Os Filhos de Umbra

Capítulo Catorze: 1990 – 1681 dias antes


Capítulo Catorze: 1990 – 1681 dias antes

Todos os caminham levam à morte. Perca-se.

Jorge Luis Borges

15 de Abril de 1990

O Domingo de Páscoa veio com muita espera por todas as crianças de Sococó da Ema. Páscoa, por si só, era uma data importante, carregava uma lição muito linda de vida e morte que quando eu ouço hoje me traz um gosto amargo na boca. Tudo o que aconteceu comigo só me fez respeitar ainda mais Jesus Cristo, não só pelas lições que ele passou, mas por ter aguentado tudo aquilo. Crucificado todos esses anos por algo que eu nem fiz, passei a entender o que ele passou num nível bem mais profundo que o quê os teatros que víamos na escola passavam.

Em Sococó da Ema, levávamos a Páscoa bem a sério. Todos os anos, as mães organizavam A Caça Aos Ovos. Era um ritual para procurar os ovos escondidos em caixinhas de palha pela cidade em uma competição pelo “Ovo Dourado”, através de pistas. No final da busca, enquanto saboreávamos os prêmios conquistados ao longo da tarefa, acontecia um teatro na praça perto da Igreja sobre a Páscoa. Era quase que o mesmo teatro todos os anos, o que era meio chato, mas minha mãe tinha me contado que esse ano, ao invés do teatro, a escola de balé da tia Gina ia fazer um musical, o que me deixou super animado e curioso para assistir.

—Então…. –começei, como quem não queria nada, para minha mãe no almoço. –O que a senhora esteve fazendo, mãe?

Minha mãe arqueou uma sobrancelha e me olhou, terminando de lavar a louça. Ela deu um meio sorriso, como quem já sabia o que eu queria, mas ia deixar rolar e ver até onde ia.

—Estive na cidade, organizando algumas coisas para hoje.

—Ah é? –fingi surpresa. –Nossa, eu nem lembrava. É Páscoa hoje, não é mesmo?

O meio sorriso de minha mãe cresceu, se tornando um óbvio sorriso.

—Sim, Pedro, hoje é domingo de Páscoa.

—Que coisa, não é? Hoje vai ter aquele negócio.... Como é o nome... –atuei, estralando os dedos. –Caça aos ovos?

—Vai, Pedro. Como todos os anos desde que essa cidade existe.

—Então... –brinquei com os dedos dos pés. –A senhora, por acaso, se lembra de onde escondeu os ovos?

—Claro que me lembro. –ela respondeu como se fosse óbvio, enquanto guardava a louça no escorredor. Alguns fios escapavam do rabo de cavalo, lhe dando uma aparência jovem. –Não estou não velha assim.

—Mas é claro que não! –exclamei exasperado. –A senhora está suuper jovem! Sabe, se eu não soubesse que é minha mãe, poderia te confundir com minha irmã!

—Ah, é? –minha mãe balançou a cabeça. –Bom saber. Só por curiosidade, o senhor está animado para pegar os ovos hoje por mim?

Eu odiava mexer com as galinhas. Elas sempre faziam um alvoroço e me perseguiam pelo galinheiro, isso quando não me bicavam por mexer com seus ovos. Era horrível.

Sorri, falso.

—Mas é claro! Tudo pela minha mãezinha querida! –exclamei. –Então, sobre os ovos-

—Estão deliciosos, enrolados em papel alumínio e escondidos, Pedro, prontos para a caça. Eu não vou te dar nenhuma pista antes da hora, isso seria trapaça e injusto com os outros participantes. Agora, os ovos, rapaz. –ela mandou, me entregando a cesta.

Fiz um bico e uma cara de choro para ela, esperando convencê-la. A cara que eu sabia que a convencia, alguns anos atrás.

—Os ovos. –ela repetiu. –Anda.

Fiz uma carranca, antes de marchar para o galinheiro. Pelo jeito, eu não ia conseguir arrancar nada de minha mãe antes da hora, ela não ia mesmo me ajudar. A mim! O próprio filho! O que daria a vida por ela! O grito das galinhas me impediu de continuar minhas reclamações mentais.

—Já vai, já vai! –gritei para as galinhas enquanto abria a porta.

