O perfume de rosas. As pétalas vermelhas espalhadas pelos sonhos. Uma escuridão escaldante de um conforto infinito. Os olhos castanhos sempre tão confiantes. A estrela cadente que rabisca o céu.

Os olhos abrem-se de uma vez, rompendo as camadas de seus sonhos para revelarem um teto distante e escuro.

Deitada, Saori olha para o lado e enxerga um enorme corredor de tapete vermelho comprido ladeado por colunatas que se perdiam na escuridão. De outro lado, um mural enorme esculpido em alto-relevo com a imagem de uma guerra mitológica entre homens; acima deles, brilhava como o sol uma figura feminina. Ela usava um vestido no corpo, uma lança nas mãos e um elmo na cabeça.

Um vestido, uma lança e um elmo.

Sentiu um profundo calafrio ao olhar aquela figura quando uma voz muito grave atrás de si se fez ouvir.

— Eu estava esperando pela senhorita.

Saori virou-se imediatamente e diante de si viu um homem ajoelhado à sua frente. Vestia uma batina escura espalhada pelo chão; tinha motivos dourados onde fechava no centro e também nas barras das pernas e dos braços. Pendendo de seu peito haviam contas eclesiásticas. Seu rosto escondido nas sombras de um elmo dourado.

— Quem é você? — perguntou ela.

A figura levantou o rosto e tirou calmamente seu elmo, revelando seus enormes cabelos que caíam-lhe pelos ombros. Seus olhos eram tão lindos, sua feição transmitia a mais pura tranquilidade e ternura. Saori não viu nada naqueles olhos que não fosse conforto.

— Em seu lugar eu tenho comandado o Santuário como Camerlengo… — começou ele.

Saori sentiu-se invadida de uma confusão enorme quando aqueles olhos a tocaram na alma. Sua voz encerrou a mesura.

— Deusa Atena.

Ela levantou-se imediatamente e ficou acima dele, ainda que fosse tão pequena e aquele homem, mesmo ajoelhado, enorme. Ou apenas parecia imenso, tamanha profundidade de seus olhos e de sua batina espalhada no chão.

— Eu estive esperando muito por esse momento. — tornou ele a falar em sua grave voz. — Esperando o momento em que se revelaria diante de mim.

Saori, no entanto, não era tola, e cresceu nela imediatamente a suspeita, apesar daquela presença bondosa diante dela.

— Você é o Cavaleiro de Ouro? — perguntou ela e, por um segundo, Saori sentiu que o homem vacilou por um centímetro.

— Não. — respondeu, finalmente, e disse de maneira misteriosa. — Mas o Cavaleiro de Ouro está ao seu lado.

— Onde estou? — perguntou ela.

— Esse é o Templo de Atena.

— Estou no Santuário de Atena? — tornou a garota a perguntar, desconfiada.

— Sim. — limitou-se ele a dizer.

Novamente subiu-lhe um calafrio na espinha, pois sabia que aquele lugar um dia representou grande perigo à sua vida. Ainda que se sentisse extremamente segura diante daquele homem.

— Atena. — começou ele a falar. — Há um grande mal dentro de seu Santuário. Um mal que somente você poderá erradicar. Somente você poderá apagar.

Sua voz era grave e decidida.

— Esse mal tentou me matar há 15 anos atrás. — falou ela, decidida, ainda olhando para aqueles olhos de cima para baixo.

Foi quando ele finalmente se levantou.

E, quando se levantou, sua compleição física colocou sombras sobre ela.

Mas Saori continuou falando, muito menor do que a enorme figura, mas seus olhos também muito decididos.

— Não imagino que muitas pessoas possam ter acesso à Deusa Atena. — falou ela, e talvez houvesse uma acusação corajosa em sua voz. Certamente havia milhões de dúvidas.

Ele não vacilou, mas pela primeira vez Saori percebeu que na mão direita daquele homem havia algo que sua batina escura revelou: um báculo dourado, que ele apresentou com as duas mãos diante dela.

— Essa é Niké. — disse ele. — A Vitória que esteve sempre na mão direita de Atena.

E ajoelhou-se novamente, oferecendo o báculo para Saori.

