IV

As árvores passavam rápidas por eles. Aos poucos a densa floresta ia ficando para trás, porém, Pluto permanecia aéreo, sem se dar conta do que ocorria á sua volta, ainda assustado pelo fato de quase – mesmo que inconscientemente – ter matado Dasliel durante o treinamento. A visão do semblante atônito e dos olhos vítreos da moça sobre si trouxeram a suspeita de que havia algo mais profundo e sinistro dentro de si que ele não conhecia e que parecia querer sair.

-- Pluto! Pluto! Acabamos de entrar em território mercenário. Fiquei alerta. – O cavalo o retira do transe.

-- Sim, Mestre. – Responde.

Restavam agora poucas árvores, que pareciam serem tragadas por um estranho deserto, de sol escaldante e areias alaranjadas. Sob ordens de Araken, o príncipe e a guerreira cobrem-se com uma capa cinzenta, em seguida adentram no deserto, tão velozes quanto um felino predador. Tal qual pontos verdes sobre as areias, vegetações incomuns emergiam das profundezas da terra, formando uma espécie de oásis.

-- Que lugar estranho. Sinto-me livre mas, ao mesmo tempo, vigiado. – Declara o homem.

-- Já estive aqui uma vez mas ainda me surpreendo com a aparência. É por isso que chamam o império de Terras Manchadas. É como se círculos verdes surgissem na imensidão alaranjada. – Diz a mulher.

-- Fiquem atentos ao ínfimo movimento. Estamos completamente expostos aqui e somos observados desde que entramos. – Alerta o animal, ouvindo um “ sim, senhor” uníssono logo em seguida.

A cavalgada estendeu-se por mais algumas horas, contudo, o calor parecia cansá-los mais rapidamente. Decidem entrar em um dos oásis, onde havia um pequeno olho d´agua. Enquanto os cavalos refrescavam-se, a ruiva e o príncipe bebiam água á goles generosos. Porém, antes de juntarem-se aos animais que estavam á poucos passos de distância, tal qual gotas de chuva, seis figuras caem das árvores, cercando-os.

Estavam todos encapuzados e apontavam as espadas na direção do casal. Aproveitando a agitação dos cavalos, Dasliel põe-se á frente de Pluto e velozmente empunha seu arco, mirando a flecha para um deles.

-- Quem são vocês e o que fazem em solo mercenário? – Indaga um dos homens.

-- Sou Dasliel. A terceira aprendiz da rainha Alaya Teslaiel, e sob suas ordens, vim em busca do mercenário conhecido como Meia-Noite. – Pronuncia-se a guerreira.

-- Perdoe-nos o mau-jeito minha senhora. Temos ordens para revistar qualquer viajante. – Fazem uma reverência.

-- Aceito suas desculpas. Agora levem-me até ele. – Fala firme.

-- Acompanhe-nos.

Seguindo o bando, a dupla nota o aumento na velocidade da caminhada ao ponto de correrem tão rápido quanto os cavalos. Mesmo impressionado com o que via, Pluto não deixava de sentir que algo estava para acontecer.

Minutos depois avistam o seu local de destino. Como um gigantesco oásis, uma cidade de prédios e construções cilíndricas era cercada por uma densa floresta. Aproximando-se mais, o príncipe pode observar que tudo era composto essencialmente por uma espécie de madeira, tão alaranjada quanto as areias do deserto.

-- Bem vindos á Cidade Propícia. Sede do império mercenário. – Apresenta um dos homens.

Caminham á pé até a estrada, passando por uma trilha, formada por árvores secas e entrelaçadas. O príncipe permanecia nervoso e percebendo isso, a mulher toma uma de suas mãos, apertando-a e sorrindo gentilmente. Por fim, entram na cidade, surpreendendo-se com a movimentação de pessoas e animais, nas ruas largas e formadas por blocos de pedras, tal qual um ladrilho laranja.

O povo era extremamente alto, de pele muito escura e brilhante. Seus cabelos eram negros e lisos. Os corpos eram bem definidos e torneados, e ficavam à mostra por causa das poucas roupas que usavam. As mulheres eram muito sensuais, todas adornadas com enfeites em jóias. Os homens geralmente estavam com o peito nu, carregando armas em suas costas.

Um grande mercado atraía a total atenção dos visitantes. Animais, comida, eram a principal moeda de troca, porém, haviam aqueles cujos metais preciosos conferiam-lhes especiarias sem igual. Extasiado com tudo o que via e aprendia, Pluto só pensava em Frêny e no fato de que ela adoraria brincar com aquelas crianças tão meigas e alegres. No entanto, a angústia por não saber noticias da menina voltara com força total. Sentiu vontade de correr pelo mundo á sua procura, mas sabia que seria inútil, já que não conhecia nem á si mesmo.

Cabisbaixo, apenas ouvia a guerreira exclamar estarrecida com a beleza da cidade. Nesse momento, o grupo é interrompido por um homem de olhos verdes implacáveis, sorriso fácil e vestes finas. Usava um turbante para proteger-se do sol. Dasliel põe-se frente á frente com ele.

