Os Filhos de Umbra

Capítulo Vinte e Três: 1993 -577 dias antes


Capítulo Vinte e Três: 1993 -577 dias antes

A vida é como uma sala de espetáculos; entra-se, vê-se e sai-se.

Pitágoras

25 de Abril de 1993

—Mas por que não? –perguntei exasperado.

—Porque não. –foi a resposta de mãe.

— “Porque não” não é resposta. –bati os pés.

—É resposta sim, claro que é.

—Não. Quero uma justificativa justa!

—Pedro... –ela me olhou ameaçadora de onde arrumava a mesa para nosso café, cortando as torradas como gostava de fazer.

—Mãezinha, por favor. –me aproximei de sua cintura com grandes olhos de cachorrinho perdido.

Ela colocou as mãos na cintura, um olhar de quem estava avaliando a situação. –Promete se comportar?

—Prometo!

—E promete cuidar dos seus amigos para que eles se comportem?

—Prometo!

—Promete tomar conta do Leo?

—Prometo!

—Promete me dar um beijo?

—Prometo, pera... O quê? –tombei a cabeça confuso.

Mãe riu, se abaixou na minha altura e virou a cabeça num ângulo que deixava claro que ela queria um beijo na bochecha. Respondi rapidamente a dando um super beijo na bochecha enquanto apertava os braços no pescoço dela e ela ria. Eu amava a minha mãe, num nível que não cabia dada a minha altura. Até hoje ela e meu pai são as coisas que eu mais sinto falta. Eu sei que faria qualquer coisa para protegê-los.

Voltando ao ponto, era tradição os rapazes irem pescar no Lago de vez em quando. Pai, Seu Vinicius, Seu Otávio e Seu Matheus iam para o lago pescar, fazer piadas e se divertir longe das mulheres. Era meu sonho participar há séculos, mas geralmente era um dia apenas para os pais. Depois de muita insistência, meu pai finalmente concordou em nos deixar ir para brincar perto –desde que não incomodássemos –e estava faltando a permissão de minha mãe.

—Certo, certo. –ela me soltou. –Melhor arrumarmos um piquenique pra vocês. E sungas.

—Eu vou arrumar roupas para mim e pro Leo. Você é a melhor mãe do mundo! –a abracei uma última vez antes de correr pra fora para encontrar o meu irmão.

Assim que saí de casa tropecei num carrinho de brinquedo e caí de cara no chão. Minha testa doeu imediatamente e olhei irritado para o chão. De repente, uma multidão de carrinhos estavam estacionados em fila e meu irmão estava no final, usando dois caminhões para construir um castelo de terra, que era na realidade uma grande montanha de terra no chão e uma quantidade maior ainda de terra nele. Quase me arrependi da ideia toda pois Leo ia levar um século para se livrar da terra e minha mãe ia ficar uma fera com a bagunça.

—Leo... O que você está fazendo? –me aproximei lentamente.

Leo me deu um sorriso assim que me notou e até levou um caminhão ao som de “vrom vrom” para mim. As roupas dele, outrora amarelas listradas com azuis, estavam literalmente marrons. O cabelo claro estava praticamente preto. Suspirei.

—Brincando de carrinho. –ele respondeu.

—Não, Leo, isso aqui é o primeiro passo da nossa morte. Porque a mamãe vai matar a gente quando vir.

—Não seja chato.

Suspirei novamente. Às vezes era insuportável ser o irmão mais velho.

—Leo, eu consegui que a mãe nos deixasse ir com o pai pro Lago, mas você precisa se comportar.

A gente vai pescar?!—ele praticamente gritou.

—Não! Papai disse que não era para a gente incomodar, mas podemos ir com eles e nadar um pouco. Mas você vai ficar sob minha responsabilidade. Pode ser?

—EBA! –ele gritou, sem querer jogando os caminhões em suas mãos para cima e jogando mais terra em cima de nós dois. –Opa....

Coloquei a mão no meu cabelo, sentindo os grãos de terra entre os fios, no meu rosto e sujando a blusa azul clara que eu usava. Eu devia saber que eu ia acabar me arrependendo de ficar tomando conta deles. E isso foi só o Leo. Imagina a bagunça que o resto dos meus amigos iam fazer.

Dai-me forças.

(***)

Saímos de casa no início da tarde depois de um almoço rápido. Papai nunca ficava o dia inteiro fora, mas nada o impediria de pescar a tarde inteira. Era um lance que ele fazia desde menino, inclusive fazia o melhor peixe assado que eu já conheci. Vestiu a camiseta velha de pescar e a calça velha de pescar e as botas velhas de pescar e saiu quase brilhando com um chapéu de palha, uma bolsa com iscas e anzóis e a vara de pescar na mão direita. Caminhávamos na frente dele quase pulando –Leo convenceu mãe a deixar ele amarrar um caminhão numa corda para levar como um cachorrinho e estava tão ridículo que chegava a ser legal.