Ela o tomou na mão direita sem ter medo, pois pela primeira vez sentiu seu enorme cosmo dentro de si. Aquilo era certo. Era para ser. Ele falava a verdade.

Com o báculo em mãos, ela olhou novamente para o homem, que permanecia ajoelhado à sua frente. Sem olhá-la de volta, sua voz tornou a falar naquela escuridão, mas dessa vez era uma voz de quem tremia de medo.

— Atena. Use seu báculo para erradicar o mal que existe em seu Santuário.

Ele se levantou rapidamente, olhando-a nos olhos. Quando antes eles eram bondosos e puros, agora carregavam um desespero clemente; de um de seus olhos, Saori viu, lágrimas escorriam por seu rosto.

— Está vindo. — disse o homem e, do fundo daquele salão, Saori viu que as luzes se apagavam lentamente uma a uma nor archotes das colunas chegando até ele. — Escute-me, Atena. Use seu báculo para erradicar o mal do Santuário!

E a última coisa que ela viu foram seus olhos chorando, pedindo clemência.

— Por favor, Atena.

E mais não viu, pois fora engolida por um universo.

Uma matriz de estrelas e galáxias colidindo em espaços distorcidos por uma impossível sensação de ausência absoluta do tempo. Não haviam colunas, não havia o mural, o tapete vermelho, ou o homem de batina preta.

Existia somente ela, seu vestido e seu báculo vagando pelo cosmo.

Assim como existiam todas as estrelas e galáxias ao seu redor. Planetas, amores e desesperos.

—/-

— Onde está a garota? — perguntou a voz de Shaina.

Hyoga e Shun carregavam Seiya desacordado nos ombros por um caminho mais aberto quando foram interpelados por Shaina, e atrás dela vinha Jamian de Corvo. O Cavaleiro de Cisne deixou Shun carregando o amigo e prontificou-se diante deles, caso tivesse de lutar.

— Atena não está aqui. — falou Hyoga.

Shaina deixou escapar sua risada.

— Vocês estão todos delirando. Deixe Seiya aqui que os deixarei viver por hoje. — falou ela.

— O que está falando Shaina? Devemos punir todos eles!

— Cale a boca, Jamian! — vociferou ela.

— Não há com o que se preocupar, pois não deixaremos que leve Seiya ou qualquer um de nós.

Hyoga usava sua sagrada Armadura de Cisne e fez seu cosmo gélido inflamar à sua frente. Shaina olhava-o dura nos olhos e sua Armadura de Prata também iluminou-se com seu cosmo eletrificante.

— Eu cuido dos outros dois. — falou Jamian, adivinhando que aqueles ali se enfrentariam.

Hyoga e Shaina engajaram em uma luta corporal violenta que os levou adiante e deixou Shun e Seiya, desacordado, diante de Jamian de Corvo. Ele riu.

— Isso será fácil demais.

A Corrente de Andrômeda espalhou-se no chão, protegendo os dois Cavaleiros de Bronze.

— Não atreva-se a entrar na nebulosa ou ficará muito ferido. — alertou Shun.

Com efeito, Jamian não acreditou no garoto com rosto doce e colocou um pé dentro das correntes espalhadas, como se quisesse testar se o que dizia era mesmo verdade; sentiu um imenso choque percorrer seu corpo inteiramente. Imediatamente recuou o pé e saltitou de dor e espasmos.

Shun tinha avisado.

A luta feroz entre Cisne e Shaina derrubava árvores pequenas ao redor e quebrava as pedras por onde passavam. Hyoga conjurou seus Círculos de Gelo para paralisar Shaina, mas suas enormes garras elétricas simplesmente rasgaram os círculos ao seu redor, para assombro de Hyoga.

— Garras do Trovão!

Shaina levantou sua mão direita acima da cabeça e todo seu cosmo prateado convergiu para a palma de suas garras antes de descer feito um relâmpago em cima de Hyoga, cobrindo-o dentro de um trovão terrível.

As penas negras caíam feito chuva sobre Jamian, que mantinha-se distante das correntes, mas iluminado de sua aura prateada. Sua armadura reluzente. Ao comando de suas mãos, as penas rodearam seu corpo e lançaram-se feito facas afiadas em cima de Shun.