-- O que uma dama do seu calibre faz nas Terras Manchadas? Não teme que eu possa querer roubá-la? Uma guerreira como você é muito valiosa. – Pronuncia-se o homem, num tom grave e seco.

-- Por favor, trate-a com mais respeito. – Alerta o mestiço atraindo a atenção de todos para si.

-- Ignore-o Mestre. Ele perdeu as boas maneiras há muito tempo. – Diz a ruiva, ouvindo o mercenário gargalhar alto.

-- Mestre?! Esse não poderia ser...?! – Surpreende-se, vendo o homem aproximar-se de si e retirar o capuz, revelando seu rosto.

-- Sou Pluto Teslaiel Rioran. Herdeiro de Vándur e Shariêh. – Apresenta-se, encarando profundamente as orbes esverdeadas do homem. – Quem é você?

-- Cazir, mais conhecido como Meia-Noite. – Faz uma pequena pausa. – Então os boatos são verdadeiros. O que traz um mestiço á minha cidade? – Indaga desdenhosamente.

-- Vim á pedido de minha mãe para ser treinado por você. – Responde calmo.

-- E o que o faz pensar que eu me uniria á um mestiço? – Lança um olhar cortante.

-- Cuidado com o que fala mercenário! Não permitirei que ofenda o meu príncipe! – Rosna Dasliel.

-- Adoro vê-la zangada. – Sorri sádico.

-- Treine o meu senhor e será recompensado por Alaya! – Fala firme.

-- Recompensado, ham?! Acompanhem-me! – Completa, dando as costas ao grupo e rumando para uma taverna.

Todos seguiam Meia-Noite em silêncio, até estes entrarem no rústico e fervilhante bar. Haviam pessoas brigando, bebendo, inalando a fumaça das velas Largon, poderosos alucinógenos. Embora fosse muito desorganizado, o local era o principal ponto de coleta de informações e barganhas. Ao adentrarem, o grupo atraiu toda a atenção para si, principalmente Pluto. Cazir caminha até o centro da taverna. Um velho senhor caolho, cujo estava no balcão, fez uma leve movimentação com a cabeça e todos os presentes calaram-se.

-- Á partir de hoje, um mestiço caminhará entre nós. Quem ousar atacá-lo ou feri-lo será decapitado sem julgamento! – Avisa Meia-Noite.

-- Não os ameace! Quero que me aceitem como sou. – Pede o príncipe, tocando gentilmente o ombro do mercenário.

-- O que você quer não me interessa! Esta é a minha terra mestiço, sua coroa não tem valor aqui! – Esbraveja irritado, afastando a mão do homem com um tapa.

Com grande velocidade, Dasliel empunha sua espada e num rápido movimento aponta-a para o mercenário, cujo surpreende-se com a atitude da ruiva.

-- Nunca mais ouse levantar a voz para o meu Mestre! – Vocifera a mulher.

-- Não faça isso Dasliel. Não estamos aqui pra lutarmos entre si. – Interrompe Pluto, fazendo a guerreira baixar a arma.

-- Sábias palavras... Príncipe. Vamos. – Cazir deixa a taverna junto dos outros, sob os murmúrios da platéia.

*

O coração de Pluto, mais uma vez, estava inquieto. Tudo estava acontecendo muito rápido e ele sentia que as rédeas de sua vida estavam sendo manipuladas por algo ainda maior do que imaginara. Fora cuidadosamente instalado na mansão de Cazir, cujo era o governador da cidade. Mesmo sendo envolto por muitas regalias, não sentia-se confortável.

Debruçou-se sobre a sacada da varanda, pondo-se á admirar a beleza noturna, ouvindo o som das pessoas indo e vindo pelas ruas. Porém, fora tirado dos seus devaneios por uma criada, cuja qual veio dar-lhe o recado de que estava sendo solicitado por Meia-Noite na entrada da mansão. Sem demora, o príncipe foi ao encontro do mercenário, que era acompanhado por Dasliel e ambos já estavam sobre os cavalos.

-- Ande! Monte no seu cavalo agora. Vamos treinar. – Ordena o governador.

-- Mas... Agora? – Indaga confuso.

-- Não disponho de tanto tempo ocioso como você príncipe. Agora pare de reclamar e faça o que mandei! – Esbraveja impaciente.

-- Por favor Mestre, faça o que ele diz. Não se preocupe, eu estarei com você. – Completa gentilmente a mulher.

Sem delongar-se, Pluto monta Araken e segue o mercenário. Cavalgam até chegarem á uma clareira ás margens de um lago. A lua iluminava o local transformando as águas num grande espelho refletor. Haviam algumas máquinas artesanais, várias armas e alguns homens praticavam exercícios naquele momento.

Um soldado vem até eles, levando os animais para descansar. Cazir vai até a margem do lago e posiciona-se.

-- Venha mestiço. Mostre-me o que sabe. – Convida Meia-Noite.

Um tanto inseguro, Pluto aproxima-se, ficando frente á frente com o guerreiro. Com um sorriso de canto, o mercenário faz o primeiro movimento, desferindo um golpe com uma espada. Pego de surpresa, o príncipe rola ao chão, desviando milimetricamente do ataque.

