O restinho de noite ocorreu tranquila e silenciosamente.

Anne deitou-se em um canto, procurando distância de Loki. Além disso, o cansaço estava conseguindo vencê-la. Lutara contra Gigantes de Gelo, dirigira uma moto até a prisão, e descobrira que tinha sido enganada. E o pior, teria de ficar um tempo indeterminado ao lado de Loki, que desde o início mostrava-se estranhamente interessado em Anne.

Porém, treinada como tinha sido, Anne já estava se conformando com o fato de ser a guarda costas do deus. Era uma missão que ela deveria cumprir, que acabaria mais dia, menos dia. Ela tinha capacidade para enfrentar qualquer coisa que pudesse acontecer, porque tivera treinamento para isso. Não estava tão preocupada em relação a ataques. Então, olhou para Loki.

Ele estava estático, sentado no chão e encostado na parede. Por mais que seus olhos estivessem semicerrados, ainda pareciam direcionar-se para Anne. Em suma, ele estava distraído em suas reflexões enquanto remexia no casaco preto. E Anne, com seus pensamentos, caiu no sono, deitada desconfortavelmente no chão de pedra da cela.

Foi quando começou.

Ela teve um sonho, melhor dizendo, um pesadelo aterrador.

Ao mesmo tempo em que Anne tinha plena consciência de que era um sonho, esse parecia cada vez mais real. Ela tentava, mas não conseguia acordar. Estava irremediavelmente presa dentro de sua própria mente.

Em seu sonho, via alguns vultos girando em volta dela. Alguns não passavam de manchas negras indistintas; outros eram nítidos, como seus irmãos. Anne estava em um lugar escuro, deitada no que parecia ser um chão de gelo, mas não era um lugar em que ela se lembrasse de ter estado. Em meio aos vultos que a circundavam, sentiu alguém se aproximar.

Loki.

Caminhava depressa e em linha reta na direção dela, os olhos verdes inquietos e vorazes, o sorriso lateral irônico... Tudo como ela se lembrava. Aliás, Loki usava sua armadura dourada e verde, segurando nas mãos finas e rijas sua lança, que outrora representara toda sua glória e seu poder.

Então Anne começou a sentir uma sensação sufocante. Era como se algo ácido circulasse por suas veias, deixando por onde passava uma ardência que fez Anne arquejar. Mais do que nunca desejou sair daquele sonho. Sentia como se estivesse sendo... Envenenada.

Anne gritou, ao passo que Loki já estava quase perto dela. Os vultos ainda giravam desenfreadamente. Anne não conseguia mais se mover, tão poderoso era o suposto veneno que lhe atingira. Ficou agonizando, sentindo a sensação que esfriava em seu calor, e queimava em sua frieza. Aliás, tinha muito frio. O gelo começara a grudar em suas roupas e cabelos, os lábios de Anne ganhavam um tom espantosamente azulado.

- Loki... – Chamou ela, vendo na figura imponente do deus sua última esperança.

Loki não a ajudou.

Mas fez algo que a surpreendeu ainda mais. Sua expressão, anteriormente dura e maléfica, dera lugar a outra. Loki agora estava triste, até transtornado. Seus olhos estavam fundos e o terror era nítido no seu rosto cumprido. Algo afligia Loki de uma maneira arrebatadora. Anne não soube dizer muito bem o que era, podia ser por ela ou não. Ela não tinha forças para tentar decifrar a mente do deus.

E de repente tudo ficou ainda mais escuro.

Era como se a luz pálida tivesse se dissipado e o sonho interrompido, mas Anne continuava dormindo. Apesar de nada mais ver, todas as sensações ruins passaram. Agora ela sabia, de alguma forma, que estava suficientemente quente e bem. Tentou abrir os olhos, mas ainda tinha medo de estar presa no sonho e decepcionar-se com alguma armadilha mental.

Esperou um tempo e piscou o olho. Certificou-se de que ainda estava na cela em Asgard, ainda que visse tudo embaçado. Anne agitou-se pelo fato de não conseguir focalizar nada com nitidez.

Sentiu que suava frio, apesar de o clima no lugar também estar gelado.

