Naquela noite de chuva no casebre, nem Saori ou Alice retornaram do Templo após tamanha má notícia, tampouco voltariam nos próximos dias. Sobrou a Seiya e seus amigos desfazerem as malas e comerem cabisbaixos; Seiya sabia que aquilo não podia ser bom sinal e que a busca por sua irmã teria de ser colocada de lado mais uma vez.

— Sinto muito, Seiya. — falou Shun, sentando-se ao seu lado.

— Está tudo bem. — mentiu ele.

— Não está. Eu sei o quanto estava ansioso para ir a Atenas.

— Eu vou, mesmo que seja sozinho, Shun. — falou Seiya. — O Santuário terá alguns meses de paz, a Shaina nos falou. Devo estar de volta antes mesmo de vocês voltarem.

Shun sorriu de volta para ele.

— Você pegou o casaco de pele?

— Sim.

— Você vai passar um frio terrível na Sibéria.

— O Hyoga me falou.

— E ele está bem?

— Acho que estamos todos ainda meio estranhos. — comentou Shun. — E ele ainda teve de lutar contra o próprio Mestre.

— De novo. — adicionou Seiya.

Os dois olharam para Hyoga, que estava mexendo na própria mochila em um canto, antes de voltarem a comer seu prato simples.

— É como se a gente tivesse voltado da morte. — falou Seiya.

— Pois é, mas acho que logo nos acostumamos. A Shiryu sabe bem como é isso.

Seiya devolveu-lhe um sorriso amarelo, como quem se conforma. E então seus olhos procuraram na janela o início da montanha adiante.

— Acha que a Saori está de castigo? — perguntou ele, curioso, e Shun chegou a rir.

— A Deusa Atena de castigo?

— A Mestre Mayura é durona e a Saori fica insistindo em não ir pro Templo. E ainda quis ir pra Atenas comigo. Ela é meio maluca.

— Ela ainda deve se sentir muito culpada pelas crianças.

— Ela falou que recebe relatórios toda semana com o paradeiro daqueles que se perderam por aí. Não deve ser fácil pra ela.

— Não deve ser fácil ser a Saori.

— Deve ser ainda mais difícil ser Atena. — falou Seiya.

Naquela noite, Seiya dormiu pensando em Seika, mas também pensando em Saori, que parecia ter sido trancada em seu Templo, pois nunca havia passado uma noite que fosse longe daquele casebre em que moravam.

—/-

Dois dias depois, a comitiva chegou ao Cabo Súnion. Junto de Atena havia ido Alice, que estava sempre ao seu lado, como também o sábio Nicol e as companheiras Shaina e Geist. Prudentes, estavam todos trajando suas Armaduras Sagradas, pois não sabiam exatamente o que existia naquele Templo que era necessário um Cavaleiro de Ouro como Saga para ser o responsável pela vigia do Selo dos Mares.

Nicol sentiu certo calafrio ao retornar para onde ficou quinze anos preso, mas agora tinha a Deusa Atena ao seu lado. A viagem tinha sido de poucas palavras, pois ali estava um grupo sem qualquer intimidade entre si; Saori e Alice de um lado, assim como de outro Shaina e Geist conversavam poucas coisas entre si. Um grupo desconfiado do outro. E um homem sem jeito para lidar com qualquer uma delas.

Se antes sentia-se apreensivo de voltar ao Cabo Súnion, ao chegarem nele sentiu-se imensamente aliviado, pois finalmente teria algo para fazer. Com seu livro atlante em mãos, ele inspecionava as inscrições, as colunas e estilos daquela arquitetura destruída pelo tempo. Pois o Templo de Poseidon agora resumia-se às suas ruínas. A chuva não atrapalhou sua inspeção, como também não afastou de Alice, Shaina e Geist a enorme sensação que tinham naquele Templo. De tal maneira que Alice e Shaina trocaram alguns olhares que certificaram que elas sentiam a mesma coisa.

