetava para frente, quase num borrão de movimento.

Os lanceiros restantes se dividiram em dois grupos: os da vanguarda de Jade fizeram uma linha para combatê-la, tentando ganhar tempo enquanto os da retaguarda avançavam em passos largos. Jade parecia um tufão girando e distribuindo golpes. Se Nathália estivesse acordada teria uma pontada de inveja da amiga. Ela lutava com uma leveza selvagem e dura. Seus golpes era rápidos, precisos e violentos. Bastava uma finta e um golpe, um giro com a lança ainda carregada de energia para que o inimigo fosse ao chão. Um lanceiro após o outro. Os hoplitas restantes fizeram uma formação em duas linhas e dispararam uma labareda conjunta de fogo grego sobre Jade.

A menina foi engolfada da cintura para cima, parecendo uma pira funerária. Dezan não objetou pelo método usado pelo segundo pelotão, embora por dentro estivesse destroçado. Forçado a caçar seus antigos companheiros ele sabia que estava fazendo a vontade dos deuses, mas isso não parecia tranquilizá-lo. Algo não estava certo. Mas havia um preço a pagar pela sobrevivência do Olimpo e Dezan estava disposto a pagar por ele.

– Os olhos de Isabel se encheram de lágrimas. Chegara tarde demais.

Ela gesticulou furiosamente na direção dos lanceiros. Um cano de água fervendo estourou, erguendo uma coluna de vapor por todos os lados. Enormes mãos, como punhos de um furioso titã ergueram-se da novem de vapor quente, golpeando com força, jogando os lanceiros em todas as direções. Era como se fossem soldadinhos de brinquedo atacados por uma criança brincalhona. Isabel gesticulou novamente e o vapor restante voou sobre a amiga como um jato de extintor de incêndio. As chamas morreram imediatamente revelando algo que nem ela e nem Dezan – o último das lanceiros ainda de pé poderiam prever.