A irmandade das motoqueiras caçadoras de Artemis

A primeira parada da viagem foi num posto de gasolina na cidade de Unaí, distante cerca de 60 km do Distrito Federal. Pararam num posto logo na entrada da cidade e estacinaram por atrás da borracharia. O objetivo era “desadesivar” o carro da Giges para que levantassem menos suspeitas durante o caminho. Enquanto trabalhavam no carro Oliver traçava as rotas de viagem, baseadas no consumo esperado de gasolina da caminhonete. Nathália trabalhava ao seu lado reorganizando as malas e fazendo um inventário dos mantimentos. Havia ao seu lado esquerdo uma pilha de roupas que seria desovada num brechó do outro lado da rua – assim que ele abrisse, claro - e se isso não fosse possível seriam sumariamente queimadas.

– Mas essa camiseta é oficial do Resident Evil Chronicles, versão deluxe. Você não pode tocar fogo nela. – protestou Eric ao ver sua camiseta na pilha de descartes.

– Você já tem camisetas demais. Precisamos nos manter leves para nos movimentarmos com mais rapidez. Não podemos nos dar ao luxo de carregar excesso de peso: só nos atrasaria e nos cansaria – Nathália dardejou um olhar para Oliver que não percebeu, ou fez que não percebeu, a entonação da guerreira. Ao pegar a mochila de Oliver ela começou a tirar coisas de dentro e parecia que não tinha mais fim. Por fim tinha uma pilha tão grande quanto a pilha de descarte e a mochila ainda pesava o mesmo em sua mão. Por fim ela exclamou – Uma bolsa mágica. Podemos colocar todos os nossos itens aqui e não pesaria um grama a mais. Você não disse que tinha um item tão poderoso e valioso.

Oliver pareceu sair do torpor do seu tablet. Ele olhou espantado como se quisesse compreender a situação. Por fim mostrou-se espantado. Tentou explicar que a mochila pertencera a seu pai e que não sabia de suas propriedades mágicas. Por fim concluíram que apesar de ser um item muito valioso, não era assim tão especial: colocar todos os ovos no mesmo cesto poderia ser um grande erro.

Por fim seguiram com o plano original, vendendo os itens de vestuário que não precisavam. Suas bolsas ficaram em média ¼ mais leves. E cada pedaço de leveza conquistado faria diferença na hora de uma nova corrida enlouquecida pelo meio do mundo. Com o dinheiro obtido abasteceram o carro e compraram comida que poderia ser consumida na estrada sem que precisassem parar: barrinhas de cereal, palitos de carne seca, água mineral, isotônico e energético em forma de gel. Fizeram uma prece silenciosa aos deuses antes de procederam pela estrada.

Durante o caminho combinaram que apesar de ser o melhor motorista do grupo Eric não poderia guia-los até Fortaleza sem interrupções. Era uma viagem com mais de trinta horas de estrada, sem contar os imprevisíveis, mas certos, desvios que teriam de fazer. Eric caberia o papel de a cada duas ou três horas de viagem troca de lugar com outro motorista. Além de descansar, poupando-se para momentos realmente necessários, Eric agregaria mais capacidade ao grupo, ensinando-os a dirigir. Oliver tinha alguma experiência com carros, graças a um tutor inglês apaixonado por carros. Mas para os outros seria a primeira experiência atrás de um volante de carro. Com pouco mais de quatro horas de viagem e a primeira aula de direção de Lucas a caminhonete avistou uma placa na estrada que dizia que a cidade de Posse – GO estava próxima, algo como 10 km. Já tinham vencido quase trezentos quilômetros de viagem quando Eric percebeu que o combustível estava perigosamente baixo.

– Tem alguma coisa errada com o carro – ele comentou enquanto Lucas esforçava-se para manter o carro reto, na velocidade entre 70-90km/h – e não é o motorista.

Jade riu discretamente definitivamente mais acostumada com o bom humor irônico do amigo. Se Nathália achou engraçado ou não, ela não demonstrou, mas sua expressão passou de serena para preocupada assim que o filho de Hermes terminou a frase.

