Sentados à uma mesa baixa de madeira em um banco longo. O almoço servido com bastante arroz, temperos e alguma fritura. O último andar da torre era justamente o andar da cozinha; uma bagunça enorme ao redor de um fogão de lenha e uma tina de água. As crianças brincaram que a Mestre Mu colocou a cozinha no topo justamente para chegarem cansados da subida de escadas para reporem as energias ali mesmo.

Shun serviu suas panelas e os pratos. Lunara estava radiante.

— Ai, finalmente. Comida de verdade! — disse ela. — O Kiki é horrível na cozinha!

— Eu faço os piores pratos de propósito. — gabou-se ele.

— Quanto tempo vocês estão aqui sozinhos? — perguntou Shun.

— Poucos dias. A Mestre às vezes viaja por aí, não se preocupe. Já não somos mais crianças. — falou Kiki.

— Ele ainda faz xixi nas camas. — denunciou Lunara.

— Eu vou te jogar daqui de cima!

O garoto queria atravessar a mesa para esganar a pequena, mas Shun interveio e prometeu doce para os dois se todos se comportassem durante o almoço. Na verdade, não precisava prometer nada, porque eles estavam tão famintos que, assim que esfriou um pouco o arroz, devoraram tudo em silêncio.

Comeu tanto que suava a pequena Lunara. E, ao limpar-se do suor, sem querer borrou uma das duas marquinhas que tinha na testa. Shun sorriu.

— Borrou suas marquinhas. — comentou ele.

— Ai, droga. — tirou ela um lápis rosa do bolso e refez tudo torto sem olhar. — Prontinho.

Shun sorriu e pediu o lápis para a garotinha. Limpou o que ela havia acabado de fazer e desenhou com mais delicadeza as duas marquinhas para ela.

— Agora ficou melhor. Não ficou, Kiki?

O garoto deu de ombros.

— Você é legal. — falou a pequena Lunara, guardando o lápis. Shun sorriu de volta. — Me conta como a Mestre Ikki era quando era criança?

A pergunta pegou Shun desprevenido, pois ele estava acostumado a ser o irmão menor. Nunca tinha lhe ocorrido contar lembranças de quando ela era menor do que ele. Shun sorriu surpreso, mas feliz.

— Ela era brigona. — começou ele. — Mas ela brigava com todo mundo pra todo mundo fazer a coisa certa. Uma vez ela quase bateu no Seiya, porque o Seiya queria porque queria escapar de uma aula de geografia pra jogar bola.

— Não acredito! — falou Lunara.

— Pois é.

— Que certinha. — comentou ela. — Eu cheguei alguns anos depois que vocês já tinham ido embora, eu acho. Eu adorava o orfanato. Tinha tanta coisa legal pra mexer. Mas os adultos me odiavam.

— Ora, porque?

— Eu vivia causando curto-circuito, a Mansão ficou muitas vezes sem energia por minha culpa.

Ela sorriu, e Shun adorava aquela energia inocente de Lunara.

— Aqui não tem nada. — falou ela. — Mas a Mestre Mu tem as ferramentas mais legais do mundo! Vou lá pegar pra te mostrar.

— Não vai não! — alertou Kiki. — Tá louca? A Mestre Mu vai te matar se você mexer nos martelos dela.

— É só você não contar, seu chato. — disse Lunara, quando ouviram uma voz do lado de fora chamando.

— Mestre Mu!

Lunara pulou do banco doida de alegria.

— Não acredito! Eu vou explodir! Dois no mesmo dia! — falou ela. — Eu nunca vi isso acontecer.

— Isso nunca aconteceu. — falou Kiki, também animado. — Escute aqui, baixinha, você não vá me interromper. Eu preciso jogar as pedras na pessoa primeiro.

Lunara teve de se conter para não sair correndo abraçar quem quer que fosse. Puxou Shun pela camiseta para as escadas, enquanto Kiki saía pela janela com a face mais traquina possível.

— Daqui dá pra ver quem é, ai, que emoção! — disse Lunara, espiando por uma fresta do segundo andar.

Quando Shun colocou os olhos pela fresta acima da pequena, no entanto, teve um sobressalto, pois conhecia a garota que estava ali e murmurou o nome para si, incrédulo. Dali saiu correndo pela saída dos fundos do primeiro andar, que fingiam não existir, e gritou pelo nome daquela garota de longos cabelos.