- Shhh! – Fez Loki, percebendo a aflição de Anne.

Colocou sobre ela seu casaco preto. Loki não sentia frio, uma vez que descendentes de Jotuns se adaptavam a isso com facilidade. Ela apenas colocou seu caso sobre Anne de modo que a cobrisse e retirou-se do campo de visão dela.

Anne quis protestar, porém, a sensação de calor a tranquilizara totalmente. Apesar de não estar enxergando direito, ela percebera alguns fatos: Estava com frio e Loki a cobrira com seu próprio casaco. Ela estava confortável demais para protestar com ele ou perguntar os motivos de tal atitude.

Além disso, tudo não passava de um sonho. Anne não precisava se importar em esclarecer esses assuntos com Loki. Não faria diferença, uma vez que ela achava que tudo isso se passava em sua mente. Por fim, deixou-se dormir novamente. Pensou que o pesadelo fora causado por alguma reação de seu corpo que ainda não estava totalmente relaxado com essa situação. Lembrou-se apenas de, em seus próximos sonhos, agradecer Loki pelo favor.

- Vocês mortais são tão patéticos! – Exclamou Loki.

Ao contrário de Anne, ele não dormira. Ficara parado, pensando em mil planos diferentes para vingar-se de quem o colocara na prisão e frustrara seus planos. Porém, depois de um tempo, Loki passou a observar Anne.

Ainda tinha suas dúvidas em relação a ela. De alguma forma, a vira em seu destino. Tinha de haver alguma relação entre Anne e o futuro de Loki. Só que ele ainda não havia descoberto nada que lhe parecesse útil, e Menglod poderia libertá-lo a qualquer momento. Loki não tinha certeza se deixaria Anne livre. Como precisava dela, mesmo que saísse da prisão, a levaria junto dele. Estava resolvido. Se Loki fosse libertado de seu cárcere, seqüestraria Anne e a levaria junto de si a fim de descobrir mais sobre ela.

Não deixaria a chave para sua dominação futura ir embora sem mais nem menos. Contudo, Loki fora interrompido de seus devaneios. Observava Anne com interesse. Ela estava dormindo tranquilamente, os cabelos claros ocultando-lhe o semblante, de modo que Loki não pôde olhá-la no rosto. Mas, de repente, ela começou a remexer-se, inquieta. Estava tremendo e murmurando palavras ininteligíveis. Loki calculou que a garota deveria estar tendo um violento pesadelo.

De início, tentou ignorá-la e voltar a articular seus planos, mas os espasmos de Anne se tornaram mais inquietos do que nunca. Ela batia os braços no ar, como se estivesse tentando se livrar de algo, e começou a chorar... Parecia verdadeiramente estar precisando de ajuda.

Então Loki começou a pensar.

Provavelmente, não havia mais dúvidas. Anne estava inserida em seu destino. Até mesmo a mente deles estava ligada, de alguma forma remota, mas ainda assim entrelaçada. Quando Loki começou a pensar em Anne, em tudo o que ela representava, ela começou a ter esses pesadelos. Era isso.

A presença de Loki também afetava Anne. Isso explicava tudo. Pensou tanto nela que despertou na garota pesadelos horrendos, que provavelmente tinham a ver com o deus. Ele finalmente percebera. Um afetava o outro. Um estava no destino do outro. Mas ainda assim, Loki não sabia de que maneira.

Então agiu rapidamente. Tirou seu casaco e correu até o lado oposto da cela, onde Anne tremia. Loki levou as mãos à testa de Anne. A garota estava gelada. Ele estendeu seu casaco sobre o corpo encolhido de Anne e percebeu que ela abriu ligeiramente os olhos, murmurando o nome dele...

Algo que Loki não soube identificar se agitou dentro dele.

Então, ele acariciou os cabelos de Anne levemente, temendo o que poderia acontecer a ela. Só sabia que a causa dos espasmos de Anne tinham a ver com ele. Loki pressentia... Sua presença fazia Anne ter vislumbres de um futuro sombrio. Ele despertava na garota tudo que era ruim...