E ela vieram em mim sedentas por carne.

(***)

A porta da Igreja na Páscoa parecia o pátio da minha escola no recreio. Crianças praticamente pipocavam, umas por cimas das outras. O ritual da caça aos ovos se estendia das crianças mais novas aos adolescentes, e tinha, obviamente, graus de dificuldade. Erámos divididos em grupos e o próprio Padre nos entregava a primeira pista que nós levaria a primeira caixinha com ovos de chocolate, onde encontraríamos a próxima pista, e assim sucessivamente até o Ovo Dourado. A vitória era de quem encontrasse o Ovo Dourado primeiro. Logicamente, decifrar as pistas antes do outro grupo era o segredo do sucesso, e eu estava preparado para ganhar esse ano. Eu precisava!

Meu grupo era o de sempre, eu, Leo, Pablo, Belle, Mel, Emily, Rick e Dete. O número máximo de participantes era dez, mas quanto mais gente, mais tínhamos que dividir os ovos no final, e dificilmente muita gente resultava em achar o ovo mais rápido. Estávamos prontos para ir pegar nossa pista quando uma mão segurou meu ombro, e ao me virar, Analícia me olhava.

Ela usava uma camiseta marrom de gola “v” com um macacão jeans, aqueles de short, e não calça, tênis roxos com flores e cadarços rosas. Tinha a mais pura expressão de inocência que alguém poderia fazer, e torceu as mãos nervosa quando me virei pra ela.

—Pedro? Eu posso entrar no seu grupo? –ela pediu, doce, olhando apenas para mim.

—É claro. –me senti compelido a responder, pelo nervosismo de Analícia.

—Oi? –Belle virou o pescoço como numa partida de ping-pong, entre mim e ela.

—Vamos... –dei a meus amigos meu melhor olhar. –Por favor? Por uma amiga?

Belle fechou a cara, mas a maioria concordou. Coração de criança sempre cabe mais um, não é?

O Padre chamou o próximo grupo e eu dei os passos para a frente, recebendo do Padre a primeira pista numa folha sulfite dobrada. Eu não poderia abrir agora, tinha que esperar a largada. Abrir antes da hora era igual a desclassificação, que era igual a ficar sem os ovos de chocolate, o que era inaceitável.

Com todos os grupos formados, nos sentávamos perto da linha da largada, marcada por bandeirinhas pregadas no chão, e ao som do apito, tínhamos cinco minutos para desvendar a primeira pista e depois a competição começava. Quem não conseguisse desvendar sua pista, ficava em desvantagem. Cada grupo tinha seu próprio Ovo Dourado, e ganhava quem o encontrasse primeiro. Me sentei no centro do meu grupo, e desembrulhei a pista quando permitido.

Na folha, numa caligrafia que não era da minha mãe, estava:

Decifre:

Para pegar seu PRÊmio

Graças à seu próprio FEIto

Vai ter que pensar em TUdo

E precisa ser RÁpido

—Alguém tem alguma ideia? –sussurrei.

—Vamos pensar. Tem algo escondido. –Mel tomou o papel, repetindo a pista várias vezes. –Um lugar pra pegar o prêmio... Rápido...

—O supermercado? –Henrique tentou. –Lá tem de tudo e rápido.

Mel franziu a testa.

—Não acho que seja isso.

—Tem uma ideia melhor? –ele retrucou.

—E se não for? –Belle rebateu. –Vamos ver nossas outras opções, primeiro, sem brigas.

—Me dá esse papel aqui. –Emily tomou, e eu quase reclamei que não queria amassar o papel, mas deixei que fizessem como queriam. –Não acho que temos que deduzir, e sim decifrar.

—Tem letras maiúsculas, elas não podem ser aleatórias. –Pablo concordou com ela. – PRE – FEI – TU – RA... Prefeitura!

—Faz sentido. –Analícia ponderou. –Querem dividir, um grupo para o supermercado e outro para a prefeitura?

—Parece um bom plano. –Leo balançou a cabeça. –O tempo está acabando!

—Somos nove, me deixe pensar! –exclamei para ele. –Emily, Henrique, Mel e Belle para o supermercado, o resto comigo!

