Shiryu, novamente usando sua Armadura de Dragão, menos tonta e mais alerta, ajudou Shun a trazer Seiya de volta. Ele estava em uma condição lastimável. As manchas arroxeadas estavam espalhadas pelo seu corpo todo, seus batimentos estavam fracos e ele estava já sem consciência.

Tiraram toda sua Armadura para que seu corpo pudesse respirar e Shiryu disse que tentaria algo antigo da medicina chinesa, mas foi interrompido pela pequena Andrômeda Negra.

— Deixe-me ajudar. — disse ela.

Ao fundo, o irmão de Dragão Negro ainda lamentava a morte do irmão junto a seu corpo.

A Corrente de Andrômeda não identificava ali um inimigo, portanto Shun e Shiryu abriram espaço para que ela pudesse se aproximar.

Ela identificou o ferimento inicial no estômago de Seiya e de um cinturão que tinha na sua Armadura Negra, retirou dois pequenos frascos. O primeiro, ela jogou na ferida de Seiya que, ao contato, reagiu levemente com dor.

— Abra a boca dele. — pediu ela e Shun atendeu.

Derramou então o conteúdo do segundo frasco na boca de Seiya e a fechou rapidamente.

— É um antídoto para o veneno das flechas. Ele deve ficar melhor muito rápido. Ele não ia morrer na verdade, só ia ficar muito mal por umas semanas. Esse antídoto vai limpar rápido o organismo dele. — falou ela, sentindo-se muito culpada.

— Obrigada. — disse Shiryu para ela, mas ela se levantou com o semblante triste e sentou novamente ao lado do irmão cego do Dragão Negro.

Shiryu sentiu o peso daquela morte e ficou muda olhando para Seiya, que sofria à sua frente.

E então percebeu que Shun havia se levantado para seguir em frente.

— Espere, Shun.

—/-

Os dois caminhavam pela parte mais baixa do vale, onde já se abria para o começo de um bosque de pinheiros cobertos de neve. Caminhavam em silêncio e haviam deixado todas as partes da Armadura de Ouro para trás; com o elmo que estava com Fênix, ela estaria completa, mas Shun estava ali por sua irmã. E Shiryu seguiu em frente por Shun.

Muito breve os dois sentiram impactos cósmicos adiante e sem dúvidas souberam que Fênix lutava com alguém.

— O quê? Mas… será que é a senhorita Saori? — perguntou-se Shiryu, para espanto de Shun. — Ela me ajudou na luta dentro da Caverna…

— Se ela estiver lutando sozinha contra a minha irmã, ela está correndo grande perigo. — preocupou-se Shun.

E os dois desataram a correr pela neve até que a Corrente de Andrômeda começou a reagir: o inimigo estava próximo.

Estava diante deles.

Sentada em uma rocha olhando para os dois, a Fênix tinha suas penas tremeluzindo atrás dela, dançando ao sopro do vento do vale. No rosto um sorriso maligno e os olhos cheios de ódio.

— Chegaram tarde demais. — disse ela.

Shiryu colocou-se na frente, mas as Correntes de Andrômeda se entrelaçaram no seu corpo e a nocautearam.

— Shun! O que está fazendo?

— Desculpe, Shiryu. Eu não aguento mais envolver você e os outros nessa luta por nossa causa.

Shun então virou-se para sua irmã e tirou os dois punhos das Correntes da Armadura, em claro sinal de que não lutaria. Ikki nada disse.

— Irmã… O que foi que aconteceu? Por favor, me diga. Você era muito valente, mas também era justa e bondosa. Não posso acreditar que tenha se tornado tão má!

Fênix, em silêncio, apenas olhava nos olhos de Shun e neles encontrava uma profunda tristeza, que lhe despertava ainda mais forte a ira que queimava nos olhos.

— Eu não quero lutar com você. Eu nunca vou lutar contra você. Foi você quem me ensinou a me defender…

— Onde está a Armadura de Ouro? — interrompeu ela.

— Esqueça a Armadura de Ouro, Ikki. Estou aqui por você.