— June!

A garota usava uma roupa leve de treino, que Shun tão bem conhecia. No chão uma Urna de Bronze e no rosto um cansaço enorme. Ela talvez acreditasse muito menos no que via do que ele; tendo atravessado o terrível Cemitério, marchado entre espectros e fantasmas, feito uma escalada terrível e, além disso, ter presenciado um massacre torpe. E ao final de sua caminhada, os olhos doces e reconfortantes de Shun, um de seus melhores amigos.

Ela o abraçou forte e desesperada. Shun logo percebeu que havia algo errado.

— O que aconteceu, June?

— Ah, Shun. É um milagre, eu não posso nem acreditar que esteja aqui. Não tem outra pessoa no Mundo que eu quisesse ver mais do que você nesse momento. E eu jamais poderia encontrá-lo. Isso só pode ser um milagre de Atena.

Em certo sentido era.

— Diga-me, June, o que aconteceu? O que está fazendo aqui?

— Shun… — começou ela. — Shun, a Ilha de Andrômeda foi devastada. Nosso Mestre Albiore. Ele… ele…

— Não. — negou-se Shun.

— O Mestre Albiore foi morto. — concluiu ela, em prantos. — Fomos atacados por um Cavaleiro de Ouro.

— O Cavaleiro de Ouro? — perguntou-se Shun. — Mas… por qual motivo?

— Eu não sei, Shun. — falava ela. — Ele apareceu como uma luz enorme e, quando percebemos, estávamos todos sendo atacados na Ilha. O Mestre tentou lutar, tentou nos proteger, mas… não foi possível fazer nada. Nem mesmo todos nós juntos fomos páreos para aquele homem.

Shun abraçou sua amiga de longa data; as pessoas com quem treinou eram severas, mas eram também queridas. Uma consequência do treinamento duríssimo, mas comandado por uma pessoa gentil e bondosa. Esse era o Mestre Albiore. Quem poderia fazer algo assim? E por qual motivo?, refletia Shun apartando as lágrimas de June.

— Fui uma das poucas que conseguiu sobreviver. Fugir daquele lugar. Mas com a minha Armadura nesse estado. Eu nem sei o que fazer, Shun. Então pensei em vir até a Mestre Mu parar reparar minha Armadura e buscar os responsáveis desse massacre.

— Um Cavaleiro de Ouro? — perguntou Shun para ela.

— Sim. Jamais vou me esquecer de seu brilho dourado. De sua Armadura de Ouro. — então deteve-se um momento quando lembrou-se do mais terrível. — Das pétalas de suas rosas.

—/-

— Doze Armaduras de Ouro? — perguntou Seiya, chocado.

Estavam de volta em seu quarto de hospital; ele já estava melhor da outra batalha que havia quebrado o braço, portanto dessa vez ele só precisava de algumas bandagens e estava pronto para a próxima.

— Doze? — repetiu a pergunta. — Se uma já deu esse trabalho todo imagine mais Doze!

— Onze. — corrigiu Hyoga entre eles e Seiya olhou para ele, confuso. — Onze. Se são Doze ao todo, com a de Sagitário são onze.

Seiya era péssimo em contas e tornou para Saori.

— Sagitário, então. Quer dizer que são Doze Armaduras de Ouro, uma pra cada signo do zodíaco?

Ela confirmou.

— Aioria é o Cavaleiro de Ouro de Leão. A Armadura de Aioros era a de Sagitário. E nenhuma dessas duas era parecida com a Armadura do homem que me levou até o Camerlengo.

— Pela descrição, também não se parecem com a do Cavaleiro de Ouro que apareceu diante de Éris.

Seiya sentou-se, passado.

— Não acredito que eram pessoas diferentes e a gente achando que era a mesma pessoa.

— O Centro de Inteligência da Fundação pesquisou por muito tempo as Armaduras. — falou Saori. — Sabíamos que as Armaduras eram feitas às medidas das Constelações no céu, mas não imaginávamos que havia essa diferença entre Bronze e Prata.

— E agora o Ouro. — comentou Alice.