—E soa o segundo apito! –Maria anunciou, apitando.

E a boiada, digo, criançada, correu. Segui para a prefeitura da cidade sem nem pensar duas vezes, e mal olhando para o lado. Outros grupos foram para vários outros lugares, e eu via as crianças virando nas ruas enquanto corria.

A Prefeitura de Sococó da Ema era uma casa, nada muito especial. Ficava depois da escola de Dona Gina, e até era bonitinha, pintura branca com um portão verde, garagem, várias janelas pretas e um jardinzinho na frente. Sococó da Ema não elegia muitos políticos, e na época, eu só conseguia pensar no prefeito que ficava lá, e nem me lembrava de seu nome.

—Vamos olhar nos arbustos primeiros. –orientei. –Se esconderam, esconderam por aqui.

—Entrar lá dentro nem rola. –Analícia reclamou ao meu lado, tentando descansar da corrida.

—É domingo, está fechado. –Pablo constatou o óbvio, chegando também.

—Só procurem!

O jardim de frente ao prédio da prefeitura era basicamente muita grama, que nem sempre era aparada, com arbustos decorando as passagens. Era todo delimitado pela passagem para carros, outra para pedestres e etc. Alguns dos arbustos tinham flores, que era a única cor além do verde da grama e do cinza da escadaria. Ah! Tinha um pinheiro perto do portão também, era uma fonte de sombra muito bem-vinda.

Fui direto para o pinheiro, e meus amigos checavam os arbustos. Era a cara dos adultos esconder os ovos assim. Eu circulei a árvore, mas não vi nada.

—Achei! –Dete exclamou satisfeita, mostrando a caixinha de palha que eu sabia que continha ovos de chocolate deliciosos dentro.

—Isso aê, Dete! –Pablo trocou um “Toca aqui” com a irmã.

—A próxima pista, a próxima pista! –apressei.

—Calma! –Dete reclamou, abrindo a caixa para pegar a próxima pista. Estava pregada no fundo da caixa. –Aqui!

Quando tiramos o papel, se tratava de um envelope. O abri com pressa, e vários recortes caíram. Peguei alguns, e mostravam partes de uma imagem.

—É um quebra-cabeça! Dá aqui! –Leo o pegou, se abaixando e montando as imagens no chão. Pareciam umas dez imagens, e nos abaixámos para ajudar Leo a terminar. No final, a imagem de um banco estava formada.

—O que é isso? –Leo perguntou.

—Parece um dos bancos da praça. –comentei.

—Então estamos esperando o quê? –Analícia nos puxou.

—Os outros. –Leo afirmou, olhando para nós. –Será que eles chegaram a achar alguma coisa?

—Será que acharam problemas? –Dete corrigiu. Não seria a primeira vez que um grupo seria sabotado.

—Não temos tempo pra isso! –Analícia exclamou. –Eles estão bem!

Mordi os lábios. Eles provavelmente estavam bem, mas não esperá-los parecia errado, como abandonar o grupo. Por mais que eu não quisesse perder tempo, o certo é certo.

—Vamos esperar. –determinei. –Só mais um pouco.

—Pedro!

—Eles já estão vindo! –Pablo nos parou, apontando as quatro figuras que desciam a rua. Eu podia ouvir Mel gritar com Henrique.

Fiz um sinal de pare com a mão e gritei de lá mesmo:

—PRAÇA PRINCIPAL! –e fiz um sinal para eles correrem. Não levei muito tempo para segui-los.

Ao chegar na Praça, eles pararam, provavelmente para perguntar porque estávamos indo para a Praça, mas eu nem parei. Leo me ultrapassou no caminho e alcançou o banco primeiro, pulando na madeira para achar os ovos.

—Aqui! –ele puxou a caixa.

A posição dele era engraçada, de cabeça para baixo, barriga apoiada no assento do banco e pernas praticamente para cima, enquanto puxava com força a caixa. Nem adianta falar que ficaria mais fácil se ele não estivesse em cima do banco.

Puxei a caixa das mãos dele, vendo os ovinhos pequenos de chocolate lá dentro e sorrindo imediatamente, já me imaginando comendo. Foco nas coisas importantes, Pedro! O papel estava no meio dos ovos, e o peguei com cuidado.