-- Estou sério e é melhor que você fique também! – Alerta o homem, soltando uma gargalhada.

Sacando uma das espadas que pousavam sobre uma mesa, Pluto desfere um intenso golpe, colidindo as armas. No entanto, a peleja era dominada por Cazir, que sem esforço algum, bloqueava todos os golpes, contra-atacando cada vez mais intensamente. Tencionando o corpo para frente, num rápido movimento, Pluto ataca o mercenário de frente, porém, o mesmo desfere um golpe na espada, lançando-a longe e chuta ferozmente a barriga do príncipe, cujo rola alguns metros até chocar-se contra uma árvore.

-- Então toda aquela história sobre os mestiços era mentira. Pensei que ao menos você tivesse mais determinação de luta, mas do jeito que é protegido pela Dasliel, não passa de um fracote. Não perderei o meu tempo com você! – Diz o governador, sorrindo e sendo seguido pelos soldados. A ruiva apenas observava aflita.

-- Você não tem idéia do que diz... – Retrucou Pluto, entre dentes.

-- Ouvi dizer que sua filha foi seqüestrada... É assim que planeja resgatá-la?! Que simplório! Pobre menina... – Cazir diverte-se.

Com dificuldade, devido ás várias escoriações pelo corpo, o herdeiro levanta-se do chão, tomando pela bainha a bela espada em sua cintura. Os olhos do governador se abrem incrédulos. Pluto estende o braço, segurando-a horizontalmente. Lentamente, o príncipe retira a arma da bainha, diante disso Dasliel tenta correr a fim de impedi-lo, porém, uma rajada poderosa de vento lança todos contra as árvores. Em seguida, uma massa de energia se forma ao redor do mestiço, cujo olha fixamente para a lâmina que emite um brilho vermelho. Um olhar maligno e sádico toma conta das orbes – agora cinzentas – do homem.

A ventania e a energia cessam repentinamente e o príncipe passa á encarar assustadoramente Cazir, cujo ajuda a mulher a levantar-se.

-- Enfim, livre. – Diz ele, num tom áspero e desconhecido. – Que coração mais turbulento! – Leva a mão ao peito. – Vou fazer o que você deseja... Porém, não tem coragem!

-- Mestre! – Exclama a ruiva, recebendo um fixo olhar do homem, que mesclava luxúria, cobiça e pura maldade.

-- Não. Esse não é o Pluto. É algo... Ruim... Prepare-se! – Sussurra o mercenário, pondo-se á frente da mulher.

-- Presumo que já saiba o que vai acontecer com vocês. Minha sede por sangue precisa ser saciada. Porém, se me entregarem essa mulher, deixarei um, ou talvez dois, viverem. Façam sua escolha! – Completa, estreitando ainda mais as orbes metálicas.

-- Meu príncipe... – Murmura Dasliel, tomada por medo e aflição, tem seu ímpeto de correr até o mestiço interrompido pelo braço de Cazir á sua frente.

-- Sei o que pretende e não a entregarei pra você! – Vocifera o governador.

-- Escolha errada. – Fala entre dentes, soltando uma gargalhada cruel em seguida.

Com uma explosão de pura velocidade, Pluto ataca o mercenário, deixando ondas de ar por onde passa. Meia-Noite bloqueia a investida com sua espada, entretanto, a força parte-a ao meio, lançando-o longe. De pé, o príncipe fita todo o corpo da guerreira, cuja apenas encarava-o assustada. Á passos lentos, ele aproxima-se dela, exibindo um leve sorriso de canto, porém, um violento golpe nas costas joga-o ao chão, espirrando sangue através do corte.

Cazir tinha em mãos uma espécie de lança que se desdobrava em três partes. A arma emitia um brilho esverdeado e conferia-lhe a amplitude nas habilidades físicas. Tratava-se de uma madeira amarela, extremamente polida. A lâmina possuía um formato em folha e era surpreendentemente afiada.

Levantando-se do solo e gargalhando como louco, Pluto novamente parte para o ataque, uma áurea energética se forma ao redor de si, o olhar transbordando de ódio e crueldade. Tenciona o corpo para frente e impulsiona bruscamente, colidindo as armas. A força exercida pelos dois provocava um tilintar agudo vindo das lâminas. A extrema velocidade mal permitia que a peleja pudesse ser assistida. Numa investida suicida, Pluto vai de encontro á lança, porém, com incrível força, segura-a com a mão esquerda e com a direita, penetra a espada no abdômen do mercenário, fazendo este ir ao chão, desacordado.

Ignorando o sangramento na mão e nas costas, o homem rapidamente derruba todos os soldados, matando-o com um único e brutal golpe. Dasliel permanecia imóvel, incrédula com o que via. Aquele não era o seu senhor. Não poderia ser! Aturdida com os pensamentos, demorou á perceber que o príncipe chegara, a tomara em seus braços, pousando-a sobre o ombro e deixou furtivamente aquele local.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.