— Sim. — concordou Saori. — Mas, embora houvesse evidências do Cavaleiro de Ouro através da história em momentos chaves da humanidade, nunca soubemos exatamente do que se tratava e de quem ele era. Na atualidade, não há nenhum registro da existência de um Cavaleiro de Ouro ou da Armadura de Ouro. Por isso acreditamos que se tratava de apenas uma. Aquela que nós tínhamos.

E continuou.

— Alguns estudiosos da Fundação teorizavam que a Armadura de Ouro que nós tínhamos na verdade era uma vestimenta importante de um grande herói das histórias. Um herói chamado Quíron, pois o relevo da Urna era um centauro com um arco. Há teses antigas que teorizavam que, se havia uma Armadura de Ouro para Quíron, talvez houvesse uma para Aquiles, ou Ulisses ou outros heróis da antiguidade grega. Mas nunca foram confirmadas.

— As Armaduras das constelações seriam todas iguais, sem diferenciação, enquanto os grandes heróis usariam as Armaduras Douradas. — disse Alice para os meninos e Saori concordou, pois as duas passavam horas lendo o que os adultos estudaram e especularam.

— Pois estávamos todos enganados. No final das contas, as Armaduras de Ouro têm relação com as constelações do Zodíaco. — falou Saori, pensando para si própria.

Hyoga aproximou-se da janela e olhou para eles com algo na cabeça.

— Esses Cavaleiros de Ouro parecem ser a elite do Santuário. — falou ele. — No entanto, nenhum de nós, treinados para sermos Cavaleiros, tinha qualquer conhecimento deles.

— Shaina sabia. — falou Seiya, lembrando-se de que não havia sido surpresa alguma para ela a aparição de Aioria.

— Mas os Cavaleiros de Prata não pareciam saber. — rebateu Alice.

— O objetivo da Guerra Galática era expor essa engrenagem do mal que existe no Santuário. — falou Saori. — Talvez os Cavaleiros de Ouro fossem mesmo algo secreto até mesmo para eles.

— Acha que os Cavaleiros de Ouro podem estar por trás disso? — perguntou Alice ao seu lado.

— Não sei. Mas Aioros era um Cavaleiro de Ouro. E foi morto.

— Tem razão. — falou Seiya, olhando para Alice. — A força dos Cavaleiros de Ouro é gigantesca.

— Sim. Seria preciso uma força maior ou semelhante para poder matar um Cavaleiro de Ouro. — concordou ela.

— Quando estive junto ao Camerlengo, ele temia a chegada de alguém enquanto estávamos conversando e por isso me mandou embora de volta. — falou Saori. — E para conseguir acesso ao Templo de Atena, imagino que a pessoa precise ser muito forte.

— Forte como um Cavaleiro de Ouro. — comentou Seiya.

A dúvida ficou no ar entre eles.

Doze Armaduras de Ouro.

—/-

O dia amanheceu bonito em Rozan. Fora do casebre na montanha, Shiryu, Shunrei e o Mestre Ancião despediam-se das visitas.

— Obrigada por tudo, Shinadekuro. — disse Shiryu para o garoto.

— Agradeça à Mestre Ikki quando puder. — disse ele. — Ela que me enviou até aqui para chacoalhar seu esqueleto um pouco.

A voz de Dohko falou grave.

— Vai cuidar dela, não é, Shunrei? — perguntou ele.

— Eu adoraria dizer que vou, Dohko. — respondeu. — Mas você sabe que ela não vai parar quieta.

— E você, Dohko? — perguntou Shiryu. — Vai continuar combatendo o crime na grande cidade?

— Infelizmente. — falou ele.

— É bem-vindo aqui de volta quando quiser treinar. — falou o Mestre Ancião ao antigo discípulo.

— Vou pensar no seu caso, Mestre.

— E o convite eu estendo a você também, Shinadekuro.

— Não. — negou rapidamente ele. — Meu irmão era o grande guerreiro da família.

— Eu não ligaria de ter algumas aulas sobre como combater na noite. — falou Dohko a Shinadekuro.

E assim se deu. Os dois foram embora das montanhas juntos, deixando os picos de Rozan para trás.

Alguns dias se passaram, em que Shiryu treinava debaixo da cachoeira, mas também capinava a terra das plantações de arroz que Shunrei cultivava para consumo próprio, bem como uma pequena quantia para trocar por outros víveres na cidade mais próxima.

Certo dia, ao terminar de capinar, ela despediu-se de Shunrei e foi se sentar ao lado do Mestre Ancião diante da cachoeira.

