Os filhos do tigre

Sempre há um final


Kamala

Existem várias maneiras de uma pessoa estar cansada. Às vezes, você trabalha muito, se esforça fisicamente e ao final do dia, sente seu corpo doer, então você dorme e descansa. Às vezes, você fica sentado o dia inteiro, ainda assim, você está cansado ao final do dia. Você se deita na cama e não consegue dormir, porque não se desliga do trabalho, das preocupações do dia. Você pode se cansar depois de fazer uma caminhada, ou de estar sentado em um avião por horas. Ultimamente eu vivia cansada por causa do meu trabalho. Mas era um cansaço bom e gratificante, do tipo que, ao final do dia, você se deita na cama e dorme tranquilo, acorda na manhã seguinte ansioso para voltar ao trabalho.

O que eu vinha fazendo era tão gratificante, que mesmo sendo um trabalho pesado e exigindo de mim muito esforço, tanto intelectual quanto físico, eu não tinha vontade de parar, ao contrário, eu queria fazer mais ainda.

Durante muitos anos, eu quis trabalhar na empresa de minha família e seguir o legado dos Rajaram. Meu sonho era ser presidente da empresa. Mas agora, eu tinha descoberto algo mais importante, algo que me fazia sentir realmente realizada. E eu ainda sentia que estava seguindo o legado da minha família. Eu sentia que a minha missão com as Indústrias Rajaram já havia sido cumprida. Eu impedi que ela fosse descaracterizada por causa dos lucros e a mantive na Índia. Então eu parti para outros projetos.

Nilima havia deixado a casa do senhor Kadam para viver na comunidade de Anik. Ela me ofereceu a casa, que pertencia à minha família, para que eu vivesse ali. Eu não queria morar naquela casa enorme, principalmente porque eu viveria sozinha, já que toda a família e Sohan ficariam nos Estados Unidos. Eu morava em um apartamento pequeno, mas resolvi incluir aquela casa em um dos meus projetos. Minha mãe e tia Nilima não gostaram quando eu contei a elas o que pretendia fazer.

— Vou transformar a casa em um abrigo para mulheres!

— Não!

— Por que não mãe? É uma casa grande, afastada da cidade e ninguém a está usando!

— Aquela casa pertenceu a Kadam! Ele a construiu para Ren e Kishan, foi o meu primeiro lar de verdade. A casa guarda histórias, lembranças. Coisas muito importantes aconteceram ali! Eu não quero que você a use desta maneira!

— Kamala, os Rajaram tem tantos imóveis que você pode usar! Aquela casa guarda muitas coisas importantes para nós, histórias da família que você e Sohan ainda vão conhecer. Se você soubesse tudo o que vivemos ali, tudo o que guardamos naquela casa, você entenderia porque não queremos que você a use.

— Eu entendo tia, mas lembranças estão em nossos corações e não entre quatro paredes. Eu sei que a casa foi importante, mas a história de vocês continuou além daquela casa. Vocês construíram e estão construindo novos lares. A história sempre continua, e para tudo sempre há um final.

As duas pararam por um momento, pensativas. Então Nilima argumentou:

— Não são só lembranças que tem naquela casa. Nós temos objetos valiosos, livros, anotações de Kadam. Coisas que não devem ser reveladas a qualquer pessoa. Nós temos outros imóveis, maiores e mais acessíveis, que se tornariam um abrigo para mulheres muito mais adequados do que aquela casa.

Anik entrou na casa enquanto discutíamos, mas manteve-se em silêncio. Radha estava na sala conosco, observando nossa discussão. Ela virou-se para mim e perguntou:

— Há algum motivo para você ter escolhido aquela casa Kamala?

— Eu não sei exatamente o que é, mas quando eu voltei àquela casa, depois da minha viagem, eu senti que este projeto, especificamente, tinha que ser ali. Tem alguma coisa naquela casa, uma energia. Algo que faz a gente se sentir mais forte. E eu acho que é desse tipo de energia que as mulheres precisam para lutar contra toda a dor e sofrimento que lhes foi imposta.

Anik virou-se para mamãe:

— Mãe, a senhora, mais do que ninguém deve compreender a missão de Kamala. Deixe-a usar aquela casa. Kamala sabe o que faz.

Depois de pensar por um tempo e mesmo que relutantes, minha mãe e tia Niliam permitiram que eu usasse a casa. Toda a família, exceto Radha e Anik, por causa da gravidez, foram à Índia, para buscar as coisas tão valiosas que preocupavam minha mãe.

Eu fiquei surpresa e impressionada ao descobrir coisas incríveis naquela casa que eu frequentava desde crianças. Minha família guardou por anos, jóias e objetos de arte que deveriam valer milhares de dólares, inclusive um grande e exótico tigre de jade. Também encontrei uma pulseira em ouro branco com uma espécie de medalhão, onde havia uma foto de meu pai e outra de um tigre branco. Os olhos do tigre eram idênticos aos olhos de meu pai. Eu me senti incomodada pela semelhança entre eles.

