Os novos herois do Olimpo

As ninfas do rio acima


Lucas surfava as ondas de grama com maestria, movendo-se com rapidez na direção indicada. Dos invasores que encontrou em seu caminho poucos resolveram fincar o pé e lutar. A grande maioria deles corria de medo. Mas todos foram sumariamente engolidos e afogados pela onda de grama que carregava majestosamente o menino. Lucas apresentava um olhar distante, capaz de enganar qualquer um que o olhasse. O menino sim estava perdido em seus pensamentos, mas a sua mente estava uma verdadeira tormenta. Ele ouvia o lamento das plantas à sua volta, queimadas e destruídas pelos invasores. Ele sentia a queimadura da grama, o medo das aves e dos pequenos roedores que habitavam aquela área preservada do cerrado. Seu peito ardia em desejo de vingança. Nunca antes tivera uma compreensão tão profunda do mundo à sua volta.

Mas não era apenas isso que o afligia. Algo a mais o incomodava, como um espinho enfiado fundo na carne. Era algo que ele buscava negar com todas as forças. O que pensariam os outros? Como reagiriam os poucos amigos que ele tinha? E se não fosse aquilo que ele esperava? Se lutasse contra o mundo e no final de sua árdua jornada não encontrasse a resposta que estava buscando? Ainda perdido em pensamentos o menino avistou uma formação de colunas à direita. Já tinha ouvido falar do lugar. Eram as ruínas de um antigo templo dedicado aos deuses da natureza. Do antigo templo restavam apenas algumas colunas fincadas tortamente no chão entre os tufos de grama e mato nascendo entre os azulejos do chão. O altar estava partido ao meio, como se tivesse sido marretado por um gigante. Era um ponto turístico interessante, apesar de muito longe e isolado da sede do santuário. Lucas preparou-se para partir quando uma coluna de pedra chamou sua atenção.

Era antiga. Até mais antiga que o próprio templo. Estava tombada, apoiada sobre uma rocha e coberta de limo. Ao seu pedido as plantas cresceram colocando a coluna no seu devido lugar e o limo secou, revelando a intrincada história escrita na pedra. Eram desenhos em espiral, como uma história em quadrinhos gravada na pedra. Davam voltas na coluna até o topo. Não tinha nenhuma letra escrita, mas dava para entender que um guerreiro estava lutando para recuperar alguma coisa que ele tinha perdido. Não alguma coisa. Alguém. O menino acompanhou a história sem palavras, dando voltas e mais voltas em torno da coluna, cada vez mais embevecido pelo que lia. Era tudo tão real. Era como se pudesse sentir o vento açoitando seu rosto enquanto o cavaleiro avançava com seu corcel pelas hordas de inimigos. Após um combate mortal ele encontra seu prêmio. E o final não era mesmo o que Lucas esperava. O guerreiro buscava pelo seu amado? O grande prêmio era um homem? Poderia ser um pai em busca de um filho? Um guerreiro em busca de seu irmão perdido? Um homem em busca da sua alma gêmea?

Lucas tentou dissipar esses pensamentos. Tinha uma missão a cumprir e se os inimigos não dessem cabo dele, Nathalia daria se ele falhasse. Ele até podia ouvir a voz da amiga ecoando em sua cabeça: “Olhe bem, seu riponga cabeça de alfafa. Não morra se não eu mato você. Juro que vou ao fundo do Tártaro apenas para dar o fim que você merece”. Ele não pode deixar de sorrir. Nathalia era uma das poucas pessoas que o entendia.

O córrego continuava serpenteado pelo leito rasgado na terra do cerrado, aumentando e diminuindo de tamanho, de largura e profundidade, dando volta nas pedras e vencendo todos os obstáculos que lhe cruzavam o caminho. O rio era uma lição em si mesmo. Ele não parecia se importar com o mundo e seguia seu destino inexorável. “Quisera ser um rio” pensou Lucas enquanto seguia com a sua onda de grama.

Ao virar uma curva para o norte ele se deparou com a vila das ninfas. Estava linda, como nos relatos que tinha ouvido, só que ainda mais majestosa e impressionante. Era como dizia João Eugênio, filho de Dionísio, um dos seus amigos mais chegados: “Existem coisas que palavras não podem descrever. Para essas coisas conte apenas com a sua emoção. Não pense, apenas sinta”. E como ele queria sentir! Mas naquele momento o seu senso de dever clamou ainda sua atenção. Ele não pode deixar de sentir uma ponta de remorso. Como tinha sido indolente todos esses anos! Havia um mundo dentro do Santuário, tão vasto e belo e ele não conhecia nada dele. Sabia bem o caminho do refeitório para o chalé de Demeter, e do chalé de Demeter para os pomares mais próximos, mas não conhecia o santuário melhor que Oliver ou Eric.