— Está feliz, Shiryu? — perguntou o Mestre.

— Sim, Mestre. Finalmente reencontrei minha vontade de viver, graças ao Shinadekuro e à Shunrei.

— Não é verdade, Shiryu. Shinadekuro te ensinou os caminhos do corpo e Shunrei se manteve ao seu lado não se importando com o que aconteceria. — falou o Mestre, com gravidade. — Mas foi você quem reviveu a chama de seu coração. Outra vez voltou à vida. Não menospreze essa sua capacidade incrível de retornar, Shiryu.

— Mestre…

— E o que pretende fazer agora?

— Quero voltar para estar com Xiaoling e os outros. — disse ela, com um pouco de tristeza.

O Mestre Ancião respirou profundamente, ponderando aquela resposta e compreendendo o coração pesado de sua discípula ao ter de deixar Shunrei naquelas bonitas terras.

Na tranquilidade e familiaridade daquela tarde, no entanto, Shiryu notou que as águas do fundo da cachoeira tornaram-se revoltosas. Ela se levantou com uma sensação horrível dentro do peito. Uma presença forte estava se aproximando.

À sua frente, ainda que nada pudesse ver, Shiryu conhecia o véu de noiva poderoso que se estendia por uma imensa altura. E justamente por conhecê-la tão bem que notou como algo havia mudado nas águas; era como se, aos poucos, o fluxo da cachoeira fosse diminuindo de maneira impossível, até que chegou ao absurdo da cachoeira inteira secar, como se algo represasse o rio no topo da montanha.

Não precisou perguntar ao Mestre o que acontecia, pois um cosmo terrível invadiu seu coração. Alguém se aproximava. Era um Cosmo como nunca havia sentido, pois a presença se apoderou não somente de seu peito, como de toda a montanha. Era forte, enorme, profundo, ameaçador.

O Cavaleiro de Ouro.

Ainda que nada pudesse ver, Shiryu lembrou-se de como Hyoga havia descrito a sensação que teve quando aquele sujeito dourado apareceu diante dele nas Ruínas da Discórdia.

Acalmaram-se as águas e Shiryu escutou claramente o som de passos. Passos agudos que pareciam caminhar sobre o vidro calmamente. Ameaçadoramente. Os passos ecoavam de maneira impossível contra uma ponte de vidro, que Shiryu sabia muito bem não existir entre aquele rochedo em que estava e o véu de água da cachoeira. De todo modo, a figura se aproximava, caminhando na sua direção, sem dúvidas vindo de dentro da cachoeira.

— O que está acontecendo? — perguntou-se Shiryu, e o Mestre Ancião ficou em silêncio.

Os passos que ecoavam na ponte de vidro invisível finalmente chegaram ao rochedo em que estavam. O Cavaleiro de Ouro estava diante deles. Embora houvesse escutado um relato maravilhoso, Shiryu não conseguia deixar de estar alerta, pois aquela figura lhe transmitia uma sensação terrível.

— Da quanto tempo non ci vediamo, Maestro dei Cinque Picchi. — falou uma voz grave, mas feminina. Muito dura.

— Ah, é verdade. — respondeu o Mestre em língua-comum, com gravidade na voz. — Já faz mesmo muito tempo mesmo, Máscara da Morte.

A água represada no rio acima pareceu novamente verter seu fluxo natural e caiu com estrondo no rio abaixo, devolvendo à Shiryu a familiaridade daquela música a que estava tão acostumada.

— Suponho que sua visita não seja apenas a turismo. — falou o Mestre, e recebeu de volta uma breve risada debochada.

— Lamento ser o caso, Mestre dos Cinco Picos, mas devo colher a sua vida. — falou a mulher.

— O que quer dizer com isso? — perguntou Shiryu colocando-se de pé.

— Mestre dos Cinco Picos. — começou a voz daquela mulher. — Por se recusar a responder ao chamado do Santuário, ausentar-se da justa luta contra os inimigos de Atena e abrigar em treinamento uma traidora do Juramento, o senhor está dispensado de sua obrigação como um Cavaleiro de Atena.

Quando Shiryu sentiu aquele cosmo ascender brevemente para dar cabo de sua missão, ela saltou alto e desceu com seu chute mais poderoso, ao ponto da água da cachoeira mover-se com seu cosmo.