Meus amigos finalmente chegaram, e Belle, Mel, Henrique e Emily capotaram no chão imediatamente, recuperando o fôlego.

—O que foi isso? –Mel reclamou.

—Uma maratona. E vocês ficaram com a parte divertida. –Belle respondeu. –Eu tive que ficar ouvindo a Mel e o Henrique brigarem.

—Mas eu estava certa!

—Nossa, falou a Senhorita Sabe Tudo!

—AHHHHH! – Belle tampou as orelhas. –Próxima pista.

Analícia pegou o papel das minhas mãos e se sentou no banco para ler.

Consegue ler?

XXXXXXXXIXXXXGXXXXXRXXXXEXXXXJXXXXXAXXXXX

—Eu acho que já vi uma pista parecida ano passado. –Emily falou. –É só tirar os “X” e pegar o que sobrou.

—Reciclar é tudo, não é mesmo? –Leo brincou.

Eu e Analícia analisávamos o papel, passando o dedo sobre as letras para encontrar algo que não fosse o X.

—I.... G.... R.... E....J....A. Igreja!

—Pelo menos está perto. –Mel se levantou, devagar, reclamando dos joelhos.

Francamente.

As portas da Igreja estavam abertas, mas as meninas da apresentação que viria em seguida usavam o espaço para ensaiar. Eu não vou mentir, bailarinas eram lindas. Apesar das roupas de época, elas conseguiam dançar e demonstrar as ações sem nem abrir a boca (algo que eu nunca entenderia. A linguagem da comunicação verbal era de alto valor para mim). Belle suspirou imediatamente, maravilhada, e a puxei pelo braço para evitar distrações. Fomos nos bancos, olhando por baixo deles por alguma coisa.

—Aqui! –Analícia chamou. Um dos bancos trazia uma caixinha.

Nos sentamos no banco, e Analícia abriu a caixinha. Cada caixinha vinha com cerca de cinco ovinhos de chocolate, e uma pista escondida em algum lugar. Nós levávamos cada caixinha que achávamos conosco durante toda a busca.

—Complete com as vogais. –Analícia leu.

Complete com as vogais.

D_L_G_C_ _

—Coloca A em tudo e a gente vê o que faz mais sentido! –Henrique sugeriu.

—Dalagaca?

—Não faz o menor sentido. –Mel balançou a cabeça, olhando Henrique como se ele fosse estúpido. –Vamos ver sílaba por sílaba.

—Gente, um lugar que começa com D. –Pablo sugeriu. –Diligacio?

—Diligacio? –Emily ergueu a cabeça. –Já sei! Delegacia!

—Faz sentido. –Dete a parabenizou.

—Vamos? –chamei.

—Vamos! –responderam em coro, se levantando.

A delegacia ficava a duas ruas. Tinha um muro baixo, com uma cerca ondulada, um portão de garagem e um de pedestres. A garagem cabia umas quatro viaturas, no máximo, e a parte da delegacia era uma casa que foi adaptada. Tinha uma pintura branca amarelada, o escrito “DELEGACIA DE POLÍCIA” e o símbolo da corporação. Graças a Deus, eu nunca tinha entrado, mas vire e mexe eu via alguém fardado nas ruas. Sococó da Ema era tão pequena que tínhamos um xerife, que cuidava da delegacia.

E pendurado no muro tinha uma caixinha de palha. Um dos oficiais olhava a movimentação.

—Tudo bem até agora? –ele indagou ao longe.

Eu não o conhecia.

—Tudo indo! –respondi.

—Boa sorte aí, criançada!

—Valeeeeeeeuuuu!

A caixinha estava pendurada no muro, e desfazer o nó foi o que deu mais trabalho.

—Essa tem figura! –Leo comentou feliz, vendo o papel por cima do ombro de Mel.

Mel tinha uma expressão de concentração muito engraçada. O nariz dela era levantadinho, então ele ficava cheio de rugas quando ela ficava concentrada. Era tanto engraçado quanto fofo.

—É um carro – ro + um vaso – so + um olho – o –ela leu.

—Pela amor de Deus, mas fácil que só se falassem a resposta. –Analícia disse, e nós a olhamos. –O que foi?