Pai assobiava atrás de nós, o som relaxante enquanto caminhávamos. Assim que chegamos no chalé de Pablo, Seu Vinicius, Pablo e Dete nos esperavam sentados nas escadas. Seu Vinicius trazia o violino bem guardado, mas que levava sempre a tiracolo. Dete estava de macacão jeans com regata preta, Pablo usava uma blusa estilo camuflada junto com uma bermuda jeans e Seu Vinicius usava uma camiseta xadrez e uma calça, assim como meu pai.

—Levando os meninos pra passear, Vinicius?

—Pois é, Olavo... Eu sozinho não aguento!

Pai riu, os dois se juntando para conversar do jeito que os adultos faziam enquanto Pablo e Dete corriam para nos acompanhar. Leo fez a cortesia de deixar Dete puxar a coleira do caminhão e logo os dois estavam empurrando o brinquedo. Crianças.

—Soube que foi você que convenceu os adultos a deixarem as crianças saírem. –Pablo começou.

—Eu faço o que posso. –me gabei.

—A sua mãe que é muito leve com você, isso sim.

—Diz isso porque nunca viu ela brava. –tremi só de pensar.

—E sua mãe fica brava?

—Fica. –eu e Leo falamos juntos, muito sérios.

—Ok... –ele meneou a cabeça. –Tem alguma coisa que queira fazer no lago hoje?

—Nadar, tá o maior calorão. –reclamei.

—Soube que a Belle vai levar o frisbee do Scooby pra gente brincar. –ele continuou. –Por que vocês não trouxeram a bola do Leo?

—Porque o Pedro estourou ela! –Leo já começou a reclamar. –O bestão aí pisou em cima dela sem querer e é tão pesado que ela furou. Mas a mamãe me prometeu comprar uma nova igualzinha.

—Eu literalmente caí em cima da sua bola porque você deixa o quarto todo bagunçado e a culpa é minha?

—Mas é claro!

—Pelo menos você vai ganhar uma bola nova, Leo. –Dete interrompeu. –Melhor que aquela sua ‘tava meio velhinha não é?

—É, acho que sim.

—Aquela bola era um dinossauro, por isso ela furou daquele jeito.

—Você respeite minha bola!

—Ah, fala sério!

—Pedro, você é o responsável hoje. –Pablo me deu uma cotovelada de leve. –Sem brigas.

—Certo. –suspirei longamente, já me arrependendo. Foi uma péssima ideia.

—Vai ser divertido, Pepê. –Pablo tentou me consolar, mas provavelmente foi uma provocação. Não sei dizer. –Vamos ser bons meninos.

Provocação. Definitivamente.

Antes que eu pudesse responder dignamente, a casa de Belle apareceu com Seu Otávio colocando algumas coisas na traseira da caminhonete, provavelmente iscas e lanternas e outras coisas. Ele acenou para nós quando nos viu, todos nós acenando de volta. Corremos até ele na esperança de encontrar a Belle, quando na verdade...

—Oi, gente! –Analícia cumprimentou, saindo da lateral da caminhonete de onde ela estava com Otávio.

—Analícia? –repeti.

Fazia tempo que eu não interagia realmente com Analícia. Ela estudava comigo e eu a via quase todos os dias, mas interagir mesmo... Percebi que estava sempre ocupado com meus amigos e acabei deixando Analícia de lado. Me senti mal por isso imediatamente.

—Quanto tempo. –falei.

—Pois é! –ela continuou animada, parecendo num dia bom. Ela usava um short e uma regata simples, mas o cabelo foi preso em chiquinhas, provavelmente pelo calor. –O Seu Otávio passou lá em casa e disse que vocês iam pescar, e eu pensei em vir junto! Tudo bem?

—Claro! –exclamei imediatamente. –Faz tempo que a gente não se vê.

—Legal! –ela respondeu de volta, um brilho nos olhos.

—É. Legal. –uma voz murmurou.

Belle apareceu em meu campo de visão, os braços cruzados, vestida num simples vestido vermelho de bolinhas com tênis.

—Oi, Belle. –Analícia cumprimentou.

—Pelo menos a Belle ganhou um “oi”. –Pablo murmurou ao meu lado.

—Oi, Analícia. –Belle respondeu, ainda cuidadosa perto da menina. –Você vai?

—É. –ela adicionou. – O Pedro concordou.