— Plumas Navalhas!

A Corrente Nebulosa recolheu-se para envolver Shun em sua matriz giratória e impedir que seu corpo fosse dilacerado pelas penas afiadas de Jamian. E, com sucesso, sobreviveu ao ataque. Recolheu suas correntes e avançou como uma bala; ajoelhou-se diante de Jamian, seus dois braços levantaram-se com força e deles um tufão de vento soprou o Cavaleiro de Prata a alturas incríveis, de modo que ele foi arremessado para o cume da montanha, sumindo no céu.

Hyoga, mais adiante, caía vencido e seu corpo tendo espasmos pelo cosmo elétrico de Shaina, que também estava esbaforida e com as pernas levemente congeladas. Shun olhou no exato momento em que Shaina ajoelhou-se próximo ao corpo de Hyoga e levantou as garras afiadas para dar cabo dele. Sua corrente voou de onde estava e segurou a mão de Shaina.

— Solte-me, moleque! — gritou ela.

Mas Shun puxou a corrente com força tirando Shaina de cima do amigo; ela tropeçou e rolou na terra até que apoiou-se com uma perna no chão e segurou a corrente com os dois braços. Andrômeda aproveitou-se e descarregou seu cosmo eletrificado, disparando um choque terrível que enrijeceu a corrente ereta sem apoio algum no ar.

Mas aquela era Shaina de Ofiúco e os estalos de cargas elétricas eram de sua natureza cósmica, de modo que aquele golpe de Shun pareceu apenas dar-lhe ainda mais energia. Ela soltou a corrente endurecida no ar e correu sobre ela de maneira impossível, como uma artista que anda sobre cordas; com uma velocidade assombrosa, reapareceu na frente de Shun ainda segurando sua corrente dura.

Ela girou para trás e atingiu Shun com um chute terrível no queixo, soltando seu elmo para longe. Ele caiu arrastado na terra, gemendo de dor.

Shaina ainda aproveitou-se que Shun havia lhe dado mais energia e, como uma bateria, seu cosmo estalava obliterando folhas ao redor. Ela saltou e, quando o fez, seu corpo pareceu transportar-se do solo ao céu feito um relâmpago, e sua voz reboou no local de forma poderosa.

— Garras do Trovão!

Shun estava deitado e não pôde defender-se, sentindo seu corpo inteiro, todos os centímetros e átomos, vibrarem de forma espasmódica. Seus dentes trincaram com força e seu peito sufocou, pois seu corpo inteiro contraiu-se com violência.

Assim que a técnica morreu na mão de Shaina, Shun pôde respirar novamente, mas tudo em seu corpo movia-se contra sua vontade. Vencido.

— Moleque intrometido. Será o primeiro a morrer.

Shaina caminhou até Shun, que sofria no chão, e sua mão levantou-se, sugando a estática ao redor, estalando. Suas garras afiadas prontas para rasgar a pele de Shun, quando sentiu sua mão ser atingida.

Ao olhar para sua mão direita, viu uma pena vermelha fincada nela.

Olhou ao redor, mas nada viu. Olhou para o alto e ninguém estava ali.

— Apareça! — ordenou ela.

Só quando apertou os olhos para ver uma pedra adiante contra o sol que percebeu como acima dela não estava um tronco retorcido ou qualquer coisa parecida, mas a silhueta de uma pessoa.

— Quem é você? — perguntou.

— Sou Ikki de Fênix.

A voz que respondeu era decidida e ameaçadora.

— Fênix? — perguntou Shaina. — Achei que estivesse morta.

— O Inferno não teve esse prazer. — respondeu ela.

— E está do lado de quem? Desses traidores ou do Santuário?

— Não estou do lado de ninguém. — respondeu ela. — Você deu apenas muito azar por perturbar a minha montanha.

Shaina desatou a rir e mostrou sua mão sangrando para Ikki.

— Me parece que está ao lado desse moleque. Ele é importante para você? Seria uma pena se morresse. — ameaçou ela, virando-se para punir Shun.