– De todos os carros da Giges estacionados lá escolher o que estava realmente precisando de manutenção era realmente uma jogada muito cruel de Moros, deus da sorte. – ela comentou sem esconder a frustração.

– Bom, nem tudo está perdido – disse Oliver, elevando a voz para ser ouvido do fundo da caminhonete. – pelo meu mapa tem um posto a seguir, na cidade de Posse. O nome do posto é… – ele olhou uns segundos no frank antes de responder com certeza – Veredas. Posto Veredas, bem na entrada da cidade. Rodovia GO-446 – acrescentou como se dizer o endereço do posto tornasse mais fácil visualizar a sua localização. – Lá tem uma mecânica especializada em caminhões, tratores e caminhonetes.

– Soa como um plano para mim – disse Nathália satisfeita, logo em seguida recebendo a anuência de todos os demais ocupantes do veículo, menos Lucas…

– Eu acho que deveríamos…

– Não vamos voltar ao santuário Lucas! – a resposta em uníssono fez o filho de Demeter encolher os ombros. Ele vinha tentando, sem sucesso, trazer os amigos à compreensão de que sua missão fracassara e que eles tinham de voltar para a segurança do santuário. No entanto seus apelos esbarraram em ouvidos surdos ao que ele chamava de razão.

Levou menos de vinte minutos para chegarem no posto, usando o frank como GPS. Combinaram que como Eric e jade pareciam os mais velhos, seriam eles os escolhidos para levar o carro ao mecânico. Um casal jovem chamaria menos atenção do que um grupo de cinco adolescentes. O restante do grupo resolveu ficar num restaurante/mercadinho/churrascaria que ficava ao lado do posto. Oliver deu a Eric um velho celular Siemens A50 para que ele se comunicasse com o grupo e desse noções do que estava acontecendo. O celular não tinha créditos para ligar, mas mandava mensagens muito bem – incluindo um corretor ortográfico que parecia ter sido feito pensando em pessoas com dislexia.

Ao chegarem no restaurante Oliver pediu uma porção de fritas e uma vitamina de morango. Nathália pediu uma coca light e um Cheese-bacon com salada e muito molho barbecue. Ela se encantou com um vidro de pimenta que era usado como tempero de mesa. Só o cheiro da pimenta já fazia os olhos de Oliver encher-se de lágrimas. Lucas preferiu tomar apenas um suco. Era claro que de todos era o que estava menos a vontade naquele ambiente.

Não demorou muito a conversa dos meninos cessou e deu lugar ao marasmo que os restaurantes de beira de estrada proporcionam. Não havia nada de interessante para ver e a julgar pela última mensagem de Eric precisariam trocar o tanque de combustível que estava uma rachadura complicada de soldar. O conserto deveria durar uns dois dias, mas só Zeus sabe como, Eric conseguiu que o mecânico trabalhasse a toda velocidade. Estimava que em cinco ou seis horas estariam seguindo viagem. Ambos, Eric e Jade estavam bancando os ajudantes o que facilitaria e muito o conserto.

De repente suas atenções se voltaram para um grupo de quatro motoqueiras. Vestiam couro preto dos pés a cabeça. Montadas em motos harley-davidson, modelos easy rider. Oliver sentiu uma breve tontura já conhecida. Forçou a vista e percebeu que não estavam montadas em motos e sim em ferozes lobos negros enormes. A névoa fazia com que parecessem motos. Não apenas isso: faziam com que suas ocupantes parecessem maiores do que realmente eram. A mais velha não parecia ter mais que dezessete anos e a mais nova não parecia ter nem mesmo catorze. Aproximaram-se o bastante para que Lucas conseguisse ler as inscrições em grego de suas jaquetas: Irmandade das Caçadoras do Asfalto de Artemis – capítulo Centro-oeste.

As motos-lobos pararam no estacionamento ao lado do restaurante e as quatro desceram, sendo que a menor delas desceu com dificuldades, mancando. Ela foi aparada por duas companheiras e levada a sentar-se numa cadeira perto da mesa dos meninos. Nathália encarou a mais velha delas e a saudou:

– Abençoado os deuses antigos e todos os seus servos.