—O Pedro concordou... –Belle repetiu. Ela piscou. –Acho que todo mundo merece uma segunda chance, não é Analícia? Por que não começamos de novo? –ela pausou e estendeu a mão. –Prazer, Belle.

Todos pausamos por um instante, quase prendendo a respiração. Um segundo. Dois segundos. E Analícia apertou a mão de Belle, parecendo sorrir.

—Prazer, Analícia. –respondeu.

Naquele momento eu percebi que algo estava errado com Analícia pela primeira vez. O sorriso não chegava aos olhos e parecia realmente que ela empurrava os lábios com os dedos para que eles sorrissem. Ela estava friamente calma. Me pareceu errado. Analícia detestava Belle, por que fingir agora?

—Que bom que somos todos amigos agora. –Leo começou para quebrar o clima.

Com a distração dele, eu olhei para o lado. Dete encarava as mãos das meninas como quem via um filme de terror, parecendo realmente assustada. Me perguntei se ela havia visto o mesmo que eu, mas parecia mil vezes pior. Dete estava vendo o começo da nossa morte.

—Hã, as meninas estão terminando de passar protetor solar. –Belle avisou. –Elas devem vir daqui a pouco. E a Maria preparou uns lanchinhos.

—Adoro a comida da Maria. –Pablo falou.

Que clima estranho.

—E o frisbee? –perguntei de repente.

—Com a Emily. –Belle respondeu. –Ela estava brincando com o Scooby. Sabe. Antes.

—Ah, sim. Vai ser legal lá no lago, vocês estão levando roupas de banho? –mudei completamente de assunto, na expectativa de acabar com o clima ruim.

—Indo nelas.

—Sim!

—É óbvio, né Pedro?

Dete e Leo se abstiveram de responder, apenas revirando os olhos. O que era absurdo, era uma pergunta válida, mas tudo bem. Comecei a falar do que meu pai estava levando para a pescaria e do que tive que falar para minha mãe nos deixar passar o dia no Lago também para passar o tempo, que era o que fazia de melhor. Depois do que me pareceu muito tempo, Mel, Emily e Maria apareceram. Mel estava em um biquíni azul forte de flores, cuja parte de cima era praticamente um top e a parte de baixo era quase um short, complementando com o chapéu grande, os óculos escuros e a toalha nos ombros. Emily estava de maiô roxo simples e Maria usava um vestido florido. Consegui enxergar Lerina na varanda, bebendo café.

—Você vai pra praia, Mel? –Leo perguntou.

—A gente tá levando um vestido pra ela. –Belle garantiu.

—Eu estou maravilhosa, eu sei! –Mel riu, fazendo pose.

—Claro que está. –Maria concordou.

—Não está não. –Leo rebateu.

—LEO! –exclamei.

—O quê? –Leo me olhou sem entender.

Leo nunca desenvolveu toda a coisa do filtro mental, onde você para de falar tudo o que pensa. Infelizmente, isso nos deixava em várias situações constrangedoras. Quase bati a mão na testa, mas não queria deixar tudo pior.

—Estão todas lindas. –Belle comentou em meu lugar. –Podemos ir?

—Sim, sim. Prontíssima! –Mel respondeu, já se movendo em direção a Seu Otávio.

—Certo. –Maria colocou o cabelo para trás da orelha, se abaixando para ver Belle melhor. –Não se esqueça do protetor solar, e de beber muita água, e de tomar cuidado na água e de não ficar longe do seu pai.

—Tá, Maria. –Belle já começava a ficar vermelha.

—Até mais tarde. –Maria falou antes de voltar para a casa, gastando um instante precioso para bagunçar o cabelo de Belle.

—Tchau, Maria! –falamos antes de seguir Mel até a caminhonete, subindo na traseira dela como já estávamos acostumados.

Nos sentamos apoiados nas paredes da caminhonete como sempre fazíamos, os utensílios de pesca ficando descartados perto da janela do motorista, mas nós não desejávamos ou iríamos tocar naquelas coisas. Sabe-se lá o que eles faziam com aquilo. Fiz orelhinhas em Pablo enquanto ele acenava para Maria, mas assim que ele percebeu deu um tapa em minha mão.

—Idiota. –murmurou.

—Ah, não seja chato. –revirei os olhos. –Foi pela nossa amizade.

—Implica com o Leo um pouquinho.

—O que tem eu? –Leo perguntou.

—Quer que eu implique com você? –questionei, e senti a caminhonete voltar a vida sob mim.

—Acho que prefiro quando eu implico com você. –foi a resposta dele.

—Pode implicar comigo, Pedro. –Dete sorriu para mim, tentando me consolar.