Ficou com remorso. Ao ver Anne debater-se daquela maneira, sem escapatória, Loki tentara acalmá-la. Anne recebeu o casaco de Loki e logo se moldou a ele, dormindo novamente tranquila.

Loki tocou o rosto de Anne e, ao ver que ela estava dormindo suavemente, voltou para seu canto. Ficou remoendo a sua mais recente descoberta.

Como ele, a causa do pesadelo de Anne, pôde fazê-lo desvanecer?

Mal sabia Loki...

O que para ele tinha sido real, para Anne tinha sido um sonho, apenas.

Mas o deus era esperto. Pelo estado em que Anne estivera, provavelmente de nada se lembraria pela manhã. Assim, quando Loki calculou ser a hora certa, levantou-se e pegou seu casaco de volta, colocando-o novamente para que Anne não desconfiasse de nada.

A mesma sensação desconhecida perpassou por ele, quando sentiu o calor agradável do casaco. O perfume de Anne ainda estava nele... Algo muito parecido com algumas flores do jardim do Palácio, mas Loki não soube identificá-las com precisão.

- Tolice... – Murmurou, tentando esquecer-se do cheiro e do calor de Anne em sua roupa e em seu corpo.

Bem, a verdade era uma só. Loki despertou um pesadelo dentro de Anne. E, ao ver a situação desesperada da garota, simplesmente não se conformou. Não sabia muito bem porque, nem ao menos tinha vaga ideia... Mas ajudara Anne. Importou-se com ela, ainda que por poucos segundos. Por quê? Loki não sabia. Teve medo de saber. Só sabia que a ajudara porque fora o causador dos males de Anne. E também, um pouco por instinto e por algo mais que ele não soube definir. Ora, ele precisava de Anne para concretizar seus planos de dominação. Ele tentou se convencer de que fizera isso por conveniência. Apenas por mera conveniência...

Mas isso não mudava o fato de que ele, o deus da trapaça, tinha ajudado Anne. Isso não era muito freqüente nele. Loki não ajudava ninguém. Mas, naquele momento, não agüentou ver a menina morrendo de frio e de aflição. Colocara seu casaco nela e, ainda que Anne estivesse inconsciente, ajudou-a a se acalmar.

Mas Loki não queria que Anne soubesse que ele a tinha ajudado. Loki era assim. O deus da trapaça que nunca ajudava ninguém. Se Anne soubesse de tal fato, a imagem maléfica de Loki seria arruinada. Além disso, ele não estava gostando da sensação desconhecida que sentiu quando ajudou Anne. Por fim, ele prometeu para si mesmo nunca contar a ela sobre isso. Ela nunca saberia quem, de fato, a tinha ajudado a se livrar dos pesadelos...

Anne sentiu que já tinha forças para se levantar.

E assim o fez. Primeiro, abriu os olhos e piscou diversas vezes para sua visão entrar em foco. Depois, espreguiçou-se e, aos poucos, levantou. Permaneceu sentada por alguns instantes, fitando Loki.

Ele parecia mais solitário do que nunca. A expressão dele era triste e vazia, embora Anne soubesse que dentro da mente do deus havia de tudo. Então, Anne se lembrou de vislumbres de sua noite passada.

Tivera um pesadelo terrível, cujas sensações ruins pareciam ter se apossado dela de maneira bem real e perceptível. Então, pensou ter visto Loki cobri-la com seu casaco. Pensou ter visto Loki ajudando-a. Mas não. Não devia ser real. Devia apenas ter sido mais uma parte de seu sonho indistinto. Loki jamais faria isso. Ainda que as imagens parecessem bem reais, só podiam ter sido imaginadas por ela.

Entretanto, a sensação de calor provocada pelo ato piedoso de Loki ainda estava na pele de Anne, como que a lembrando de que alguma coisa tinha acontecido naquela noite, fora de seus sonhos. No plano perfeito da realidade daquela cela.

- Loki? – Chamou Anne, depois de algum tempo se recuperando da noite de sono conturbada.

Loki inclinou os olhos e levantou a cabeça, falando:

- Senhorita Stein?

- Nada... Tive uma impressão, deixa pra lá... – Comentou Anne, observando o casaco preto do deus intacto no corpo esguio dele. Sim. Devia ter imaginado tudo aquilo.