– Eu honro você ao longo do caminho, não importa onde você esteja. – foi a resposta da motoqueira.

Olhando mais de perto era uma moça alta e magra. Tinha o cabelo curto e encaracolado, na altura das orelhas, penteado meio de lado. A pele era clara e sapecada com sardas. O nariz de bolinha parecia um pouco deslocado no rosto longo e de expressão severa. Os olhos castanhos escuros pareciam inflexíveis e atentos. Ela parou estendendo o braço numa clara resposta à saudação de Nathália.

– Eu sou Hyparsia. A vice-comandante das Irmandade das Motoqueiras Caçadoras de Artemis. Eu e minhas irmãs buscamos abrigo e comida por uma tarde. Não tencionamos nos intrometer em seus assuntos a não ser que sejamos convidadas ou obrigadas ou que nossos caminhos se cruzem.

Por um momento Nathália ponderou sobre as apalavras da motoqueira. Já tinha visto as alegadas filhas de Artemis. Não que a deusa fosse realmente a mãe biológica delas. A tradição dizia que Artemis e suas servas eram todas virgens. O que acontecia é que ela aceitava filhas de outras divindades como se fossem suas. Era uma espécie de clube da Luluzinha das filhas virgens dos deuses. Por um momento agradeceu silenciosamente a todos os deuses que Eric não estivesse ali. As perguntas do rapaz, normalmente impertinentes e irônicas poderiam resultar numa crise a qual Nathália queria mesmo distância.

– Eu sou Nathália, filha do poderoso deus da Guerra. Sou a líder do chalé de Ares e estes são meus companheiros do Santuário do Vale do Amanhecer. – Lucas sorriu e pronunciou seu nome baixinho enquanto Oliver olhava com espanto. Por fim ele mesmo se apresentou de forma lacônica, deixando claro que tinham mais dois amigos que não tardariam, muito, a chegar.

– E o que trazem os protegidos do Santuário a esta parte selvagem do Goiás? – disse Hyparsia depois de pedir uma cerveja ao garçom.

– Estamos numa missão para os deuses. Salvar o mundo dos gigantes e coisas assim. Trivial. E você? – Oliver parecia querer compensar a falta do amigo Eric para desespero de Nathália.

Hyparsia olhou os dois de cima a baixo, como se estivesse perscrutando os dois em busca de alguma incoerência. Depois deu de ombros quando a cerveja chegou.

– Vi que uma das suas está ferida. É grave? – o tom de Lucas pareceu preocupado. Nathália olhou reprovadora para ele. Por que se meter com as semideusas mais perigosas desde as amazonas?

– Ela vai ficar boa. Mas se vocês tiverem ambrosia, ficarei feliz de comprar. Pago bem. – disse ela despejando um punhado de douradas dracmas na mesa.

– Assim você nos ofende. Somos ambos servos dos deuses. Hoje ajudamos você e amanha você ajudará um de nós. – Nathália era pura gentileza, coisa que Oliver e Lucas estavam estranhando. Ela pegou uma garrafa térmica da bolsa e despejou não mais que um dedo de um líquido alaranjado, viscoso. Depois pediu ao garçom um pouco de água mineral gelada. Misturou o conteúdo do copo com a água mineral. Espumou um pouco como se tivesse cheio de pó efervescente. Pediu que dessem de beber à menina ferida. Tão logo ela bebeu a cor voltou a seu rosto. Nathália sorriu olhando para Oliver e Lucas como se dissesse que “Jade não é a única com truques de cura”. – Isso é néctar de ambrosia concentrado.

– Impressionante. – foi tudo o que Hyparsia falou. Logo depois as duas estavam conversando animadamente e Nath até resolveu experimentar um pouco da cerveja. Fez cara feia nos primeiros goles, mas logo começou a competir de entornar copos com a recém-descoberta amiga.

