Lado a lado, Seiya e Shiryu empurraram as enormes portas duplas e brancas com detalhes em ouro que davam para o aposento sagrado do servente de Atena. O Altar onde havia o Trono dourado. Abriram-nas com dificuldades, pois elas eram tão pesadas quanto enormes.

Como na Triste Noite que rememoraram graças ao Cosmo da Armadura de Sagitário, aquela porta abriu-se para uma maravilhosa câmara cujo piso era de mármore e tinha ao fundo um bonito altar em que levantava-se um trono de ouro, onde alguém estava sentado.

Shiryu notou como havia um sopro grave soando dentro daquele altar, como se o ar atravessasse a pedra daquela câmara de maneira propositalmente designada para causar essa sensação de que a voz dos Deuses meditava. Seus passos ecoavam no mármore conforme se aproximavam da figura escura que sentava no trono de ouro. Seiya sequer precisava dizer o que se passava para Shiryu, pois ela podia claramente sentir uma presença magnânima naquele altar e os dois só poderiam estar em silêncio como se fosse um pecado imperdoável interromper aquele sopro grave.

O Camerlengo sentado. A batina preta, o elmo dourado escondendo nas sombras seu rosto misterioso enquanto seus longos cabelos caíam-lhe nas costas.

Antes que os impressionados Cavaleiros de Bronze pudessem encontrar as palavras certas para obrigá-lo a descer até Saori e salvá-la, Seiya viu que o Camerlengo levantou-se do trono. Era um homem enorme, não como Aldebarã ou Cassius, descendentes dos gigantes, mas tão alto quanto a enorme Cavaleira Shura de Capricórnio, embora seus ombros fossem mais armados e a batina que lhe escorria pelas pernas lhe desse uma compleição ainda maior.

Ele colocou as mãos no elmo dourado e o tirou calmamente, revelando a Seiya o seu rosto.

— Ele tirou o elmo, Shiryu!

— O quê? — assombrou-se ela, tentando manter o máximo de silêncio que podia.

O que Shiryu de Dragão não pôde ver, Seiya não perdeu nenhum detalhe. Ao tirar o elmo de ouro, o rosto que apareceu diante dele era o de um homem calmo, talvez até triste, com os olhos bonitos e brilhantes; o nariz grande e afilado, sobrancelhas delicadas.

Se Seiya tivesse de adivinhar o dono do rosto debaixo daquele elmo de ouro que outrora havia tentado matar um bebê com uma adaga de ouro, jamais o descreveria como aquela figura brilhante e bela. Aquele era um rosto em que não se podia incutir os crimes odiáveis que a história lhe imputava. Soou então sua voz, que tinha um tom grave e calmo.

— Meus parabéns, Cavaleiros de Bronze, por terem chegado até aqui. — falou ele com o elmo nas mãos. — Provaram que são realmente Cavaleiros de Atena com grande poder e coragem.

Outra vez atacou tanto Seiya como Shiryu a estranheza de sua voz calma, seu cosmo brando, embora assustadoramente poderoso. Sem que se falassem, tanto um como a outra refletiam sobre a mesma coisa: enumeravam os pecados todos que agora convergiam naquela figura que manifestava-se como um santo de palavras doces.

— Não se deixe enganar, Seiya.

A voz de Shiryu era baixa, mas não houve qualquer sombra de dúvida de que, embora ela tentasse manter uma certa educação diante daquela figura santa, o Camerlengo havia escutado claramente seu aviso. Seiya sabia muito bem que não podia se dar ao luxo de ser enganado novamente por ilusões, principalmente quando o inimigo, ao que tudo indicava, era o próprio Cavaleiro de Gêmeos.

Seiya respirou fundo e falou com profunda coragem, pois também tinham pouco tempo.

— Não vai nos enganar! Não finja ser bom agora, pois nós sabemos muito bem o que você fez há quinze anos e não temos tempo pra ficar aqui ouvindo suas mentiras e truques.

As acusações de Seiya fizeram o calmo homem fechar os olhos, como se aquilo doesse verdadeiramente fundo em sua alma. Ele falou outra vez.

— Eu realmente admiro muito a todos vocês pelo que foram capazes de fazer no dia de hoje.

Seiya colocou-se enraivecido, mas Shiryu segurou seu punho pela primeira vez, pois o Cosmo que ela podia sentir naquele homem era de fato extremamente bondoso; cega como era, ela talvez pudesse sentir com ainda mais clareza do que Seiya a profundidade daquele Cosmo antigo, poderoso, mas sem dúvida alguma bondoso. Não só isso, estar na presença daquele homem trazia também um certo conforto, como se ele fosse, de fato, um caminho por onde podiam acessar a grandeza de Atena.