—Awn, Dete.

—Sem implicar minha irmã, por favor.

—Eles são sempre assim? –Analícia perguntou, olhando pra Belle.

—Sempre. –as três meninas do nosso grupo responderam juntas.

-Geralmente é pior. –Mel adicionou. –Hoje eles estão até comportados.

—É porque o Henrique não chegou. –Belle falou.

—E eu aqui achando que o Pedro seria o responsável... –Analícia riu.

—Olha, eu sou um anjo. Só digo isso.

—Anjo caído, né? –Emily arqueou uma sobrancelha pra mim.

—Podemos falar de outra coisa? –Dete pediu imediatamente.

—Tipo do azul escandaloso que a Mel está usando?

—LEO!

—O quê?!

(***)

—O último a entrar é a mulher do bagre! –Leo gritou assim que estacionamos, pulando da caminhonete e tirando a roupa no caminho, sendo o primeiro a entrar na água.

Revirei os olhos, já considerando vendê-lo para uma tribo indígena e parei para apreciar o lugar. O sol brilhava entre os montes, as árvores balançavam ao vento, a água estava limpinha, passarinhos passeavam e a brisa das árvores preenchia nossos narizes. Respirei fundo. Adorava o cheiro da natureza.

Seu Matheus e Henrique já estavam ali, o homem já sentado pescando e Henrique no meio da lagoa brincando.

—Henrique, assim você vai espantar os peixes! –Matheus brigava quando Henrique se empolgava demais.

Descemos da caminhonete, nossos pais fazendo o mesmo enquanto conversavam entre si. Acabei esperando por Analícia enquanto os outros seguiram sem mim, já tirando as roupas e entrando na água com o cuidado de fazer o mínimo possível de barulho e de tomar distância de onde era mais fundo, consequentemente onde os pais iam pescar.

—Tudo bem com você, Analícia? –perguntei.

—Claro! –foi a resposta dela com um sorriso. Ela parou para se livrar da blusa e do short, e eu tomei o cuidado de olhar para as árvores enquanto isso. Várias mudas. Aquela tinha um passarinho. –Pronto, Pedro.

—Certo. Vamos? –chamei.

—Acho que você vai ser a mulher do bagre! –ela gritou antes de correr na minha frente.

—Ei, não vale!

Pulei pouco depois dela, a água explodindo ao nosso redor e nossa risada sendo ouvida até debaixo d´água. Assim que emergi e abri os olhos, só tive a chance de ver Henrique antes dele mergulhar e de me levar para baixo, me puxando. Tentei me soltar, mas ele só sossegou quando conseguiu me arrestar até a galera.

—Tá fraquinho, hein Pedro? –ele riu.

—Ah, cala a boca. –mandei, jogando um pouco de água nele.

—Do que vamos brincar? –Leo perguntou.

—Que tal Marco Polo? –sugeriu Henrique.

—Não é perigoso fazer isso no lago? –Mel rebateu.

—Vamos cuidar de você, Melzinha, relaxa.

Mel revirou os olhos em resposta.

—Todo mundo sabe a brincadeira? –indaguei.

—Hã, eu não. –Analícia levantou a mão, como se estivéssemos na escola.

—É simples. –Pablo começou. –Alguém fica de olho fechado ou vendado e tem que procurar os outros falando “Marco” e a gente “Polo”. Você se guia pelo som.

—Ah, sim. Parece difícil.

—Nem é. –Belle garantiu. –Você vai tirar de letra.

—Eu sou Marco Polo! –Henrique gritou. –E é melhor vocês correrem.

Nadamos diretamente para o outro lado da lagoa, os risos e barulhos da água espantando os pássaros ao nosso redor.

(***)

Conforme a tarde foi passando, nós já havíamos brincado de quase tudo que podíamos, algum bicho picou o pé de Mel, que ficou revoltadíssima, e paramos para comer junto com nossos pais. Belle exigiu que todos passassem protetor, o que foi meio bom e meio ruim, já que fiquei besuntado o resto do dia. A terra chegava a grudar em mim. Até consegui assistir Belle passar protetor em Analícia, o que foi muito estranho.

Conforme o céu se pintava de laranja, roxo e vermelho, nossos pais voltaram a pescar, Pablo começou a tocar violino para dar um clima, Dete e Leo tiravam um cochilo na toalha, exaustos, e o resto de nós brincava com o frisbee numa roda.

—Não quer brincar, Pablo? –chamei em meio a música.

—Vocês deviam estar apreciando o meu Boy Paganini. –foi a resposta dele, voltando a tocar.