Além dos objetos, meus pais fizeram questão de guardar todos os livros e anotações que estavam no quarto secreto de Kadam, aquele que, por anos, ficou trancado. Eu sempre tive curiosidade sobre aquele cômodo da casa, e ficava imaginando que tipo de coisas fantásticas eram guardadas ali. Curiosamente, não havia nada demais, apenas livros, diários e anotações. Vários desses livros eram sobre deuses e mitologia indiana, e muitas anotações feitas em uma bela caligrafia sobre essas lendas e sobre a deusa Durga. Imaginei que o senhor Kadam estivesse tentando escrever um livro quando morreu, e que mamãe escolheu sua carreira influenciada por ele.

Encontrei um desenho, feito por minha mãe. Era o desenho da Deusa, com os cabelos negros e os olhos verdes, que me lembravam os olhos de Sohan. naquele momento, decidi chamar aquela casa, que acolheria as mulheres, de "Casa de Durga".

Então, logo após eu ter concluído meu segundo projeto, voltei aos Estados Unidos, para esperar o nascimento de minha primeira sobrinha.

Sohan

Crianças são mesmo seres sagrados, divinos. Eu adorava crianças e sempre quis ser pai de muitas.

Quando Anik e Radha anunciaram que teriam um filho, eu fiquei feliz e emocionado por eles. Era incrível que meu amigo agora tivesse uma família completa. Eu estava feliz por ele, e desejava uma vida assim para mim.

Kamala e eu estávamos namorando. Nosso relacionamento era perfeito, como eu sempre imaginei que seria. Eu a amava cada dia mais e sempre dizia isso a ela. Quando ela se mudou para a Índia, eu senti sua falta. Nós nos falávamos todos os dias e, na maioria das noites, depois do trabalho, ficávamos conversando diante da câmera do computador por horas e horas. Eu estava trabalhando muito nos Estados Unidos e ela na Índia. Mas eu não conseguia mais ficar longe dela.

Eu me transferi para a Índia apenas alguns meses depois. Nós tínhamos implementado as mudanças na sede indiana e Kamala estava trabalhando no projeto de uma casa de acolhimento para mulheres vítimas de violência e abuso. As coisas iam bem na empresa, então, eu dedicava parte do meu tempo para ajudar Kamala no projeto.

A "Casa de Durga" passou a receber mulheres de todos os grupos sociais e que precisavam de ajuda, mas a maioria era de mulheres jovens e pobres, vítimas de estupro e violência doméstica. Na casa, elas recebiam além de um lar, acompanhamento médico e psicológico, aulas de inglês, escola pra aquelas que desejassem estudar, cursos profissionalizantes e Kamala achou importante ensiná-las a se defender, então nós dois ensinávamos artes marciais algumas vezes na semana.

Kamala estava radiante, realizada e apesar de trabalhar duro, ela não parava. Algumas vezes nós dormíamos juntos, mas era muito raro. Na Índia, as coisas eram diferentes dos Estados unidos, as pessoas eram mais conservadoras e não ficava bem uma moça solteira dormir com um homem. Eu sentia a falta dela, pois queria ficar com ela o tempo todo. Eu desejava me casar com Kamala e estava pensando se seria precipitado pedir a mão dela naquele momento. Resolvi esperar mais um pouco.

Então nasceu Yesubai, a filha de Anik. Ela era um bebê lindo e meu irmão estava completamente encantado pela filha. Mas não era só ele, todos nós estávamos apaixonados pelo pequeno bebê de olhos dourados, que era tão tranquila quanto sua mãe.

Kamala ficou completamente apaixonada pela sobrinha, tanto que, ao invés de ficar uma semana na fazenda, conforme o planejado, ela deixou seus projetos e seu trabalho de lado e ficou um mês inteiro na fazenda, curtindo Yesubai. E quando voltou para a índia, Kamala reclamava o tempo todo que sentia falta da sobrinha.

Então, Kamala dedicou-se a seu segundo projeto. Ela escolheu uma das mansões que pertencia a sua família e o transformou em um colégio para meninas. As alunas eram aquelas jovens sem oportunidade, que viviam em vilas e favelas e que não tinham a oportunidade de estudar. A elas, era oferecido a oportunidade de morarem na casa, onde passavam a semana toda, podendo voltar para as famílias nos fins de semana. Nessa escola, as meninas, além das aulas regulares, tinham aulas de ginástica, música, artes, praticavam esportes e aprendiam alguma profissão. Era outro projeto maravilhoso que mudou vidas imediatamente.

A procura por vagas nesta escola foi muito grande e muitos garotos também pediam por uma oportunidade. Então nós construímos mais duas unidades educacionais semelhantes à primeira, uma delas voltada aos meninos.

Tudo ia bem. Nós íamos sempre aos Estados Unidos, ficar com nossa família, principalmente porque Radha teve outro bebê, mais uma menina, tão linda quanto Yesubai, mas com os olhos verdes da mãe.

Kamala tinha um novo projeto. Ela já tinha implantado duas casas de acolhimento para mulheres, três unidades educacionais, mas sentia que faltava alguma coisa. Então, ela começou a trabalhar em um projeto mais audacioso e burocrático. Kamala pretendia construir um hospital.