— Por acaso sente-se finalmente arrependido? — perguntou Shiryu, colocando-se diante de Seiya. — Atena está sofrendo na Casa de Áries. Se você quer pagar por seus pecados, comece tirando aquela flecha de ouro de seu peito.

Seiya viu como o homem tornou a fechar e abrir os olhos, como se buscasse respirar com calma antes de escolher cada palavra.

— Eu não posso. — falou ele.

E então tanto Seiya como Shiryu ficaram consternados.

— Eu sinto muito, mas infelizmente eu não posso extrair aquela flecha do peito de Atena.

— Do que está falando? — perguntou Seiya. — Nós viemos até aqui, pois somente você pode retirá-la!

— Está enganado. — corrigiu ele. — Eu não posso.

— Como assim? Está querendo brincar com nossos esforços? Está aqui falando manso como se estivesse arrependido, mas quer apenas ganhar mais tempo. Você vai descer na droga da Casa de Áries e vai arrancar aquela flecha do peito da Saori!

— Seiya!

Ele nem percebeu, mas enquanto acusava o santo padre, Seiya correu na direção do Camerlengo e soltou seu punho direito que afundou na batina preta, mas parou no peito do homem que não moveu-se um centímetro.

— Sinto muito, Seiya, mas eu não posso.

Seiya tremia diante do enorme padre comiserado e o desespero lhe abateu, pois se ele nada podia fazer, como poderia salvar a vida de Saori?

— Isso significa que o Cavaleiro de Prata nos enganou, Seiya. — falou Shiryu. — De que apenas o detentor da flecha, o próprio Camerlengo, poderia retirá-la, mas não passava de uma mentira.

— Não! — interrompeu o Camerlengo, rispidamente.

Seiya afastou-se daquela figura para novamente estar ao lado de Shiryu.

— Está certo que somente o dono daquela Flecha de Ouro pode retirá-la.

— Pois então a quem pertence aquela flecha se não à você? — perguntou Shiryu.

— À própria Atena. — disse o Camerlengo e caminhou entre os dois até um mural lateral daquele altar.

Os Cavaleiros de Bronze acompanharam aquela figura caminhar calmamente no mármore até um enorme mural, entre tantos que havia naquele local; era um mural de pedra em alto relevo com uma bonita imagem da Deusa Atena mitológica vestida em um longo vestido, um elmo cheio de detalhes bonitos na cabeça, uma lança em uma mão e um escudo na outra. Aos seus pés havia uma fragata de alguns barcos bonitos de muitas pás.

— A Flecha de Ouro foi um presente de Atena para um grande herói do passado. — falou o Camerlengo. — Um Arco e uma Flecha de Ouro que somente ele podia dobrar.

— Um Arco e uma Flecha? — perguntou Seiya.

— Sagitário. — adivinhou Shiryu.

— Exatamente.

— Então somente Aioros pode retirar a flecha? — perguntou Seiya, confuso.

— Somente Atena pode retirar. — corrigiu o Camerlengo, agora de costas para eles olhando para aquele lindo mural. — A Flecha será sempre de Atena.

Às suas costas, Seiya contemplava os longos cabelos do Camerlengo enquanto ele parecia fitar longamente aquele bonito mural que estendia-se do chão ao teto distante do altar.

— Seiya, tenho que admitir que aquilo que eu fiz no passado jamais será perdoado. — falou sua voz comiserada e, quando tornou a olhar para os dois, Seiya viu que escorriam lágrimas que se acumulavam dos dois olhos em um rosto terrivelmente triste.

Shiryu sentia dentro de si que aquelas palavras eram verdadeiras. E confundia-se sobremaneira, afinal, o que poderia estar acontecendo ali? Aquele homem realmente parecia arrependido e não havia qualquer oscilação em seu Cosmo ou em sua compleição que pudesse sugerir que aquilo fosse uma ilusão ou um truque. Uma encenação. Assim como muitas outras vezes tiveram certeza das intenções de seus inimigos e, principalmente, da coragem inabalável de seus amigos, também ali tinham certeza do arrependimento daquele homem.

Como ele poderia ser o homem que diziam ser a própria reencarnação do mal? Era a pergunta que nublava a mente tanto de Seiya como de Shiryu.

— Não. Esse não é o momento para falarmos sobre isso. — corrigiu-se finalmente o Camerlengo, olhando para os dois outra vez. — Vocês não podem perder nem mais um segundo para poder salvar a vida de Atena.

— Então você realmente nos entende. — falou Seiya. — Virá conosco.

— Eu já disse que não tenho poder para isso.

— Ora, mas então? — perguntou Shiryu.