—Se quiser compartilhar com nós, reles crianças, a resposta... O palco é seu. –Belle ironizou.

—CARRO –RO=CAR; VASO –SO= VA; OLHO – O =LHO. CAR-VA-LHO. –ela explicou.

—Deve ser o carvalho da Praça. Aquele bem grande. –Henrique supôs.

—Tic-tac-tic-tac! –Dete falou com urgência.

—Corrida?

—Corrida.

E lá vamos nós, de volta à Praça principal. A corrida dessa vez foi mais divertida, com todo mundo tentando ultrapassar todo mundo, e alguns empurrões foram distribuídos. Mesmo assim, a adrenalina corria nas veias, o vento bagunçava nossos cabelos e o suor se formava na pele. Henrique, com suas pernas longas e aptidão física –que ele nem fazia questão de esconder – ganhou de nós e chegou ao carvalho primeiro. Ele era grande, maior que todas as árvores, com raízes grossas que chegavam a sair do chão. Henrique circulou o carvalho e apontou para um galho que estava relativamente alto.

—Emily, segura aqui pra mim. –Henrique passou a caixinha que estava com ele para a ruiva. –Eu vou lá pegar a caixa.

—Henrique, toma cui–Belle começou e foi interrompida.

—Relaxa. –ele assegurou. –Eu fazia isso antes de andar.

Isso não diminuiu a preocupação dos rostos de Belle e Mel, mas aliviou as reclamações.

Ele subiu, pegou a caixinha como quem pega a Taça da Copa do Mundo.

—Peguem aí pra eu descer! –ele disse, e Emily, que estava mais perto, pegou a caixinha que ele jogou. –Estou descendo.

Ele foi se apoiando no tronco da árvore para fazer o caminho de volta, mas deu um passo em falso, perdeu o equilíbrio e caiu de costas no chão.

—Ai meu Deus! –Mel e Belle foram as primeiras a correr até ele, mas logo todos nós estávamos lá para garantir que ele estava bem.

Apesar do tombo, Henrique parecia acostumado. Ele se apoiou nos cotovelos para sentar, e a camiseta verde que ele usava estava suja, mas não parecia machucado.

—Tá doendo? –Belle perguntou.

—Já tive tombos piores, galera, eu estou bem! –ele garantiu. –É só um ralado, no máximo.

—Certeza? –Pablo verificou.

Eu acreditava de verdade que Henrique estava bem. Ele subia em árvores e fazia macaquices desde que eu o conheci. Fazia parte dele. Henrique estava sempre mexendo com algo que não devia, seja em ferramentas para transformar o secador num ventilador ou subindo bem alto nas árvores para ver as estrelas. Henrique, em outra vida, foi um passarinho, sempre no alto.

—A pista, gente, a pista! –Analícia nos apressou.

—Estava com a... Ou. –Henrique começou.

Nos viramos.

E Emily nos encarou de volta, a boca suja de chocolate e com um dos ovos na mão, ambos os braços segurando as caixinhas de palha. Os cabelos ruivos e a franja crescidos, passando dos ombros, presos numa trança única nas costas. Ela comia inocentemente.

—O que foi?

Belle apoiou o rosto nas mãos.

—Emily... Você está comendo uma pista. –Pablo, novamente, constatou o óbvio.

—Não, não. Essa aqui é a caixa que o Henrique me passou.

—Não, Emily. É a outra mesmo. Tem um pedaço de papel perto da sua boca. –Henrique respondeu, e Emily passou a mão na boca, vendo o papel, antes branco, agora sujo de chocolate.

—Eca, eu comi papel!

—Você comeu a pista, sua desmiolada! –Analícia gritou, pegando do ovo o resto do papel.

—Talvez ainda dê pra resolver... –Dete falou otimista. –O que sobrou aí?

Não só os anjos tem asas

Às vezes, um cavalinho sente vontade de

—É só isso. Ela comeu duas linhas, Pedro! –Analícia deu voltas, exasperada. –Como vamos ganhar agora?

—Analícia, sem drama. A graça de tudo é comer os ovos, não ganhar. –a acalmei.