Kamala

Quando resolvi encarar o projeto de construir um hospital, eu sabia que não seria fácil, mas estava preparada. Eu sabia que não poderia fazer isso sozinha. Eu precisava de parceiros e de contatos.

A "Indústrias Rajaram" apoiou oficialmente o projeto e outras empresas também quiseram ter seu nome ligado a ele. Demorou alguns meses para que pudéssemos iniciar a construção. Eu usei meu próprio dinheiro para construir um prédio adequado e ele foi equipado com tudo o que havia de mais moderno.

Todos os projetos que eu implementara, seguiram todas as normas e legislações indianas. E para nenhum deles eu tive problemas em conseguir as autorizações e documentos necessários para seu funcionamento. Exceto desta vez.

O hospital estava pronto para funcionar, nós já tínhamos contratado médicos e funcionários, comprado medicamentos e insumos, havia filas de pacientes esperando por tratamento, tudo dentro das normas. Mas nós não conseguimos a autorização para abrirmos. Não houve qualquer justificativa, nenhuma explicação, apenas a negativa.

Procurei meus advogados e eles conseguiram marcar uma reunião com o responsável pelos alvarás. Seu nome era Kabir Sayam. Fiquei preocupada. Será que este Sayam teria alguma ligação com aquele outro?

No dia da reunião, minhas suspeitas foram confirmadas. Mahish Sayam estava na sala, junto com Kabir. Ele me cumprimentou calorosamente.

— Senhorita Rajaram! Que satisfação reencontrá-la. Vejo que você está ainda mais bonita.

— Mahish Sayam. Eu desconfiei que o senhor tivesse alguma coisa a ver com a recusa da prefeitura em nos dar o alvará quando vi que o responsável também era um Sayam.

— Ah, sim. Este é Kabir, secretário de saúde e meu primo.

— É uma prazer conhece-la senhorita Rajaram.

— Devo agradecer à senhorita— Mahish começou— eu nunca tinha pensado em investir na Índia antes de conhecê-la minha querida, mas a paixão que a senhorita demonstrou por este país foi tão grande, que não consegui ficar indiferente. Acabei reencontrando minha família indiana e tornando-me conselheiro em seus negócios.

— E o senhor aconselhou seu primo a me negar o álvara?

— Não é bem assim senhorita— Respondeu Kabir— Há muitas incoerências em seu projeto e eu não posso permitir a abertura de um hospital sem que tudo esteja completamente em ordem.

— Veja bem Kamala. Você sabe que eu sou muito bem relacionado. E eu soube que há problemas em outros dos seus projetos na Ìndia, o que pode acarretar no fechamento de alguns dele. Mas eu posso ajudá-la a impedir que isto aconteça. Eu posso interceder por você.

— E por que o senhor faria isso?

— Por favor, almoce comigo e eu lhe explico. Podemos?

Eu aceitei almoçar com Mahish Sayam. Eu não confiava naquele homem e sabia que ele tinha alguma coisa a ver com os problemas que eu estava enfrentando naquele momento. Mas resolvi aceitar seu convite e ouvir o que ele tinha a me dizer.

— E então senhor Mahish. O que o senhor quer de mim?

— Senhorita Rajaram, eu vim para a Índia por sua causa. Você me cativou de uma forma inexplicável. Eu soube que você e Sohan Kadam estão tendo um caso. É verdade?

— Soham e eu estamos juntos sim. Por que?

— Você é uma mulher impressionante. Você é linda, forte, decidida, uma princesa. Sohan é apenas um soldado. Você precisa de um rei ao seu lado para torná-la a rainha que você nasceu para ser.

— E este rei seria o senhor?

— Sim! — Mahish gritou— sim. Eu sou o homem certo para você. Eu sou rico, poderoso, sempre tive tudo o que desejei. A coisa que eu mais desejava, minha meta de vida, era as Indústrias Rajaram. Eu desejava ter aquela empresa para mim e fiz de tudo para entrar ali. Mas aí eu conheci você e eu a desejei mais do que qualquer outra coisa. Nada mais tem importância para mim. Eu a quero. Minha querida, — ele agarrou minha mão — dê-me a chance de conquistá-la e mostrá-la tudo o que podemos fazer juntos. Você terá quantas escolas e hospitais você quiser, no mundo todo. Ninguém nunca mais dirá não para você. Permitá-me ser seu rei, minha rainha.

Mahish deu um beijo exagerado, lambuzando minha mão com sua saliva, puxei minha mão de volta, nervosa.

— Desculpe-me senhor Sayam. Eu fico lisongeada, mas eu não preciso de um rei. Eu só preciso do meu Sohan. Eu o amo e ele me faz feliz. Eu sinto muito.

A expressão de Mahish mudou e eu pude ver uma sombra escura de ódio cobrir sua face, deixando-me aterrorizada.

— Sente não é? Se você não me quer, eu não posso ajudá-la. Boa sorte para conseguir seus documentos.