Pessoas Normais

Durante anos a terra foi palco de batalhas e mais batalhas de rangers contra monstros terríveis, algumas vezes, cidades eram destruídas no processo, pessoas tragicamente morriam, mas sempre víamos os power rangers vencerem e irem embora, como heróis costumam fazer. Já devem ter se passado uns quinze anos desde do último relato de batalhas, as últimas não foram muito divulgadas como antigamente, é como se as batalhas fossem mais contidas e afastadas da civilização, talvez até mesmo fora do planeta.

De qualquer forma, a terra se manteve em paz durante uns bons anos e não temos muitas aparições de monstros, ou alienígenas, ou criaturas de qualquer espécie. Os humanos continuam humanos apesar de saberem muito bem que não estão sozinhos nesse universo, até mesmo o medo do desconhecido diminuiu, mas a vida continua a mesma, chata, pacata, até onde as pessoas deixam ser. O que tenha mudado, talvez, tenham sido as reportagens sobre tragédias, não se tem a mesma comoção que tinha antes, parece que não há mais tanto alarde sobre casos de corrupção, homicídios, estupros, acidentes fatais como se tinha antes. Pensando bem, a população estava acostumada com casos periódicos de algum lunático tentando destruir alguma cidade, criaturas invadindo praças públicas e algum vilão monstruoso tentando dominar ou destruir a Terra. Se tem até mesmo a impressão que os casos de violência diminuíram. Desinteresse, quem sabe.

Mas no meio dessa população, que se acostumou a ser ameaçada e protegida pelos rangers, devem se dar destaque principalmente aos que, em tese, parecem ser pessoas normais, mas escondem algo que fazem toda a diferença, algumas dessas pessoas nem fazem ideia o que elas mesmas têm escondido, pode ser um talento, uma doença, um transtorno, ou até, porque não, um poder. Dentre eles pode se dar destaque a quatro jovens que moram em bairros de arredores vizinhas à famigerada Alameda dos Anjos, cidade considerada o lar dos Power Rangers, um lugar considerado histórico e turístico. De fato, pessoas visitam a cidade para ver, acredite, pontos que foram destruídos em batalhas épicas, além de um museu dedicado aos Power Rangers, com peças destruídas de Zords, pedaços de uniformes, fósseis de monstros, dentre outras iguarias.

Voltando aos jovens, eles, aparente, não possuem muita coisa de especial, e de fato não possuem nada de especial. Michele, por exemplo, ela tem 21 anos, tem pele parda e cabelos marrom cacheados, trabalha em uma loja de roupas comuns como atendente, gosta de música, curte principalmente rock, sua vida é bem pacata, vive com sua mãe, que é dona de casa, ou seja, ela é quem leva o sustento, não deixa faltar nada para sua mãe, e nem para ela, tem problemas como qualquer um, tem amigos como qualquer um, tem contas a pagar como qualquer um, seu desempenho no trabalho não impressiona e nem decepciona. Como é ela quem sustenta a casa, às vezes, exagera ao querer mandar na mãe, tem hora que parece que ela é a mãe ali. Em seu quarto, Michele mantém uma foto ao lado da sua cama, onde estão ela, sua mãe e seu pai, que faleceu em um trágico acidente quando ela era mais nova. Todo dia, antes de dormir e depois de acordar, ela olha para aquela foto como se ainda fosse vê-lo no dia seguinte após acordar.

Em um bairro vizinho ao de Michele mora um jovem estudante chamado David, ele estuda Ciências Contáveis em uma universidade pública, tem 23 anos, é negro de cabelo bem curto, possui pais zelosos, porém rigorosos, mas isso não o incomoda, afinal, ele é muito dedicado aos estudos, mas principalmente aos estudos da cultura pop, é um nerd de carteirinha, gosta de ler quadrinhos e participar de convenções geek. Como é fã de super-heróis, obviamente, é completamente obcecado pelos Power Rangers, ele sabe praticamente tudo a respeito, tudo que se podia pesquisar sobre o assunto ele já pesquisou, tanto que fala que gostaria de fazer arqueologia apenas para poder procurar qualquer coisa que ainda não foi encontrada sobre os Power Rangers. Claro que toda essa obsessão por heróis e coisas do gênero não o tornam muito popular, isso claro, o atrapalha bastante, talvez não tanto quanto já atrapalhou diversas vezes em sua vida, na escola, em cursos, festas, ou qualquer outro local que exija desempenho social.