Ikki saltou de sua pedra, suas asas de fogo abriram-se no ar e ela pousou entre Shaina e o corpo desacordado de Shun; a Cavaleira de Prata precisou se afastar. Shaina viu ainda que, além do corpo de Shun, também estendiam-se os corpos de Cisne e Seiya adiante. Pois agora aquela oponente colocava-se entre ela e sua missão.

Shaina sentia, pois era da capacidade das Cavaleiras de Prata, o cosmo irascível que existia dentro de Ikki.

— Não vou deixar que toque nele. — falou ela. — Ou em Cisne e até mesmo em Seiya.

— Então eu acho que vou ter que acabar com você também. — falou Shaina, mas Ikki riu em deboche.

— Acha mesmo que consegue?

Levantou-se a Fênix e ela encarou Shaina nos olhos; encontraram, as duas, ira semelhante ao se olharem. Ikki usou seu cosmo e, sem encostar na terra, traçou uma linha de uma extensão à outra daquele lugar em que estavam, determinando claramente dois lados. O dela. E o de Shaina.

— Essa é a linha que te separa do inferno. — falou Ikki, confiante. — Eu vou acordar esses inúteis e logo sairemos todos daqui. Se você cruzar essa linha, então você estará morta.

E virou-se de costas para levantar seu irmão.

Shaina sentiu-se tremendamente insultada, embora houvesse mesmo uma presença hostil naquela garota que a fez hesitar. E quando hesitou sentiu ainda mais ódio.

Cerrou seus punhos enquanto via Fênix levantar Andrômeda, acordando aos poucos. Mais adiante, o Cavaleiro de Cisne também se levantava com dificuldades. Só então Shaina percebeu que fora ela quem tinha colocado aqueles dois no chão. Pois colocaria mais uma se fosse preciso.

— Desgraçada. — ralhou Shaina entre os dentes. — Vou morrer, não é? Acha que eu sou uma criança? Prepare-se para cair de uma vez, Fênix!

Shaina atravessou a linha na direção de Ikki.

A Fênix virou-se, rápida, e seu punho emitiu um fio de trevas quase imperceptível que atravessou o cérebro de Shaina e a fez cair de joelhos.

—/-

O pôr do sol no mar Egeu no horizonte anunciava a chegada da noite. Descia das montanhas um vento gelado para um vilarejo de casas simples. Na praça principal, um grupo de crianças brincava de correr de lá pra cá antes que a luz terminasse com o dia de descanso. Entre eles, uma garota está sentada sozinha olhando para uma fonte de pedra manchada cuspindo água da boca de três cavalos alados. Olha para a água tentando fingir que não ouve as crianças rirem dela bem baixinho; a garota não entende o idioma que elas falam, mas entende o motivo pelo qual davam risada. Vez ou outra jogavam-lhe água da fonte, fingindo molhar sem querer suas coisas, embora sem dúvidas de propósito.

Ela então colocou-se de pé e gritou para que todos pudessem ouvir.

— Me deixem em paz!

Mas as crianças continuaram a rir dela, escondendo um dos olhos feito piratas.

A pequena Shaina corria atrás de várias daquelas crianças e tentava esmurrá-los, mas todos conseguiam fugir, já que eram maiores do que ela. E continuavam a rir da menina.

Ela parou de correr atrás deles e correu para um canto escondido entre duas casas, um beco escuro em que sentou com a cabeça entre as pernas e chorou de ódio. Passou os dedinhos de criança na cicatriz pequena, mas visível, que tinha acima de um dos olhos. Chorou baixinho.

Mas os garotos maiores descobriram seu esconderijo e puxaram a pequena Shaina para a avenida, para que todos pudessem ver sua cicatriz, enquanto a chamavam de muitos nomes que ela não compreendia.

Apanhava de todos os lados, pois todos a atacavam em um círculo; ela habilmente conseguia desviar, contra-atacar, usar uns contra os outros em um treinamento terrível, e sobrevivia bravamente. Então finalmente foi ao chão e escutou outra vez as odiosas risadas.

— Nada mal para uma criança estrangeira. — falou uma mulher mais velha aparecendo entre eles.

E chutou-a no estômago.