O chute, no entanto, Shiryu percebeu que foi apartado completamente, como se ela tivesse parado em um prego que, ao invés de cravar em seu pé, simplesmente a paralisou no ar. Pois a Cavaleira de Ouro parou seu poderoso chute com apenas um dedo.

— O que significa isso? — perguntou a mulher. — Uma mosca está tentando impedir Máscara da Morte? Ora, Mestre Ancião, não me diga que não contou ao seu discípulo a diferença entre os pobres mortais e nós, que somos Cavaleiros de Ouro.

O Mestre Ancião nada respondeu.

— Pois deixa que essa lição eu lhe dou de graça.

Shiryu sentiu seu corpo arremessado contra o paredão da cachoeira e então para o fundo do rio.

—/-

O som da água despencando na cachoeira apagou os ecos da batalha. Ali o Cavaleiro de Ouro era uma mulher absolutamente deslumbrante e voluptuosa. Sua Armadura de Ouro cobria-lhe dos pés à cabeça, de arestas pontiagudas; caminhava sobre saltos altos de ouro que lhe concediam uma postura imponente e terrível. Seu rosto era de sobrancelhas arqueadas feito um desenho perfeito, os grandes cílios delineados guardando olhos tão verdes quanto as campinas. A boca enorme no rosto de um sorriso encantador; os lábios carnudos pintados de um preto profundo, emoldurados por uma mandíbula forte e encantadora. Um diadema de ouro maravilhoso ornamentava seu rosto com espinhos para fora, como se fossem pernas de um caranguejo. Seu cabelo era prateado, curto, mas cheio e armado.

— Parece estar preparado, Mestre dos Cinco Picos. — falou ela, sua voz carregava um forte sotaque que a conferia uma personalidade ao mesmo tempo ameaçadora, mas também muito maliciosa.

O Mestre Ancião respirou fundo.

— Preocupa-me, Máscara da Morte, que os pecados dos quais sou acusado não sejam verdadeiros. — começou a dizer o Mestre. — E, como não são verdadeiros, me parece que há um terrível engano. E esse terrível engano penso que seja a presença de algo que não deveria estar onde está.

A cachoeira rugia atrás dos dois.

— A minha missão foi dada pelo Camerlengo em pessoa. — falou a mulher, decidida.

— Pois então há um impostor passando-se pelo Camerlengo. Sua vontade não é a da justiça, senão a do próprio mal.

— E daí, Mestre? — respondeu a mulher, com um tom de deboche na voz.

— E daí?! — surpreendeu-se o Mestre.

Bateram no baixo rio as águas poderosas daquela cachoeira.

— Entendi. — falou o Mestre, finalmente. — Achei que a lealdade ao Santuário fosse fruto de profundo desconhecimento da verdade por trás dos panos. Mas há aqueles que a conhecem muito bem e ainda assim oferecem sua lealdade cegamente.

— Ora, Mestre. As definições de certo e errado mudam conforme o tempo. O mal e o bem se alteram e é a própria história que prova isso. — falou a voz desapontada da mulher. — O mal pode ser o justo, se sair vitorioso de uma guerra. Ao mesmo tempo que aquele que se enxerga justo pode se tornar o vilão. Tudo depende de quem vence a guerra e escreve a história. O Santuário pode ser visto como o mal, mas o planeta está em paz graças às nossas vitórias. Quem dirá que somos os vilões e quem questionará nossas vitórias? Você? Que nada fez para ajudar nas batalhas e aqui ficou olhando para uma cachoeira por todo esse tempo?

— Que tolice. — falou o Mestre Ancião, para surpresa da mulher. — A injustiça nunca se torna justiça.

A mulher deu alguns passos para trás com a coragem de um velho prestes a morrer lhe dando sermões.

— E é a própria história humana que prova que isso é verdade. Mesmo os grandes impérios com seus exércitos infinitos foram derrotados e sumiram do curso da história. Você diz que os vitoriosos a escrevem, mas a história pode ser reescrita e os homens a fazem a todo o momento. — e então o Mestre Ancião olhou nos olhos daquela mulher. — Preocupa-me que, na condição de uma Santa de Ouro, você não saiba que a Justiça nunca deixa de ser a Justiça. E que o mal nunca deixará de ser o que é.