No mesmo bairro de David mora uma moça chamada Sarah — apesar disso os dois não se conhecem ainda — ela também possui sonhos e ambições, mas ela sempre tenta manter os pés no chão, tem 26 anos, é recepcionista de uma corretora de seguros, é branca de cabelos negros ondulados, gosta de fazer trabalhos voluntários em prol dos necessitados, ela e sua pequena irmã de 8 anos moram com o pai, pois ele se separou de sua mãe, com quem ela tem relacionamento conturbado, já com o pai a coisa é diferente, ela tem por ele um amor e um zelo enormes, no qual ela divide com sua irmã. Todo dia ela a leva e busca na escola, às vezes confundida como sua mãe, pelo tamanho carinho com que a trata. Na casa a pequena garotinha é prioridade, os três vivem em harmonia, mas tudo fica conturbado quando a mãe de Sarah aparece, ela muda completamente sua feição, mal dá para reconhecer a gentil e prestativa moça. Brigas ao telefone e quando se encontram é quase inevitável. A mãe tem direito de visita e também de ficar alguns dias por mês com a pequena menina, contrariando o gosto de Sarah é claro. Como o pai é bastante pacifista não gosta de entrar em conflito com a ex-esposa, principalmente na frente da caçula, então ele sempre tenta apaziguar o ambiente, e Sarah sempre o ouve pelo respeito que tem por ele. Na verdade, Sarah rejeita qualquer coisa que venha do lado da família de sua mãe, nem mesmo o pai dela possui tanto desprezo pela ex, mesmo quando algum membro da família tenta ajudar em alguma coisa, e esse membro é do lado de sua mãe, ela não dá ouvidos e vira as costas, já quando precisam de ajuda ela prefere não se meter, de fato, Sarah pode pôr a mão no fogo por alguns e rejeitar outros.

O quarto jovem mora no centro da cidade vizinha a Alameda, Tiago, de 20 anos, rapaz alto, de pele clara, cabelo liso curto. Ele vive com os seus pais e uma tia, sendo ambos de idade avançada. Tiago trabalha em uma firma de porte médio como auxiliar de escritório, com uma rotina bem repetitiva e vagarosa, não tentou se dedicar muito aos estudos, apesar das várias tentativas de seus pais de convence-lo a pensar no seu futuro, eles queriam que ele fosse um delegado, como o avô dele foi, porém ele nunca deu ouvidos, decidiu apenas seguir com o básico, ter uma rotina normal, fazer exercícios, beber no fim de semana com os amigos, viver entre uma paquera e outra. Ele nunca escondeu que essa é a vida que ele quer, tudo pelo preço de ter um emprego chato, e sem ligar para o que os seus pais dizem. Porém ele só dá ouvidos a sua tia, ele tem um grande carinho por ela e faria qualquer coisa pelo seu bem-estar, ele a considera como a sua verdadeira mãe, pois ela, mesmo sendo apenas uma enfermeira, ensinou valores que seus pais não conseguiram passar, talvez a arrogância e a prepotência de achar que o que está fazendo está sempre certo, seja herdada de seus pais. Segundo ele: “Dinheiro e status são para os estúpidos que não sabem dar valor a sua própria humanidade e estão sempre querendo estar acima dos outros para se sentir melhor”. Mesmo assim, a tia dele o vê como um filho, e o ama incondicionalmente.

Os quatro são exemplos isolados de pessoas que vivem numa era pós-rangers, a vida não mudou radicalmente, não pelos acontecimentos em si, mas pelo jeito que as pessoas reagiram àquilo, a humanidade sempre se incomoda com um acontecimento marcante de início, mas se acomoda e se acostuma tornando tal acontecimento mais banal com o tempo, servindo de matéria de jornal para ganhar audiência, título de vídeo do youtube para ganhar inscritos, publicações no facebook para ganhar curtidas, enfim, a sociedade contemporânea consegue pegar qualquer informação e transformar em um meio de se favorecer. Mas, e se um dia tivermos um acontecimento tão grande e tão significante que mudaria a vida de toda a população da Terra para sempre? E sem retorno? Não se sabe ao certo qual seria a reação das pessoas, mas, com certeza, algo grande está aguardando para acontecer a qualquer momento.