– Se eu sobreviver, eu prometo que vou viver a vida mais intensamente – jurou o menino.

A vila crescia em volta de uma nascente que se juntava ao braço principal do rio. Chamar de vila era forçar um pouco a barra: não deveria haver mais do que algumas poucas casas, todas bem pequenas, dessas que os anões da Branca de Neve teriam de se abaixar para entrar. Mas as casas estavam vazias. Ele bateu em das delas antes de perceber o silêncio perturbado apenas pela sua respiração e pelo barulho da água corrente.

As ninfas tinham abandonado a vila. Devem ter subido rio acima, em busca de proteção em outros lugares. Lucas não as censurava. Antes ele também fugiria sem pensar duas vezes.

– O Lucas que saiu com os amigos em busca do pergaminho áureo era um tremendo covarde acomodado – Comentou para si mesmo, numa pujante autocrítica. Quem era ele agora? Bem, isso parecia ter pouca importância neste momento. As ninfas não estavam lá para ajudar então a missão dele tinha sido um fracasso. O negócio era voltar à sede do santuário e ver o que ele poderia fazer.

O menino deu meia-volta se seguiu com sua onda de grama em direção à sede do santuário. Ele sabia que os maiores desafios ainda estavam por vir. E realmente não tardaram a chegar. Ele viu um grupo de mulheres serpentes, armadas com arcos longos, rastejando logo à frente. Da cintura para cima eram mulheres mais ou menos normais, com a pele num tom esverdeado musgo e cabelos que pareciam dreadlocks de grama sintética. Usavam um meio corselete de couro batido, com algumas partes recobertas com uma trama de anéis de ferro. Da cintura para baixo exibiam o corpo largo de uma serpente constritora, coberta com escamas verdes brilhantes, de um tom mais escuro que a da parte superior. Cada uma das quatro carregava um grande saco de lona nas mãos, trazendo-o arrastado no chão. Lucas pensou em destroça-las imediatamente e seguir seu caminho, mas alguma coisa dentro dele o fez mudar de ideia. O menino desceu da onda e foi furtivamente seguindo as mulheres serpentes.

Elas passaram a seguir uma trilha lateral, ladeando a estrada principal. Lá em baixo, numa espécie de baixio as quatro caçadoras se reuniram com mais três que aguardavam.

– E então? – sibilou uma das que estavam esperando.

– Pegamos mais algumas. – sorriu uma das recém-chegadas, jogando o saco no chão. Ouviu-se um gemido de dentro do saco e Lucas engoliu um seco ao pensar o que poderia estar lá... ou quem.

Uma das mulheres serpentes, provavelmente a líder do bando a julgar pela sua armadura mais elaborada, abriu o saco e puxou uma ninfa pelos cabelos. A pequena ninfa se debatia de dor e de medo e gritou ao se ver cercada por tantos monstros. As mulheres serpentes gargalharam e uma delas mostrou suas garras longas. Ela passou o dedo retorcido perto do rosto da pequena ninfa, deixando um rastro de queimado.

– Uh... ela é sensível ao toque do veneno. Temos que ser cuidadosas meninas. Ela pode morrer com facilidade. Aposto que ela grita bem alto. O que mais temos aí?

Duas mulheres serpentes tiraram uma capa de lona grossa que cobria o que parecia ser um engradado. Lá, presas em jaulas, pelo menos duas dúzias de ninfas se acovardavam juntas num canto, como animais acuados. Um dos sacos foi esvaziado dentro da jaula. Mais ninfas feridas e assustadas. Logo a cela improvisada estava cheia.

– As que não conseguimos pegar, matamos. A carne é macia – comentou uma puxando o arco e inspecionando a sua estrutura. Ele não era feito de madeira, plástico ou metal; parecia alguma coisa orgânica, como a carapaça de algum inseto monstruoso. Ela pegou a ninfa cujo rosto tinha sido marcado pelo veneno e continuou a falar, saboreado malevolamente cada palavra – Escute aqui fadinha... eu vou dar uma chance para você, se você conseguir correr para além deste arvoredo você estará livre. É claro que eu e minhas irmãs vamos atirar em você com nossos arcos, mas eu garanto a você dez segundos de corrida. Corra por sua vida!