— O que é isso? — perguntou a mulher. — É uma pintura de guerra, Corsara? E para qual guerra você pensa que vai?

Shaina arrastava-se no chão, mas colocou-se novamente de pé. Todos a olhavam encarar aquela mulher mais velha.

— Não me diga que... Não está usando isso para esconder sua linda cicatriz, não é? — riu a mulher. E com as mãos ordenou a um dos discípulos que trouxesse um balde de água suja que bebiam para se refrescar.

A mulher pegou Shaina pelo cabelo e a colocou no chão; jogou o balde inteiro em seu rosto, para gargalhada geral no grupo, e com sua mão grossa limpou a pintura dos olhos de Shaina.

— Agora está melhor. — levantou-se a mulher. — De volta ao treino!

Ela tentou esconder com a mão a cicatriz que tanto odiava no olho; era muito pequena, mas causava uma falha em sua sobrancelha esquerda.

Sua mão sangrava, pois a cicatriz do punho havia se aberto novamente. Como sempre acontecia. Um momento de paz. Era o único momento de paz que tinha em seus dias naqueles últimos quatro anos. Sentou-se afastada em uma árvore olhando o sangue correr de sua mão. Precisaria ir à tenda se quisesse estancar o sangue, mas isso significaria ter de passar pelos meninos e meninas dali, que certamente não lhe dariam sossego. Sua paz era melhor.

Um coelho branco apareceu ao seu lado fugindo de qualquer coisa que o caçava. Ela experimentou sorrir, já que havia ali alguém pior que ela; pois se ela era o melhor que aquele coelho poderia encontrar, pobre coelho. Ela não pôde pegá-lo nas mãos, pois sabia que seu sangue vermelho-escuro mancharia seus pêlos muito brancos. O bichano limpou as orelhas com as duas patinhas e dali saiu, pulando para dentro da mata. E seus olhos deram de cara com um garotinho risonho que lhe falou algo.

Ela não compreendeu nada do que ele dizia.

— Comer. — disse ele, apontando para o coelho já muito longe.

— Um estrangeiro. — falou ela em sua língua natal.

O garoto percebeu que sua mão sangrava e ajoelhou-se perto dela. Seus olhinhos castanhos, suas pequenas mãos buscaram a sua mão esquerda, que sangrava, mas Shaina soltou e deu um tabefe no garoto.

— Ei! — disse ele em língua universal.

E também mostrou sua mão esquerda com um curativo no mesmo lugar em que sua mão sangrava. Ela sabia que era o que faziam aos que eram de fora. Deixou então o garoto usar uma de suas bandagens novinhas que trazia à cintura para enfaixar-lhe a mão machucada e estancar o sangue. Assim que terminou, o garoto sorriu para ela, e com o polegar, lhe deu um joinha.

Ela o pegou pelo colarinho, no entanto, e o jogou na terra. Ralhava em cima do garoto, rodeada de seguidores desatando a rir das malcriações com ele. Chamava-o de muitos nomes, não o deixava levantar, sentava-se em suas costas fingindo estar em uma cadeira e bagunçava-lhe o cabelo sempre que podia. Mas quando Seiya, encolhido no chão, olhou para ela, Shaina viu os olhos da pequena garota estrangeira que ela era quando havia chegado ao Santuário. Sofrendo com as risadas de seus próprios seguidores. Sofrendo porque não via mais a pequena Shaina à sua frente, mas a crescida guerreira que havia se tornado com a pintura de guerra nos olhos, as sobrancelhas arqueadas e zombeteiras acima dela chamando-lhe de mil nomes terríveis enquanto ria de sua cicatriz.

Ela corre feito uma criança, mas encontra-se nos braços de Seiya, já crescida, já mulher, e é invadida por um ódio profundo. Ela ascende seu cosmo e suas unhas afiadíssimas como as presas de uma cobra atacam o garoto de modo mortal, decepando-lhe a cabeça. O corpo do garoto cai de joelhos, a mão esquerda enfaixada e a cabeça rolando até seus pés. Um sorriso odioso no rosto do menino, chamando-a repetidamente de modo gutural.

— Corsara.