Máscara da Morte, atrás, ascendeu seu Cosmo dourado, finalmente.

— Então veremos quem estará certo ou errado quando nos encontrarmos no Inferno, Mestre.

—/-

Shiryu afundava na água profunda do rio abaixo da cachoeira; seu corpo dolorido, sua cabeça girando e seus pensamentos confusos sobre os pecados de seu Mestre e a força daquela inimiga. Lembrou-se de que ela sempre voltava. Fosse da escuridão, da morte ou do fundo daquele rio. Iria voltar, como sempre fazia.

Ergueu seu cosmo, iluminando as águas de verde-esmeralda; um tufão formou-se com ela em seu centro e, assim como outrora havia revertido o fluxo da cachoeira, agora levantaria novamente o Dragão do fundo do rio para a abóbada celeste.

Com efeito, a água do fundo do rio reverteu novamente a cachoeira, levantando-se na figura de um Dragão chinês maravilhoso que rugiu na montanha antes de engolir Máscara da Morte no rochedo.

— Cólera do Dragão! — precedeu a voz de Shiryu com força.

Sentiu seu punho atingindo a Cavaleira de Ouro, arrastando-a para longe do Mestre. Colocou-se diante dela trajando sua Sagrada Armadura de Dragão, que vestiu seu corpo respondendo ao seu cosmo. Novamente a vestia depois de tanto tempo e de tantas dúvidas.

— Maldição! — falou a voz da mulher ao ver-se arrastada naquele rochedo.

— Terá que me vencer se quiser chegar perto do meu Mestre! — ameaçou Shiryu, e a mulher gargalhou.

— Te vencer? — repetiu ela. — Pois eu cansei de você, Dragão. Deveria ter ficado no fundo daquele rio, pois agora eu vou lhe enviar para um lugar terrível de onde não poderá nunca mais voltar.

Shiryu sentiu como o cosmo da Cavaleira de Ouro levantou-se na montanha, mas ao contrário da sensação inicial que era como se uma onda invadisse os Cinco Picos, dessa vez ela sentiu como se aquele cosmo sugasse a sua vida; o barulho da cachoeira amainou-se, as sensações que tinha tornaram-se mais nauseabundas e sua própria respiração ela não parecia mais sentir ou escutar. Era como se morresse aos poucos e enquanto morria, permanecia plenamente consciente de cada parte do seu corpo e de cada sentido se apagando. Ouviu distante a voz bonita de Máscara da Morte, muito severa.

— Há um aglomerado de estrelas no céu a que dão o nome de Presépio. E ao Presépio correm as emanações que se elevam das almas de cadáveres feito fogos-fátuos. Em outras palavras, o Presépio é a entrada para o Inferno de todas as almas!

Sua voz rasgou-se em um grave gutural baixo que conforme se alongava, Shiryu percebia com assombro que seu corpo começava a ser puxado contra sua vontade. Mas isso não era exatamente o mais tenebroso, pois Shiryu viu uma fenda se abrir em sua escuridão.

Ela podia enxergar aquele fenômeno.

Uma fenda se abria no alto e adiante lentamente tornando-se maior e maior a cada instante. Conforme crescia e se expandia a fenda, mais e mais forte puxava seu corpo. Ela tinha certeza absoluta que podia ver e enxergar através desse umbral colinas escuras de uma região iluminada por fogos-fátuos que pareciam caminhar em uma fila lamuriosa. Sentiu seu corpo enregelar-se, pois passou por seu coração a ideia de que vislumbrava o próprio Inferno.

— Shiryu! — ouviu de dentro uma voz ecoar naquelas colunas profundas e profanas.

Seu peito assombrou-se quando foi finalmente salva por uma sensação reconfortante e forte que apagou a imagem do Inferno dos seus olhos e a jogou novamente na escuridão, de joelhos. Puxando o ar.

— Espere, Máscara da Morte. — era uma voz conhecida. — Como pode uma Santa de Ouro mostrar todo seu poder para uma mera Cavaleira de Bronze?

O brilho enorme nos rochedos, Shiryu não podia vislumbrar, mas a presença limpou seus sentidos da pressão que sentia e a trouxe novamente mais próxima da vida.

— Ah, eis que uma amiga vem de longe. — Shiryu ouviu seu Mestre dizer.

