O ladrão e a feiticeira

Tudo a noite fica mais sinistro. Quando chove fica ainda pior. A garoa fininha estava dando lugar a uma neblina que emprestava um ar ainda mais sobrenatural ao hotel estância, completamente deserto a essa hora. Eric podia ouvir um aparelho de som tocando música clássica ao longe, mas bem longe mesmo. Ele passou pelo prédio da administração e pelos estábulos. Nenhum som. Será que os cavalos dormiam assim tão pesado? Ele pensou enquanto passava. Desceu a escadaria central em direção ás áreas de lazer. Passou pelas piscinas. Andava decidido, embora sua mente não demonstrasse a mesma certeza de seu corpo.
Era como se ele estivesse sendo guiado. Ele tinha certeza que se quisesse poderia quebrar a esse “encanto” e voltar para o sofá. Mas havia alguma coisa no ar, alguma coisa naquele apelo. “Confie em seus instintos” dissera seu pai dias antes. Era complicado. Eric nunca tivera muita certeza de si mesmo.
O clube acabava a beira de um lago. As lanchas de passeio estavam ancoradas num pequeno e charmoso píer de madeira. O som ficava cada vez mais forte a medida que ele se aproximava. Vinha de algum lugar do outro lado do lago. O que ele poderia fazer? Pegar uma canoa e remar até lá parecia ser uma boa opção, quando ele ouviu alguma coisa se mexer na água. Um barco vinha se aproximando. Instintivamente ele correu para dentro de um dos banheiros químicos que estavam ao lado do píer, rezando para não ser visto.
No começo ele pensou que seus ouvidos o tivessem enganado. Mas logo depois viu uma luz indistinta no meio da água. Depois viu oque parecia ser uma cabeça de dragão surgir em meio ao nevoeiro. Logo ele se acalmou a perceber que se tratava de uma imitação de um drakkar, um navio viking. Visivelmente menor a embarcação deveria ter uns seis metros de comprimento por dois a dois e meio de largura. Na proa a imagem estilizada do que parecia um dragão. Mas olhando bem não era um dragão e sim um monstruoso morcego de pescoço alongado. Dentro da nau três navegantes. Todas crianças. Todas pálidas. Todas com enormes grilhões no pescoço. Se moviam com dificuldade como se estivessem cansadas ou fracas.
O drakkar ancorou e uma delas desceu, quase caindo do píer na água. Ela se levantou rápido quando ouras pessoas surgiram: eram duas meninas. Uma delas ele reconheceu como a menina da recepção. A outra era igualzinha a ela. Só podiam ser gêmeas. Ou isso, ou eram os clones mais perfeitos que Eric já tinha visto. As duas vestiam roupas pretas e coladas – provavelmente licra ou espandex – deixando as silhuetas de seus corpos atléticos perfeitamente marcados. Ambas carregavam garrafas de vidro – se pareciam com as garrafas de leite do desenho do Manda-Chuva – cheias de um líquido iridescente. Algumas garrafas brilhavam com uma suave cor dourada. Foi que Eric viu algo que fez sua garganta secar.
Saindo do drakkar uma figura se erguia majestosamente. As crianças se afastavam dela. Mesmo as duas gêmeas-clones foram tomadas por pleno e aparentemente justificado terror. Ela deslizava pelo ar, como se estivesse no hoverboard do filme de volta para o futuro. Seu corpo era velho, encarquilhado para frente, rosto sem idade, coberto de rugas grossas, os longos cabelos eram de um branco fino e doentio. As luzes enfraqueciam na sua passagem e mesmo a tocha que vinha na boca da cabeça entalhada de morcego na proa do barco pareceu tremeluzir. Eric sentiu um frio terrível lhe acossando a alma.
– Onde está o meu tributo? – a voz era suave como uma brisa gelada numa noite quente, mas o no final havia um gostinho amargo, como uma navalha afiada passando rente demais a um rosto recém-barbeado.
– Aqui minha senhora – uma das gêmeas-clones se adiantou oferecendo as garrafas que portava – direto dos mortais hospedados.
Ela ponderou observando a oferenda a sua frente. Pegou uma das garrafas com brilho dourado, destampou com desdém e bebeu um pouco. A cor voltou momentaneamente a seu rosto e seus cabelos brancos ganharam uma cor acinzentada, passando rapidamente para o preto platinado. Ela lambeu os lábios, satisfeita, e sorriu. Eric guardou para si o grito de espanto. Ela não tinha dentes humanos. Os lábios se esticaram numa bocarra inumana, com um sorriso deformado, recheados com dentes pontiagudos, tal como um tubarão demoníaco. Os olhos pareciam cintilar de prazer quando ela os abriu, depois de sorver mais um gole.
– Ah… sangue de meio-deuses. – ela sibilou com prazer – e temos mais de uma variedade?