—Mas é uma competição! –ela exclamou. –E por culpa dessa gulosa, não vamos ganhar!

—Mas você olhe a sua boca, garota! –Belle se intrometeu, bem quando Emily ia rebater. –Se você ofender minha amiga, vai perder alguns fios de cabelo, entendeu?

—Olhe aqui você –a loira começou.

—CHEGA! –Leo gritou. –Vocês estão brigando feito crianças, e é desse jeito que a gente vai perder! Dá pra gente focar no que é importante?

—Como eu disse, talvez ainda dê pra resolver! –Dete continuou. –Brigar só vai nos atrasar.

Concordei com a mais nova num suspiro. Eu entendia e tolerava Analícia até um certo ponto, mas também não ficaria calado se ela ofendesse Emily.

Não só apenas os anjos tem asas.... —Mel recitou. –Às vezes, um cavalinho sente vontade de...

—Papo sobre cavalos e asas de novo? –Belle reclamou. –Já vi esse filme.

—Cavalos e asas... –olhei Analícia. –Você está pensando no mesmo que eu?

—Jumentinho! –exclamamos juntos. –Anda, anda, anda, que talvez ainda dê tempo pra ganhar!

Nos levantamos rapidamente, e corremos como se não houvesse amanhã. À essa altura, é bem provável que os outros grupos também estejam quase terminando suas tarefas, e os últimos momentos como esse são cruciais. A casa de Berenice não era tão longe assim, pelo menos pra mim, e chegar lá não foi o problema. Quando chegamos perto, patinhas pretas de coelho marcavam o chão.

—É aqui. –Analícia soltou a respiração. –O Ovo Dourado.

Seguimos as patas de coelho até o Jumento Voador, e bem no assento do cavalinho estava uma linda caixinha de palha com até algodão em cima.

—Ele existe! –Leo repetia, todos os anos, ao ver a caixinha com o ovo dourado. –Ele trouxe os ovos.

Nós pegamos a caixa e olhamos lá dentro, e o Ovo Dourado, o maior, estava acompanhado de outros ovinhos menores.

—É tão lindooooo! –Dete suspirou.

—É mesmo, agora temos que voltar pra poder comer essas belezuras. –Pablo nos lembrou. –Se corrermos ainda dá tempo de ganhar.

E voltamos ainda mais contentes com as caixinhas de ovos, com a poeira sendo levantada por nossos tênis. Belle escorregou em trecho, e nós rimos de sua tentativa de disfarçar a pressa, mas não paramos, e nem pararíamos. Ganhar a Caça Aos Ovos era algo muito sério.

E na porta da Igreja, Amanda estava esperando os grupos. A apresentação ia começar logo. Ela sorriu ao nos ver. Amanda ainda era nossa professora, mesmo no segundo ano, e de fato já era uma amiga. Sempre que tínhamos um problema acabávamos falando com ela, que era cheia de conselhos. Usava um vestido branco com linhas vermelhas e um lenço no pescoço, além do salto, e os cabelos loiros estavam num coque.

—Achamos o Ovo Dourado! –anunciei assim que estava perto o suficiente.

—Por que eu não estou surpresa? –ela riu. –Parabéns, vocês ganharam! Venham aqui para ganhar as fitas azuis.

As fitas azuis eram o mérito por ter ganhado a prova daquele ano. Não eram grande coisa, mas você mostrava essas fitas azuis como se fossem a estrela do uniforme de xerife. Era algo simbólico!

Com as fitas postas em todos nós, o que faltava era aproveitar os doces, esperar os outros grupos e o teatro. Nos sentamos na praça, em paz, finalmente, e conseguimos aproveitar os ovos com sorrisos e muito, muito, chocolate.

—Sabe. –Belle começou, terminando de chupar o chocolate dos dedos. –Eu quero começar o balé.

—Você vive falando isso. –Pablo reclamou.

—Dessa vez é sério! Eu vou tentar a prova em Setembro, Lerina vai me ajudar. –ela contou. –Eu estava esperando a hora pra contar.

—Awn, que fofa! Você vai ar-ra-sar! –Mel apoiou. –E nós vamos estar lá pra te prestigiar!

—Ou pra levantar seu espírito se você perder. –Leo disse.

—LEO!