— E, além do mais, Shiryu é uma grande amiga minha. Não posso permitir que a mate aqui.

— A Santa de Ouro de Jamiel. — anunciou Máscara da Morte adivinhando quem vinha. — Mu de Áries!

Mu de Áries? refletiu Shiryu. Era um alívio e uma confusão enorme.

— Mestre Mu? — perguntou Shiryu.

— Quanto tempo, Shiryu. — disse ela. — Vejo que sua Armadura está inteira dessa vez.

— O que faz aqui, Mu? — perguntou Máscara da Morte com sua voz poderosa.

— Vim pagar uma visita tardia a um grande amigo, Máscara da Morte. O que pretende fazer agora?

A mulher fabulosa sorriu, debochada.

— Eu não sou louca de enfrentar dois Cavaleiros de Ouro. Vejo com bons olhos que esteja usando a sua Armadura de Ouro, Mu. — adicionou ela. — Não se atrase, pois você também foi convocada de volta para o Santuário. E, a não ser que queira acabar como o Mestre dos Cinco Picos, sugiro obedecer. — finalizou ela.

— Obrigada pela preocupação, Máscara da Morte. — respondeu Mu.

Arrivederci. — falou ela de maneira sensual e bonita.

Shiryu sentiu como aquele cosmo poderoso e profundo novamente caminhou em sua ponte invisível até que seu cosmo desaparecesse completamente dos Cinco Picos Antigos.

— Perdoe-me pela interrupção, Mestre Ancião. — disse Mu. — Eu sei que tinha tudo sob controle.

— Nada para se perdoar aqui, minha jovem. Chegou na hora certa. — respondeu o Mestre. — Vejo que está usando a sua Armadura de Ouro novamente.

— Atenderei ao chamado do Santuário. — anunciou a Mestre Mu.

— Está com medo de se tornar um velho amargo como eu? — perguntou Mestre Ancião, sorrindo.

— Não. Dessa vez é diferente. — falou a Mestre Mu. — A Coruja anunciou que Atena pretende marchar ao Santuário.

— Oh.

Mestre Ancião deixou escapar sua respiração rouca, como quem surpreende-se de maneira contida.

— Então é chegado o momento. — disse ele. — Meu velho amigo ficaria muito orgulhoso de você, Mu.

Os Mestres ali pareciam contentes de se reencontrar, mas havia uma pedra dura e pesada afundando no peito de Shiryu. Uma voz que ecoava em sua mente chamando-lhe de muito longe.

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A Mansão de Saori voltava a ser habitada; ou melhor, apenas parte dela, já que os quartos destruídos ainda precisavam ser reformados. Mas havia uma ala inteira intocada pelo fogo que ela havia voltado a utilizar. Tinha uma equipe pequena para manter, mas tinha ao seu lado os meninos e meninas de que mais gostava.

Seiya havia finalmente deixado o hospital, mas o clima no salão comunal era tenso. Seiya, Shun e Hyoga tinham cada qual pensamentos distantes, pois sentiam que em breve deixariam para trás a vida que tinham para embarcar em uma terrível batalha.

De volta ao seu quarto com sacada, agora limpo e novamente habitável, Saori sentiu as pernas bambearem e precisou apoiar-se na mesa para não se desequilibrar. Caiu sentada em uma cadeira quando Alice veio ao seu socorro.

Saori deixou escapar um urro visceral, como se a dor que sentia não pudesse ser traduzida em palavras, mas apenas em um urro primordial. Então vieram as lágrimas e o desespero.

Alice chamava-lhe em vão, pois Saori parecia chorar todas as tristezas e feridas acumuladas por todos aqueles anos. Se há tanto tempo mantinha-se segura, valente, equilibrada, tudo espatifou-se como um vitral grosso que, ao explodir-se, não somente ecoava de forma poderosa, como também rasgava as paredes antigas. Ela tentou segurar Saori para que deixasse de se debater, com medo de que se machucasse; seu rosto também já triste de vê-la naquela situação.

Perguntava o que havia acontecido, o que havia sido dito, o que a machucava tanto. Saori tentava falar, embora suas palavras fossem tortas, soluçadas, repetidas e, por vezes, incompreensíveis. Não demorou muito para que finalmente Alice compreendesse o desespero de Saori e juntas fossem ao chão, destruídas. Xiaoling estava morta.