Ele já parecia muito perdido entre as notas do tal Boy Jaganini, então eu o deixei estar. Pelo menos não soava como música de funeral, o que já era uma evolução e tanto para Pablo. Dei de ombros e voltei a brincar com o resto da galera. O frisbee passou por mim, Analícia, Mel, Emily e Henrique. Quando Henrique foi tacar para Belle, errou e jogou o frisbee bem longe.

—Eu vou lá buscar. –Belle falou. –E que fique dito que o Henrique é um idiota.

Henrique rebateu, tenho certeza, só não consigo me lembrar do que ele disse exatamente. O que me lembro é que todos nós nos sentamos e esperamos, conversando sobre bobagens e voltando ao assunto do biquíni azul escandaloso de Mel, que quase deu uma de Emily e nos bateu com uma sombrinha. Aí um grito cortou a tarde como uma faca.

Belle.

—Belle?! –gritamos na distância.

Ainda dava para vê-la na distância, numa parte onde a correnteza aumentava e o lago já virava um rio, parada encarando a margem como quem viu um defunto, pálida e aterrorizada com o frisbee azul nas mãos.

—Belle? –Seu Otávio chamou, correndo na direção dela. –Belle, volte aqui!

Belle começou a chorar, o som dos soluços dela ecoando. Ficamos preocupados, tanto que Pablo parou de tocar. O clima ficou tenso. Quando Otávio se aproximou dela e viu o que ela tinha visto fez uma cara de seriedade assustadora, pegou Belle no colo e tampou os olhos dela.

—Olavo? –ele chamou. –Precisamos chamar a polícia.

—O que foi? –meu pai gritou de volta.

Otávio olhou diretamente para ele. –Tem um corpo morto aqui.

(***)

A tarde foi arruinada depois daquilo. Otávio levou todo mundo de volta para casa sem direito a discussão num silêncio mortal, enquanto meu pai e Seu Vinicius esperavam as autoridades para recolher o corpo. Belle não falou nada o caminho inteiro. Seu Otávio faltou grudá-la nele, já que ficou com ela o tempo inteiro. Infelizmente, Mel e Belle foram as únicas que conseguiram andar na frente, o que me impediu de consolar minha amiga.

—O que houve com ela? –Leo indagou num sussurro.

—Ela viu algo que não estava pronta para ver. –Foi Dete quem sussurrou de volta, parecendo extremamente triste.

—Então ela está doente? –Leo olhou para mim em buscas de respostas que eu claramente não tinha.

—Acho que ela só está em choque. –Pablo respondeu no meu lugar, tentando ajudar.

Eu não entendia. Belle estava tremendo e chorando baixo desde que saímos, o que gera minha preocupação e curiosidade: O que ela viu que foi tão horrível? A vontade de saber quase me fazia querer voltar. Mesmo assim, eu não queria ficar como Belle estava agora.

—Pedro? –Analícia me chamou, o vento balançando o cabelo dela para todo canto. Ela perdeu os elásticos no lago, então o cabelo jazia solto. –Terra pra você?

—Que final ruim para uma tarde boa. –lamentei.

—É. Faz tempo que a gente não ia no Lago. –Henrique adicionou. –Nem saíamos todos nós.

—O Lago vai continuar ali. –Pablo rebateu.

—É, mas brincar onde tem gente morta? –Emily fez uma careta.

—É só ficar no rasinho, ué.

—LEO!

—Calem a boca! –gritei. –Vamos focar na Belle por enquanto, ok?

Um silêncio caiu sobre a gente, todos os olhos focados em mim, mas me mantive firme. Eu era o responsável pelo dia e olha só o que aconteceu –até os mortos vieram atrapalhar. O dia acabou super errado e eu me sentia culpado por isso –toda a ideia de vir foi minha. Coloquei as mãos no rosto e suspirei por um momento, liberando a tensão.

—Ei. –Pablo chamou, sempre o primeiro a me levantar de novo. –Eu conheço você e não foi sua culpa, ok? Você não pode controlar tudo, Pedro. O que importa de verdade é que tivemos a chance de passar o dia juntos de novo.

—E vamos passar pelo resto dessa história juntos também. –Henrique adicionou.

—Seja o que acontecer, Pedro, eu estou com você. –Analícia falou. –Ninguém está bravo.

—Eu sei. –suspirei. –Só sou um péssimo responsável.

—Pedro. –Leo chamou, me olhando sério e buscando minhas mãos. –Você é o melhor responsável do mundo. Nós confiamos em você.

Quase chorei o abraçando com toda a minha força. Pablo e Dete se uniram ao esforço, e logo nós assistíamos a estrada passando praticamente colados um no outro.

Como sempre passaríamos pelas dificuldades.