A pequena ninfa correu desesperada, o rosto queimado ainda ardendo e lágrimas nublando sua visão. Ela ouvia uma das serpentes contando em voz alta. Seis, sete, oito... Quando ouviu um zumbido e sentiu alguma coisa cravar-se às suas costas. Ela virou a cabeça assustada quando percebeu que a flecha cravara-se num tronco de maçaranduba. Mentalmente ela agradeceu aos deuses porque sabia que aquela árvore não estava ali dois segundos atrás.

– Você errou! – gritou uma das outras arqueiras. – Minha vez! – E mais uma vez a flecha cravou-se num galho de maçaranduba.

– Cegueta! – gargalhou outra que se adiantou dois passos para fazer um disparo longo. Ela ergueu o arco e convulsionou em seguida, caindo de costas. Seu peito estava com uma dezena de perfurações, por onde vertia um sangue vermelho aguado.

– Vocês disparam muito mal. – a voz de Lucas saiu casual, como se ele comentasse uma jogada de futebol com um colega no bar – Eu vou ter muito prazer em mandar todas vocês de volta para o tártaro, junto com sua senhora monstruosa!

As monstras voltaram-se para a fonte da voz e dispararam quase que por reflexo. Àquela curta distância suas flechas retiniram em direção ao alvo, todas cravando-se ruidosamente no peito do menino.

– Maldito campista! – berrou a líder delas, exultando por seu disparo perfeito – vocês só servem para ser alvos estacionários! Queria que vocês apresentassem algum desafio, pois assim matar vocês me daria algum senso de satisfação.

– Cuidado com o que pede... Pode ser que os deuses concedam o seu desejo. – a voz do menino saiu baixa e grave, instaurando medo no coração das caçadoras mais inexperientes. A pele do menino estava transmutada como se ele mesmo fosse uma estátua de madeira. As flechas em seu peito foram sacando para fora da pele como se alguma coisa as tivesse empurrando para fora. Seus furos foram cobertos por uma seiva e num piscar de olhos estavam fechados. O menino não esperou uma nova saraivada de flechas e atacou. As raízes pontudas dardejaram da terra numa velocidade impressionante, empalando três das seis caçadoras serpentes que restavam.

– Separem-se! – gritou a líder, subitamente transtornada por agora ser a presa e não mais a caçadora. Uma de suas comandadas correu em direção à parte mais densa do arvoredo, apenas para ser esmagada por um tronco de maçaranduba. A segunda correu em direção ao descampado, correndo na mesma direção da ninfa. Por onde passava as folhas caídas no chão grudavam em sua pele e escamas e a grama, de repente dura como ferro, lhe arranhava a cauda, deixando uma trilha de sangue por onde ela passava. Ela gritou de puro terror quando as folhas sobre ela se multiplicaram, sufocando o seu avanço e devorando sua carne.

A líder correu na direção da gaiola e de lá sacou mais uma ninfa, agarrando-a pelo pescoço. Ela parecia desesperada, olhando fixamente para o menino, apresentando uma expressão de súplica e ameaça ao mesmo tempo.

– Não chegue perto ou eu mato essa ninfa. Se qualquer folha cair ou se mover eu a mato.

– Calma – disse o menino em tom apaziguador, voltando à sua forma notadamente humana e bela. – podemos negociar. Deixe a ninfa ir e eu deixo você ir embora.

– Como sei que posso confiar em você?

– Você deve estar pensando nisso agora – disse o menino assumindo novamente o tom grave de sua voz – deve estar pensando se eu vou mesmo cumprir a minha palavra. Deve ter coisas passando pela sua cabeça agora. “Ele tirou a armadura”, “será que consigo acertar uma flecha nele antes dele se proteger”, “se eu matar essa ninfa o que o impede de me matar”... Mas eu digo uma coisa: vou contar até três. E se ao final da contagem a ninfa não estiver solta e eu não estiver vendo o seu rabo rebolando para longe daqui você vai desejar que eu tivesse matado você agora. Hum...

A mulher serpente largou o arco e tremeu nas bases, a mente em conflito consigo mesma. Dois... e ela largou a ninfa e começou a correr. Ela não chegou a ouvir um três, porque Lucas não o contou. Estava mais ocupado em acolher e soltar as ninfas.

Minutos depois ele ouviu a frase que queria ouvir.

– Estamos todas em débito com você, guerreiro. O que podemos fazer para saudar nossa dívida?