— Eu não preciso de você!

— Não é verdade. Se eu puder fazer qualquer coisa para que pare com tudo isso e volte a ser quem era. Por favor, irmã.

Ikki saltou de sua rocha e atingiu Shun com uma voadora, jogando-o contra a parede.

— Chega de sentimentalismos! — vociferou ela. — Como você é fraco, Shun!

Fênix ameaçou o irmão ajoelhado à sua frente, mas foi interrompida pelo disparo de muitos meteoros na sua direção. Seiya estava novamente de pé, trajando sua Armadura de Bronze e pronto para a luta.

— Fraco? A única fraca que eu vejo aqui é você, Ikki. — disse Seiya.

— É? E o que vai fazer, Pégaso? — desafiou ela. — Um pobre coitado como você. Abandonado pela própria irmã! — provocou ela.

— O quê? — revoltou-se Seiya imediatamente.

— Ikki! — clamou Shun.

Seiya avançou para moer Ikki na porrada, mas imediatamente perdeu o equilíbrio e tombou para o lado de joelhos; a dor da ferida lhe doía e a visão estava toda torta. Ikki gargalhou.

— Que ridículo. Mal consegue andar por causa da Pégaso Negra.

— Ele não está sozinho. — disse Shiryu se levantando.

— Ah, pois agora isso virou uma festa, que vontade de vomitar. Vamos, respondam-me, o que estão fazendo aqui? São parte do exército de crianças daquela Fundação? Daquele velho canalha? É isso que vocês são? Pois eu tenho uma má notícia, crianças, a vida de vocês não importa. A única coisa que importa para eles é a Armadura de Ouro!

Ela revelou o elmo dourado que carregava.

— E eu vou acabar com essa Armadura. E depois eu vou acabar com a Fundação. E vou acabar com cada um de vocês, se ficarem no meu caminho!

Seiya sentia uma raiva profunda por Ikki ter mexido com sua irmã, e essa raiva, naquele momento, era maior do que sua simpatia pela causa, pois ele também tinha sua revolta por motivos semelhantes.

— Não irá fazer absolutamente nada disso. — disse alguém às suas costas.

Ikki pareceu legitimamente surpresa e ao se virar encontrou o Cavaleiro de Cisne; ele tinha sangue escorrendo da testa, sua armadura gélida estava rachada em alguns pontos, mas no rosto havia um semblante confiante.

— Como é possível? Você deveria estar morto. — disse ela.

— Desculpe desapontar. — falou o Cisne. — E espero que se lembre de que a mesma técnica não funcionará mais comigo.

— Que piada, você não está em condições de lutar.

— É você que não está em condições de lutar com esse braço dormente, Fênix.

— Cale a boca, vocês não são páreo para as Asas de Fênix!

Com a rapidez de uma ave de rapina, avançou e socou todos com uma velocidade impressionante; o Cavaleiro de Cisne usou seu escudo, mas ainda assim acabou sendo arrastado para trás. A Fênix era incrível, mesmo com apenas um braço à disposição.

— Está resolvido. Eu não tenho tempo para vocês. — disse ela tomando o elmo e deixando-os ali sofrendo.

— Ah, Ikki. — Shun levantava-se. — Eu agora te entendo...

— Não! — vociferou ela, dando um tapa no irmão, mas ele continuou a se levantar e olhar para Ikki.

— É verdade que a Fundação fez coisas horríveis e nos enviou para sofrer dia após dia nos piores lugares possíveis. — começou Shun. — Seis anos atrás você me disse que eu nunca deveria perder a coragem e se despediu de mim. E que eu era capaz de superar tudo e voltar para casa. E por todo esse tempo, tudo que eu pensei foi em você e em como eu gostaria de voltar para te reencontrar.

Ikki então hesitou dentro daqueles olhos puros de Shun, e talvez esse vacilo breve em que ela pareceu balançar por dentro foi justamente o gatilho para que se tornasse ainda mais raivosa, como se inconformada de ainda ter essas fraquezas dentro de si. Seu cosmo pegou fogo ao seu redor, ela levantou Shun pelo queixo e caminhou com ele para a entrada da floresta, até que percebeu que havia alguém ali. Alguém que fez seu rosto se contorcer de raiva e deixar o próprio irmão cair como se não fosse nada.