— Será Poseidon? — perguntou Alice para elas.

— É fraco demais para ser um Deus. — comentou Geist, muito séria.

— A presença de Éris também era muito fraca na Ruína da Discórdia. — comentou Saori entre elas.

— Sim, vocês todas têm razão. — concordou Nicol, um pouco distante. — Essa é sem dúvidas a presença de Poseidon, mas com sorte ele ainda não está totalmente desperto.

Enquanto Nicol inspecionava cada tijolo fora de lugar daquela ruína na companhia desconcertante, mas honrosa de Saori, Geist e Alice viram-se próximas uma da outra fora do Templo inspecionando os arredores da ruína.

— Gostei que abandonou a máscara. — comentou ela, tentando ser amiga.

Geist não lhe dirigiu uma única palavra e notou um pedestal na ponta da rocha que dava para o mar.

— Tem algo faltando aqui. — falou ela apenas, e Alice percebeu que o pedestal realmente parecia ter uma reentrância muito específica e oblonga que parecia servir de apoio para algo manter-se de pé. Algo que não estava ali.

— O que encontraram? — perguntou Shaina, juntando-se a elas.

— Não sabemos. — respondeu Alice.

— Nicol. — chamou Shaina, e ele logo veio até elas com Saori.

Ele imediatamente folheou até uma página específica, como quem reconhecia algo que já havia visto antes. Seus olhos moviam-se, rápidos, das folhas do livro para aquele curioso pedestal, quando concluiu não ter mais dúvidas.

— Esse era o Selo dos Mares.

— Era? — perguntou Saori para ele, ao notar que ali não havia nada.

— Sim, Atena. O Selo já não existe mais. Esse pedestal era o suporte do Tridente de Poseidon. O Selo dos Mares desse Templo tinha a única finalidade de selar o Tridente do Deus dos Mares.

— Então é verdade. — lamentou Alice. — Poseidon realmente retornou.

— Não. — corrigiu Nicol. — Isso apenas significa que seu Tridente não está mais onde deveria estar. Os relatos do Caribe, essa chuva intermitente. Ainda que sejam presságios de Poseidon, não são exatamente a total extensão de seu poder.

— Se Poseidon realmente tivesse despertado completamente, a destruição seria ainda mais terrível. — adivinhou Saori.

— Precisamente, Atena. — concordou ele.

— Nesse caso ainda temos uma chance.

Todos ali então olharam para Saori, pois ela fechou os olhos e manifestou um Cosmo maravilhoso que pareceu incorporar-se na pedra daquele rochedo, nos tijolos daquela ruína, no sal do próprio oceano que quebrava suas ondas lá embaixo e nas cores que tingiam as nuvens do céu. Ela ergueu seu Báculo de Ouro e sua aura pareceu romper as nuvens carregadas, revelando aos poucos a luz do sol entre elas, forçando a chuva para longe.

À essa altura, as Cavaleiras de Prata junto de Nicol e até mesmo Alice haviam se afastado dela, pois ali realmente não erguia-se Saori, mas sim a Deusa Atena.

Ela abriu os olhos e fincou seu báculo na sua frente, que espalhou um pulsar de energia que, se não tivessem visto jamais acreditariam, mas abriu completamente as nuvens carregadas, calando a chuva em toda a região. A presença divina que antes sentiam muito sutilmente naquele Templo calou-se de vez quando Saori retornou aos seus olhos de menina.

— Vamos voltar. — anunciou ela.

Era um recado de Atena para Poseidon.

A Terra estava protegida.

—/-

De volta ao Santuário de Atena, Saori viu-se novamente àquela mesa, como se fizesse parte de um Conselho; seu peito, no entanto, continuava no casebre em que Seiya a aguardava há dias para buscar sua irmã. Nicol não estava entre elas, pois havia se retirado por alguns dias de modo que pudesse se ater a uma tarefa muito importante. Havia deixado com Mayura e a Deusa Atena, no entanto, a certeza de que se Poseidon ainda não estava plenamente desperto; havia ainda a chance de selá-lo de uma vez por todas, impedindo que ressurgisse fora de sua época.