Seu grito é tão forte quanto o cosmo que tinha dentro de si. E ele reverberou por todo o desfiladeiro a ponto de Shun, Hyoga e Ikki escutarem seu desespero já muito longe dali, carregando Seiya para um lugar seguro.

—/-

Saori não soube precisar por quanto tempo vagou sozinha pelo infinito, talvez alguns segundos, quem sabe por tantas eras. Sentia-se vazia como se há muito tempo sequer respirasse. E ainda assim estava viva. Seus cabelos tingidos estavam suspensos no vácuo e ela percebeu que segurava com muita força o metal de seu báculo.

Não havia gravidade, apenas uma imensa solidão. Deitada no infinito, ela viu, de ponta cabeça, um brilho abrir-se longe dela, as estrelas ao seu redor distorcerem-se convergindo para aquele ponto. Sentiu-se lentamente sugada para aquela saída ou entrada.

— Segure-se em mim. — falou uma voz e, ao seu lado, apareceu novamente o maravilhoso Cavaleiro de Ouro. — A dimensão se fechará.

Sua Armadura solar refletia todas as estrelas e galáxias daquele infinito, mas ainda assim brilhava um ouro forte e ambarino. Saori deu-lhe as mãos e, mais próxima e acordada, pôde vislumbrar a beleza daquele rosto quase escondido debaixo de um elmo adornado com motivos dourados. Seus longos cabelos também flutuavam pelo infinito.

— Tome cuidado. — disse sua voz grossa, mas doce. — Já vamos descer.

Saori viu adiante que a dimensão infinita do cosmo distorcia para um brilho pálido em que, pouco a pouco, cores de uma noite na cidade apareciam; e uma construção por demais familiar para ela assomava-se abaixo de seus pés, ainda puxada de suas proporções, até que não teve dúvidas.

Graciosamente seu pé direito pousou feito uma pluma na sacada de seu antigo quarto na Mansão de seu falecido avô; as cortinas esvoaçaram com um sopro de vento. Não havia ninguém ali. Nem dentro da casa, abandonada, nem nos jardins muito crescidos. O fogo havia consumido grande parte da construção, mas aquela sacada e seção da casa estavam intocadas.

— O Camerlengo ordenou que a escoltasse até aqui. — falou novamente a voz doce e grave do homem.

Saori apoiou-se em seu báculo dourado, como se tanto tempo vagando por outra dimensão a tivesse desacostumado à maldição da gravidade. O Cavaleiro de Ouro, além de sua imensa beleza, tinha também uma capa branca nas costas. Ele fez uma mesura, despedindo-se, e virou-se para partir.

— Espere. — pediu Saori, e o homem parou e olhou novamente para ela. — Está do meu lado? — perguntou sua voz de menina.

— Eu estou ao lado da humanidade. — respondeu ele, muito calmamente.

— Não acredita em mim? — perguntou Saori, de maneira franca.

— Sei que é a Deusa Atena. — disse ele. — Não sei se é capaz de proteger a humanidade.

— Não devem os Cavaleiros de Atena serem leais à mim? — perguntou ela.

— A minha missão é proteger a Terra. — começou ele. — Jurar lealdade à alguém em quem não acredito que possa proteger a Terra é o mesmo que trair todas as pessoas que nela vivem. E isso eu não posso fazer.

Saori sentiu a dureza daquelas palavras e seus olhos perderam-se nos mosaicos bonitos de seu chão. Compreendeu os motivos pelos quais aquela Armadura de Ouro a havia abandonado.

— O que devo fazer? — perguntou ela, finalmente, com sua voz jovem.

Um sopro de vento fez a capa do Cavaleiro de Ouro bater levemente contra sua Armadura reluzente. Na escuridão, Saori pôde ver claramente que os olhos dele pousaram em seu báculo dourado. Ela sabia o que precisava fazer.

— Permita-me, Atena, testemunhar que tipo de Deusa você é. — disse, deixando uma rosa vermelha lindíssima à sua frente. — Na batalha que está por vir.

Levantou-se e, no momento que Saori olhou para baixo para poder pegar a rosa, o maravilhoso Cavaleiro de Ouro não estava mais lá. Guardou a rosa no peito e fitou a lua branca à sua frente.