As meninas concordaram de forma sincronizada com as cabeças, como se fosse um movimento ensaiado. Estava na cara que estavam tentando desesperadamente agradar aquele homem. As meninas pareciam cãezinhos esperando um afago do dono. Só faltavam abanar os rabos.
– Bem – disse ela com a mesma suavidade de navalha que Eric sentiu antes – precisamos garantir que não deixem a nossa hospitalidade tão cedo, não é mesmo? Façam os arranjos. Eu os quero aqui, por uma estada mais longa. – ela virou-se de costas enquanto uma das crianças com grilhões apressou-se para buscar o resto das garrafas, acondicionando-as numa caixa de madeira que parecia ser própria para carregar vinhos caros.
– Senhora… – a voz de uma das gêmeas saiu fina e cortada de terror, como se temesse por sua vida apenas por dirigir a palavra a sua mestra. A figura soturna parou, mas não virou-se para a moça de trajes negros. A menina engoliu um seco e continuou da melhor forma que pode – Um dos visitantes… eu… eu acho que ele é capaz de sentir a nossa presença. Pelo menos, não conseguimos fazê-lo adormecer. Sempre que íamos roubar sua energia ele despertava. Tenho certeza que quase me viu quando sai do seu chalé pela janela. Eu…
Ela não teve tempo de responder. Num instante a figura monstruosa estava em cima dela, agarrando-a pelo pescoço e erguendo alto no céu. Ela agarrava as mãos dele debilmente, tentando livrar-se do aperto férreo. Suas veias saltaram do pescoço e sua pele ficou ainda mais clara. Então ela começou a envelhecer. Em segundos ela passou de menina a idosa, magra e acabada como aqueles prisioneiros dos campos de concentração nazista. Por fim ela parou de se debater, sendo largada no chão. A figura parecia ainda mais jovem e bela, como se tivesse pouco mais de vinte anos. Ela virou-se voltou para o barco, sem olhar para trás.
– A sua irmã era fraca. Livre-se do corpo. Amanhã farei outra para lhe fazer companhia. E livre-se do semideus que vocês não puderam dar cabo. Fui claro?
A menina respondeu que sim. Quando o barco se afastou do píer a garoa fina deu lugar a uma chuva forte, dissolvendo parte da neblina. Ela começou a carregar o corpo da irmã, quando sentiu a lâmina de bronze celestial tocar-lhe o pescoço.
– Devagar e sem fazer barulho – disse Eric, puxando uma das mãos da menina para trás – eu quero apenas respostas e se você as der não vai ter problema nenhum para você. Por favor, não faça nada de estúpido para nenhum de nós. Concorda?
A menina se virou e Eric percebeu que ela chorava. As lágrimas rasgavam o rosto, indeléveis, mesmo com a chuva forte que caía. Ele deu seu melhor sorriso, levando seu charme ao máximo. Ele sustentou o olhar, tentando transmitir calma, como vira o encantador de cães fazer num episódio na TV.
– Quem é ele e o que é este lugar? O que é você? Por que aquelas crianças estão acorrentadas?
Ela titubeou um pouco, mas por fim respondeu:
– Ela é Mormo. Ela é a senhora de todos os vampiros. Esta é sua casa. Eu sou… – ela titubeou – eu sou uma das crianças mal criadas que mormo sequestrou e hoje sou sua serva. Aqueles outros são servos também, mas são escravos de sangue. Quando não há visitantes nos chalés, Mormo se alimenta delas.
Eric a ouviu falar por vários minutos. Ela estava desabafando. Pelo que ele entendeu Mormo era uma das “consortes” da deusa Hécate. Seu trabalho era sequestrar e punir crianças desobedientes, tomando-lhes o sangue. Diz a lenda que ela se tornou um espírito vingativo quando a rainha dos lestrigões devorou seus filhos. Desentendeu-se com Hécate e fora banida por espalhar vampiros pelo mundo. Depois de ouvir pacientemente Eric perguntou.
– E por que você não foge? Por que a deixa escravizar dessa forma?
Ela abriu um pouco blusa, deixando a mostra uma pequena corrente de prata, com um pequeno cadeado de ouro na ponta.
– Com isso ela pode me obrigar a ficar. E fazer… outras coisas… – as lágrimas surgiram de novo em seus olhos.
Eric estendeu a mão e tocou no cadeado. Era frio e maligno. Ele tinha um espectro completo de sensações ruins como medo, repulsa, ódio e pavor. Ele se concentrou, tentando fazer com que seu calor suplantasse aqueles sentimentos. Por fim ele deu um puxão forte e o cadeado se abriu. A menina deu dois passos para trás, atônita. Ela estava livre. Só os desuses sabem desde quando ela não se sentia assim. Ela sorriu, gratidão estampada no rosto. Então curvou-se para frente e um par de asas surgiu em suas costas. Seu semblante mudou. Ela estava se tornando outra coisa… uma harpia.