- Você costuma ter pesadelos? – Perguntou Loki, ao que Anne levantou-se e caminhou pelo cubículo que chamava de cela.

- Ah... – Respondeu Anne, desconcertada pela pergunta. Era como se o deus tivesse lido a mente dela. – Raramente. Mas quando os tenho, bem... É um pouco complicado.

- Eu percebi. A senhorita atrapalhou minha noite agradável. – Comentou Loki, mas não parecia de fato zangado.

- Mil perdões, senhor deus da trapaça. – Falou Anne, ironicamente.

Até que houve um grito, uma voz estrondosa de trovão bem conhecida de todos. Simultaneamente, Anne e Loki viraram-se na direção das grades de energia.

- Anne! – Chamou Thor.

Ainda que imperceptivelmente, Loki vacilou.

- Estou indo, Thor... – Disse Anne, virando-se para encarar Loki. Queria perguntar se ele estava bem, mas desistiu.

Atravessou a grade da mesma maneira e se deparou com a figura grande do deus do trovão. Alto, corpulento, os cabelos loiros desarrumados e a barba mal feita...

- Anne, eu... Eu queria comunicar uma coisa a você e ao Loki. – Disse Thor.

Anne franziu a testa, sem saber o que esperar. A expressão de Thor estava oscilando de tempos em tempos, ora ligeiramente alegre, ora um tanto quanto preocupada e ressentida. Definitivamente, não soube o que esperar.

- Bom, fale. Você está bem, Thor? – Perguntou Anne, preocupada. Não era muito íntima de Thor, mas como colega de equipe, ela sentiu que tinha o dever de ajudá-lo.

- Estou... Mas é que o Tribunal de Asgard liberou um documento. Eu fiz questão de trazê-lo pessoalmente a você. – Comunicou ele, mostrando um pergaminho pardo enrolado e preso por uma fita dourada.

- Tribunal? Espero que eu não tenha feito nada errado... – Falou Anne, ainda mais preocupada.

- Não, não... É que...

- Fala, Thor. – Pediu Anne insistentemente.

Thor pigarreou, um pouco aflito.

- Bom... Loki ganhou liberdade. Quer dizer, ele ganhou o poder da escolha. Pode continuar preso; ou ser livre, mas servir ao exército Asgardiano na linha de frente.

O queixo de Anne caiu. Thor prosseguiu:

- A situação está crítica. O conselho determinou, com a aprovação de meu pai, que Loki é um bom guerreiro. Precisamos dele. Oferecemos a liberdade em troca dos serviços de guerra.

Anne não conseguiu pensar em nada a dizer. Bom, pelo menos, ela não precisaria mais ficar na prisão. Isso devia ser algo bom.

- Anne, você ganhou um título de soldado também. Concedido pelo meu pai. Você vai com o Loki para o Palácio. Passará a ficar com ele lá, agora. – Disse Thor, como que para chamar Anne de volta a si.

- Claro. Parece bom, se vai ajudar a gente a ganhar essa Batalha. Está ótimo. – Confirmou ela, um pouco incrédula. – Nem acredito que vou sair desse lugar.

Thor olhou para ela como quem se desculpa. Parecia arrependido por ter deixado Anne ficar nesse lugar terrível com seu irmão.

- Bom, eu ainda devo tomar conta dele, suponho? – Indagou Anne.

- Sim, mas não precisa ficar perto dele necessariamente todo o momento. Agora, todos nós podemos olhá-lo. Os guardas estarão lá, também. Apenas observe-o de vez em quando. Não tenho direito de pedir-lhe mais. – Respondeu Thor.

Anne ficou instantaneamente feliz. As coisas pareciam estar melhorando. Ela iria para o Palácio, junto dos outros Vingadores, e não precisava ficar com Loki todo o tempo. Apenas observá-lo de quando em quando. Sinceramente, achou tudo deveras agradável.

Então, Thor pediu licença para Anne com um aceno de cabeça e foi até o botão ao lado da grade.

Com um zunido e um estalido, a barreira energética sumiu.

Loki estava livre.