— Prestem bem atenção, Cavaleiros de Bronze. — começou ele, olhando duramente sobre os dois, e apontou para o trono de ouro. — Quando vocês atravessarem essas cortinas, chegarão ao Colosso de Atena. Uma estátua que esteve aqui desde as eras mais antigas. Na mão direita da estátua de Atena repousa Niké, a Vitória, e em sua mão esquerda, o Escudo da Justiça.

— Niké e o Escudo. — repetiu Seiya.

E então pela primeira vez viram como os olhos duros do Camerlengo tremeram por um instante de segundo, como se atacado por um cisco em apenas um dos olhos. Seiya notou que a respiração do belo homem parecia agora estar levemente descompassada, mas então normalizou-se.

— Dizem que o Escudo da Justiça é capaz de afastar qualquer mal.

Seus olhos fecharam-se, como se tentasse trancar seus pensamentos dentro de sua mente.

— O que está acontecendo, Seiya? — perguntou Shiryu, pois pela primeira vez ela sentiu uma terrível oscilação no Cosmo do Camerlengo.

— Está me entendendo, Seiya? — perguntou o homem. — Não é o meu poder que a trará de volta. Mas se a flecha é de Atena, somente Atena pode retirá-la. O Escudo de Atena poderá salvá-la!

Ouviram um sopro mais grave e alto soar dentro daquele altar, ao ponto de Seiya olhar para as portas escancaradas.

— Vão. Há pouco tempo. — alertou o Camerlengo.

Outro sopro grave e mais próximo, um dos archotes da entrada simplesmente se apagou de seu fogo.

— Está vindo. — tremeu o Camerlengo. — Corra, Seiya! Vá, Shiryu! Salvem Atena!

— O que está acontecendo, Camerlengo? — perguntou Seiya para ele ao vê-lo levar as duas mãos à cabeça.

— Não liguem para isso. Agora vão até o Colosso de Atena e… — sua voz cortou-se por um instante. — E segurem o brilho do escudo na direção da garota. Só então a Flecha abandonará o corpo da menina. Vão depressa!

Houve um terceiro sopro que apagou grande parte dos archotes da entrada; Seiya olhou de volta para o Camerlengo e o encontrou no chão, atordoado por quaisquer que fossem os demônios em sua mente. Ele sabia o que era aquilo. Já havia testemunhado aquele terror outras vezes e um frio enregelou seu corpo. Ele recuou alguns passos e então chamou Shiryu com pressa.

— Vamos, Shiryu, vamos de uma vez.

Ele efetivamente tomou Shiryu pelas mãos e saiu correndo na direção do trono para afastar as cortinas e ir de uma vez para o Colosso de Atena. Mas os dois foram paralisados, não por qualquer técnica ou magia que os impedissem de seguir, mas porque o oceano que preenchia aquele altar de bondade transformou-se de um segundo para o outro em um terror absoluto. De tal maneira gigantesco e diferente de tudo que haviam experimentado em suas batalhas que os dois tiveram de parar.

Seiya olhou para trás e o que viu era horrível.

O Camerlengo estava ajoelhado de costas, seu corpo inteiro tremendo, sua batina movendo-se trêmula, enquanto seus cabelos também se agitavam ao cosmo dourado que contornava seu corpo. As cores do próprio altar pareciam se alterar em mil matizes diferentes. E não era só o altar que mudava de cor.

— Céus, Shiryu, o cabelo do Camerlengo está mudando de cor!

As madeixas longas e grossas daquele homem em sua batina preta aos poucos clareava ganhando fios prateados, dando-lhe um aspecto desbotado e cinza.

— Eu não deixarei que cheguem ao Escudo de Atena! — falou uma outra voz daquele homem.

Igualmente grave, mas agora parecia um trovão rasgado.

— Morra, Seiya!

A voz ameaçou e o Cavaleiro de Pégaso sequer compreendeu o que aconteceu, pois foi atingido por um punho tão violento que o arremessou para um outro mural do lado oposto daquele altar.

Seiya teve de se esforçar para sair debaixo de um monturo de pedras, pois seu corpo havia estraçalhado o mural. O homem que havia chorado, lhes mostrado como salvar Atena, se arrependido de pecados terríveis e dono de um Cosmo bondoso agora havia se transformado no demônio a quem atribuíam tantos crimes do passado. Pois aquele sem dúvidas era o terrível homem que fazia jus aos pecados.

Levantou-se para lutar, finalmente, pois agora ao menos sabia o que precisava ser feito. Colocou-se outra vez de pé e viu Shiryu vir em sua direção.

— Shiryu, vá direto para o Colosso de Atena que eu lutarei contra ele.

Shiryu lhe estendeu a mão para levantar, mas no momento que Seiya aceitou a ajuda da amiga, viu que ela o puxou com força e o arremessou para o outro lado da câmara. Seiya ouviu ressoar a risada maléfica do Camerlengo. Ele levantou-se outra vez e viu que o terrível homem estava de novo sentado em seu trono de ouro.