– Jamais vou esquecê-lo mortal. – disse ela batendo as asas e voando para longe – mas se quiser mesmo salvar alguém fuja enquanto pode. E se puder, salve a moça que está naquela cabana. Ela está aqui desde sempre.
Num bater de asas ela se foi. Eric sentiu-se sozinho, mas pelo menos conseguiu divisar a cabana afastada. As súplicas de socorro voltaram a seus ouvidos. Ele pegou uma das canoas e rumou para lá. Seu relógio marcava pouco mais de meia-noite. Ele avançou rápida e silenciosamente. Era uma cabana temática, imitando aquelas de filmes de verão norte-americanos. Havia um pequeno píer na entrada. Ele amarrou o barco lá e desceu cautelosamente. Tentou a porta. Ela abriu pouco depois de duas tentativas. “Não existem fechaduras e trancas para o rei das fechaduras”. As palavras soaram vazias e de pouco alívio. Ele abriu a porta, que rangeu na noite.
Era um interior completamente diferente de todo o resto. Parecia uma masmorra medieval. As paredes eram de pedra sólida, blocos grossos e irregulares colados com argamassa escura. Tochas iluminavam o ambiente, emprestando um cheiro de fumaça ao lugar. O piso era de terra batida e úmida, como terra recém-escavada de um cemitério. No final do aposento estava ela: a dona das súplicas.
Era uma menina loira, cabelos desgrenhados e finos espalhados pelo rosto encharcado de suor. Os olhos azuis estavam vermelhos de tanto chorar e a boca seca de tanto repetir as súplicas. Ela estava no chão, jogada como uma boneca de trapos, o pescoço preso à parede com uma enorme coleira de ferro e uma corrente grossa e pesada. Perto dela, mas fora de seu alcance, estavam deliciosos pratos. Perto dela estava um prato de sopa fundo, onde comida estragada, misturada com um pouco de lama justavam vermes e moscas. Ela olhou para o menino olhos aliviados e suspirou…
– Você demorou, cavaleiro. – disse ela desmaiando em seguida.
Eric a aparou tão rápido quando pode. Com um movimento rápido retirou a corrente de seu pescoço e a deitou em seu colo. Ele alisou seu rosto até ela acordar. Ela ruborizou ao perceber que dessa vez não estava sonhando.
– Eu… eu não estou sonhando? – disse ela passando a mão no pescoço e sentindo-se livre dos grilhões pela primeira vez em muito tempo. O rosto iluminou-se de alegria e ela abraçou Eric com força. Assim ficou por vários minutos, sentindo o calor do peito do rapaz.
Eric por sua vez não dissera nada. Dizer o que? Seu charme estava esvaziado. Ele tinha vivido muita coisa nessas últimas semanas. Achava que mais nada a o surpreenderia. Estava enganado. Por fim o abraço da menina afrouxou e eles puderam conversar.
– Obrigada por me libertar, cavaleiro. Tenho contigo e com teu reino dívida eterna. Eu sou Isabel de Ganon, filha do Duque de Ganon, primo de Afonso III, rei de Astúrias. Meu pai pagará para ti grande resgate se me levar deste odioso lugar.
Por um minuto a cabeça de Eric pareceu rodar. Cavaleiro? Reino? Era pedir demais encontrar alguma coisa normal neste mundo? Ele se recompôs e se colocou de pé, ajudando a menina a se levantar.
–Olha mina, eu sou Eric, filho de Hermes, er… da casa de Hermes. Vamos tirar você daqui e depois tomamos conta das apresentações mais detalhadas.
A menina olhou torto para ele mas concordou. Saíram os dois em direção ao píer. A noite havia avançado bastante. Teria ele perdido a noção do tempo? A chuva ainda continuava, mas a neblina se dissipara completamente. E foi isso que o encheu de terror: a visão do drakkar se aproximando.
A canoa que ele tinha trazido até ali explodiu num baque seco. Eric viu o navio repleto de pequenos diabretes. Todos portavam armas e se vestiam como versões em miniatura, deformados, dos vikings. Na popa do barco, sentada num trono e bebericando um pouco mais da energia vital dos semideuses, estava Mormo. Linda e majestosa. Eric não teve dúvidas. Colocou Isabel nos braços e sorriu. Estava na hora de deixar de ser o cavaleiro e voltar a ser o Eric de sempre.
– Olha só mina… você conhece Naruto? Não? Depois te explico melhor. Tá na hora do Mizu no Kinobiri!
Eric começou a correr. Os primeiros passos foram lentos, mas logo as asas saíram de seus pés e quando ele tocou na água, correu sobre o lago como se estivesse numa pista de corridas.
– Sayonara, trouxas! – gritou ele enquanto corria em direção á sede da fazenda.