Após algumas cervejas Hyparsia convidou Nathália para um passeio pelos arredores do posto. Ela já estava um pouco alta pela cerveja e não viu nenhum mal nisso. Oliver por sua vez estava entretido ouvindo as histórias das caçadoras, sobre suas caçadas e troféus. Num canto, sentado debaixo de um cajuzeiro Lucas dormia o sono que apenas os justos ou os muito cansados podem ter.

Afastaram-se cerca de vinte minutos do posto. Era um descampado largo, espaçoso e afastado da estrada. Por fim Natháia falou:

– Tenho uma pergunta para você. Existe em suas fileiras uma caçadora de nome Verônica? – Nathália falou em tom firme, como se sua força de vontade estivesse expulsando toda a bebida de seu organismo. Por sua vez Hyparsia engasgou, como se tivesse engolido cerveja pelo nariz.

– Não gosto do seu tom – ponderou Hyparsia, visivelmente consternada. Era claro que a filha de Ares tinha pisado num calo doloroso e delicado. – é melhor que encerremos o nosso passeio e voltemos, assim cada uma a seu caminho.

– Não gosta do meu tom ou não quer dar a resposta da minha pergunta? Talvez saiba, mas se faz de desentendida. Vou perguntar mais uma vez – disse Nathália crispando o punho desafiadoramente em direção à motoqueira – e espero, em nome dos deuses que você pondere bem antes de responder algo que eu não vá gostar.

– Está me ameaçando, cadela? – a voz de Hyparsia ficou firme como o aço. – Os assuntos das caçadoras não dizem respeito a uma fedelha como você. Você me olha e vê apenas uma moça de pouco mais de vinte anos, mas tenho idade para ser sua mãe. Em nome do favor que você fez à minha amiga eu vou poupar a sua vida, mas não espere que eu seja gentil: você merece uma boa surra para aprender a se portar. Cale sua boca e saia do meu caminho antes que eu mesma tenha de arrasta-la inconsciente até seus amigos.

As duas se encararam no que, no cinema, era chamado de duelo com os olhos. O tempo foi fechando em volta delas e a chuva fina começou, logo dando lugar a uma chuva torrencial, grossa, com trovões arrebentando para todos os lados.

Nathália não esperou nova provocação e correu na direção da motoqueira. Esperava que seus poderes recém-descobertos fossem o bastante para vencer as décadas de experiência que aquela caçadora tinha. Ela tentou agarrar Hyparsia, numa manobra de luta livre americana. Estranhamente Hyparsia não tentou se esquivar e apenas abaixou a cabeça e encolheu os ombros. Só tarde demais Nathália percebeu que tinha caído no golpe da caçadora.

A cabeçada veio veloz como um jab e fez Nathália dobrar-se para trás, o queixo e os dentes doendo enquanto sua boca se enchia de sangue. Mas o seu movimento foi interrompido quando ela foi violentamente agarrada pelas orelhas e pelos tufos de cabelo nas imediações. A cabeça bruscamente puxada para baixo encontrou parada na joelhada certeira de Hyparsia. Agora o nariz de Nathália também estava sangrando, enchendo suas vias aéreas de sangue grosso. Ela posicionou o pé para trás tentando clarear a cabeça quando sentiu o ar ser expelido brutalmente de seus pulmões: o gancho, no melhor estilo uppercut, fez com que ela se se dobrasse para frente, o corpo ansiando desesperadamente por respirar ar. As costas arqueadas foram o alvo de duas cotoveladas e um chute bem dado no joelho esquerdo fez Nathália cair ao solo. A seção de chutes começou como uma chuva de granizo, vindo em todas as direções, mas concentrando-se hora nas costas, hora no peito de Nathália. Por fim, entre as costelas quebradas, o nariz esmagado e o maxilar dolorido Nathália abandonou a consciência quando o último chute acertou sua bochecha esquerda. Sobre ela Hyparsia tomou fôlego e preparou-se para dar mais um último golpe.

A rajada de energia rasgou o ar arremetendo a motoqueira uma centena de metros para longe da guerreira caída. Do outro lado do descampado a espada de Oliver brilhava inconfundível. A luta de verdade parecia que ia começar.