Junto de Mayura e com o auxílio de Alice, elas então forjaram Sete Selos de Atena para uma importante missão adiante.

— As Sete Relíquias estão espalhadas pelos Sete Mares do Mundo. — começou Mayura para elas que estavam ali. — Todas elas estão em localidades desconhecidas e impossíveis de alcançar a não ser pelo Mar. Devemos enviar os Cavaleiros do Santuário para essas Sete Relíquias para que possam reforçar o que quer que mantenha Poseidon trancado em seu sono divino.

— Não sabemos o que podemos encontrar. — alertou Shaina.

— Mas também não podemos deixar o Santuário desguarnecido. — lembrou Mayura.

Saori nada disse a princípio e a reunião foi interrompida por batidas secas na porta; levantaram-se para receber Nicol, que outra vez estava entre elas. Ele trazia seu inseparável tomo atlante, mas tinha também um livro menor e mais recente.

— Com sua permissão, Deusa Atena. — começou ele antes de sentar-se entre elas, colocando para cada uma delas uma única folha escrita à mão. — Dentro do que pude traduzir e compreender das anotações de Saga, creio que fui capaz de listar as sete localidades que o livro de Atlântida descreve como os Templos em que estão guardados as Sete Relíquias dos Mares.

Saori tomou a folha diante de si e reconheceu alguns dos lugares ali listados, embora tivessem descrições pouco usuais.

— De todos esses Templos, tem um que me preocupa muito mais do que os demais, pois Saga deixou especificamente um aviso muito claro no livro atlante. — ele abriu outra vez o enorme livro próximo ao fim e apontou como fizera da outra vez. — Asgard.

Asgard não era um nome desconhecido à Saori, que dedicou grande parte de sua infância estudando histórias antigas, bem como havia se afundado nos poucos registros do Santuário sobre sua história. Asgard era a Terra dos Deuses do Norte.

— Gêmeos fez questão de destacar Asgard em suas anotações. E nelas ele deixa muito claro esperar que, de todas as localidades, essa é a que mais nos traria problemas. O Povo de Asgard pode estar se levantando contra o Santuário.

— Devemos confiar nas anotações dele? Afinal, ele foi um homem dividido entre o bem e o mal. — ponderou Alice.

— Saga acreditava ser o mais indicado para proteger a Terra. Então se isso o preocupava, eu acredito que ele possa ter razão. — considerou Saori entre eles.

— Eu concordo com Atena. Por pior que fosse o Cavaleiro de Gêmeos, em sua mente distorcida ele acreditava estar fazendo tudo pelo bem da humanidade. E tudo que fosse uma ameaça para a Terra ele prontamente eliminava. Se Asgard o preocupava, então devemos ao menos ficar alerta. — falou Mayura.

Saori tomou outra vez a lista diante dela.

— Eu posso contactar a frota da Fundação Graad para que possamos mapear os Sete Mares atrás desses lugares.

— Esses locais descritos pelo Cavaleiro de Taça jamais aparecerão nos radares modernos de sua frota. — contestou Geist. — Nem suas embarcações serão capazes de chegar em nenhum desses lugares.

— Receio ter de concordar com a Cavaleira de Argo, Deusa Atena. As embarcações atuais, por mais modernas que sejam, não parecem ser capazes de chegar a esses lugares míticos.

— Pois então como faremos? — perguntou Alice por Saori.

— Há um jeito.

— Nicol? — perguntou Mayura, sem compreender o que ele sabia.

— Amiga Mayura, falo do Galeão de Atena. — falou Nicol com gravidade.

Alice percebeu que, pela primeira vez, Geist esboçou uma reação mais vívida.