— O que está acontecendo, Shiryu? — perguntou Seiya.

— Vai morrer, Seiya! — respondeu ela.

—/-

O que se viu daí em diante foi uma feroz batalha entre o Cavaleiro de Pégaso e de Dragão; Shiryu atacava seu amigo, furiosa, enquanto ele tentava a todo tempo esquivar e escapar das investidas decididas da amiga que tinha um punho devastador, como ele bem se lembrava.

— Acorde, Shiryu! — tentava ele.

Mas ela não acordava. Seus olhos cegos estavam agora plenamente abertos, mas Seiya tinha certeza de que ela ainda não podia ver; era apenas um reflexo daquele maldito feitiço que ele já havia visto operar na mente da Mestre Cristal, bem como também de Aioria de Leão. Os olhos de sua amiga estavam esbranquiçados por suas feridas oculares, mas também carregavam uma pigmentação levemente avermelhada, enquanto sua face retorcia-se de fúria.

— Não adianta, Seiya, a Cavaleira de Dragão não irá parar enquanto seu corpo não estiver estirado morto nesse chão.

Ela estava sob o feitiço do Satã Imperial. Não iria parar, Seiya bem sabia disso.

— Cólera do Dragão!

Shiryu saltou e disparou a fúria de seu punho direito na direção Seiya que foi arremessado longe, o elmo de sua Armadura de Pégaso rachado ao meio e o sangue de seu corpo tingindo o mármore.

— Ora, Seiya, não me diga que não viu a enorme abertura no peito de Dragão. Use isso ao seu favor e acabe com ela! — provocava o terrível homem sentado no trono de ouro, suas falas sempre encerrando-se com gargalhadas maníacas.

Seiya compreendeu que aquela batalha com sua amiga seria até a morte e, em primeiro caso, seria pelo menos até o momento que a flecha de ouro entraria totalmente no peito de Saori. Não podia ser assim. Era terrível ele ter de escolher entre matar Shiryu ou deixar morrer Saori. Mas talvez fosse possível acordar sua amiga.

Então Seiya lutou.

Seiya e Shiryu enfrentaram-se outra vez até às últimas consequências; a Armadura de Pégaso ficou completamente destruída depois de tantos embates para a audiência do homem que gargalhava ao ver os amigos lutarem diante dele. Mas por mais que Seiya tentasse, não conseguia cansar ou acertar Shiryu para ao menos deixá-la inconsciente; ele outra vez enfrentava o intransponível Escudo do Dragão.

Um Escudo que, certa vez, Seiya conseguira usar de um truque ágil para destruir junto ao Punho, mas agora não parecia encontrar a brecha necessária, pois aquele feitiço de mentes havia tornado a amiga muito mais imprevisível e colérica.

Mas o Escudo do Dragão estourou em mil pedaços mesmo assim. Seiya olhou para o trono e viu o Camerlengo de pé, seu Cosmo dourado ao seu redor e seu punho para frente.

— Assim terá alguma chance. — sorriu ele.

A luta retomou, pois a falta do Escudo de Dragão não tornou Shiryu nem um pouco menos colérica sob o feitiço que lhe comia a mente. E pouco a pouco os minutos passavam, suas proteções de Bronze iam rachando e espalhando-se pelo altar, seus golpes encaixavam e encontravam seus corpos jovens fazendo-os sangrar e sofrer.

E ao fundo ecoava a gargalhada de um maníaco que mais e mais via consolidar seu enorme poder.

Mas então acumularam-se no corpo as batalhas que Seiya havia tido contra Aldebarã e Aioria, enquanto Shiryu havia lutado apenas contra a terrível Máscara da Morte ao lado de Xiaoling. Ela aos poucos viu-se em vantagem e Seiya ficava mais e mais encurralado por ela.

Tinha ele já um olho mais inchado que o outro, sangue escorrendo por seus olhos e por todo seu corpo, apenas alguns pedaços de sua Armadura de Pégaso ainda estavam presos em seu corpo jovem. E quando finalmente ele caiu de joelhos à frente de Shiryu, o Camerlengo levantou-se de seu trono dourado, pois sabia que havia chegado o derradeiro momento de sua vitória.

Shiryu de Dragão caminhou com seu Cosmo incandescente ao seu redor para dar cabo de seu melhor amigo.

Foi outro milagre que se operou naquele Templo e que salvou a vida de Seiya: abriu-se uma fenda entre os dois Cavaleiros de Bronze e, de dentro do infinito, surgiu rasante a Ave Fênix no corpo de Ikki, que avançou feito um tiro de fogo para atravessar a mente do homem atrás da máscara.

— Golpe Fantasma de Fênix!