— Um Galeão de Atena? — perguntou Mayura, que não fazia ideia do que ele estava falando.

— Sim. Diz-se de um Galeão de Atena, a quem chamavam também de Barco da Esperança, que foi capaz até mesmo de voar em Guerras Santas passadas.

— Isso realmente existe? — perguntou Alice.

— Sim! — quem respondeu foi Geist.

— Sim, existe. — ponderou Nicol, acalmando a Cavaleira de Argo. — Não é usado há centenas de anos, mas penso que seja a única forma de chegar até esses lugares.

— E onde está esse navio? — perguntou Saori.

— Está escondido em uma caverna próxima ao Mar Egeu.

E outra vez Nicol abriu o enorme livro atlante, onde puderam todos ler com clareza a letra desenfreada de Saga em vermelho anotando um ponto específico de um mapa da Grécia com o nome grego do Galeão de Atena.

Ελπίζω

Mais um presente de Saga em suas pesquisas atlantes.

— Mas há um problema. — começou Nicol. — Com todo o respeito à querida Cavaleira de Argo, não há nos dias de hoje alguém que seja capaz de navegá-lo.

— Não é verdade. — protestou Geist. — Existe alguém que é capaz.

Nicol olhou-a surpreso, mas também muito curioso.

— E eu tenho certeza de que ele vai aceitar essa missão, Deusa Atena. — continuou ela.

— Você só pode estar brincando. — comentou Shaina ao seu lado, adivinhando de quem se tratava.

— Mas, se eu o conheço bem, ele terá uma única condição. — falou Geist muito séria, olhando para todos. — Ele vai exigir que a escolha de sua tripulação seja feita por ele e por mais ninguém.

— Parece que não temos outra escolha. — comentou Mayura.

— Por mim está feito. — aceitou Atena, mas Nicol encerrou a reunião com a pergunta derradeira.

— Ora, mas quem é este homem tão exigente?

—/-

Com tochas nas mãos, Shaina e Geist seguiam um dos gigantes das montanhas que sabiam cada reentrância e cavernas do Santuário; o caminho descia por uma trilha dentro da montanha e perto do Mar Egeu. Ao dobrarem uma curva à direita, a trilha dentro da montanha abriu-se para uma imensa caverna cortada por um afluente oceânico profundo onde estava ancorada uma única embarcação: o Galeão de Atena.

Tanto Shaina, como Geist olharam-se admiradas dentro daquela caverna ao notar que o sol que se punha no horizonte podia ser visto dali de dentro, pois a caverna revelava-se em uma enorme abertura na pedra para o Mar Egeu.

O galeão atracado balançava sutilmente de acordo com as vagas calmas daquela lagoa oceânica, quando se aproximaram com suas tochas. O guia, muito cuidadoso, pediu que apagassem o fogo, uma vez que ele não era mais preciso para se guiarem na escuridão. O navio parecia uma versão menor de um galeão de guerra, e por isso era muito mais veloz e maleável. Tinha um portentoso castelo de popa e uma proa pontiaguda. O casco robusto e seus mastros pinçando as cavernas.

Hábeis Cavaleiros, os três saltaram da margem da profunda lagoa diretamente para o convés principal, fazendo ranger o piso de madeira do navio. À primeira vista, logo se via que reparos precisariam ser feitos, os mastros estavam todos nus sem suas velas e algumas tábuas precisariam ser trocadas. Shaina subiu ao tombadilho seguindo aquele prodigioso guia, quando sua voz falou gravemente.

— Desça às galerias inferiores e verifique as condições, Geist.

— Sim, Capitão. — respondeu ela, descendo ao convés principal e sumindo dentro do navio.

Shaina não escondeu uma breve risada quando a amiga desapareceu dentro do navio.

— Você está delirando se acha que vou te chamar de Capitão. — falou Shaina para o homem.

— Não se preocupe, essa honra será apenas daqueles escolhidos para minha tripulação.