O rosto de Saori Kido era de culpa, mas não havia fraqueza ou pena em seu olhar e sim uma força muito decidida de si. A culpa estava levemente em suas sobrancelhas. Ela usava sua Armadura de Aço e carregava nas costas a Urna da Armadura de Ouro. Ikki ventilava de ódio e apontou o dedo ameaçador para ela.

— Você é a manifestação de tudo que eu mais odeio nessa Terra. — disse ela entre os dentes. — Por sua causa eu passei pelo Inferno, perdi tudo que eu tinha.

— E não tem um dia que eu não pense nisso. — falou Saori.

— Cale a boca! — vociferou Ikki, pois em seu coração odioso ela não tinha o direito de compreender. Ela tinha de pagar. Alguém tinha de pagar.

— Agora eu entendo porque me chamou até aqui, Ikki.

E ao compreender o que ela queria dizer, a Fênix experimentou abrir um sorriso de puro escárnio.

— Estou surpresa. Não achei que iria reconhecer qualquer um deles. — Saori manteve-se sólida. — Pois os Cavaleiros Negros são apenas algumas das muitas vidas que foram destruídas por sua causa. Quantas outras que não estão aqui também foram? Quantas outras nunca voltaram? Quantas mais nunca vão voltar, Princesa?

— Nenhuma mais! — disse ela pisando firme na frente.

— Exatamente!

E Fênix fez seu cosmo crescer. Ela apontou para Saori e de seu dedo um fino raio escuro disparou apenas para bater e voltar contra seu próprio cérebro. Seus olhos vidraram-se; a imagem de Saori estava embaçada à sua frente e ela notou, com assombro, que havia uma parede límpida de gelo entre ela e Saori.

— Eu disse que o golpe não funcionaria novamente.

O Cavaleiro de Cisne estava ao lado de Saori. E foi tudo que viu antes de cair ajoelhada e atormentada por pesadelos de sua mente.

—/-

Um quarto escuro, sujo, frio e muito úmido; o barulho de ratos correndo pela parede, a goteira interminável pingando em uma bacia fria. Deitada em um tecido grosso e coberta de ferimentos pelo corpo, uma garota sofre de um frio intenso e, tremendo de febre, mal consegue descansar.

Incapaz de fechar os olhos na madrugada, ela percebeu alguém na soleira de uma porta que mal se fechava; adivinhou se tratar de algum prisioneiro ou ladrão para levar suas poucas sobras de comida. Levantou e preparou-se.

Quando a porta abriu, a garota armou para atacar quem quer que fosse, mas parou no momento exato em que percebeu de quem se tratava. Uma garota de olhos doces.

— Esmeralda! — e então caiu sentada perto da porta.

— Ikki. — disse ela. — Você está bem?

— Estou.

— Está mentindo, olhe para você. — disse Esmeralda, percebendo o sangue que lhe escorria por alguns ferimentos. — Eu não consigo entender, se continuar se ferindo desse jeito você vai acabar morrendo

— Não, eu não vou. Eu não posso. Eu preciso voltar para casa com a Armadura de Bronze de qualquer jeito.

— Mas acontece que meu pai está te dando um treino muito rigoroso.

— Eu não ligo. Para me tornar uma Cavaleira, eu suporto qualquer provação. Não se preocupe comigo, você não deveria vir aqui tantas vezes.

— Mas por quê?

— O seu pai pode se tornar rigoroso com você também se ficar muito comigo.

— Isso não importa. — disse ela, triste. — Você é a única pessoa que eu tenho nessa ilha. Eu já não existo mais pro meu pai. Eu nem mais o reconheço desde que ele colocou aquela máscara.

— Eu sei que ele está sendo rigoroso comigo, pois sei que acredita ser o melhor para mim.

Esmeralda ficou calada e tirou panos limpos que havia trazido para cuidar dos ferimentos da amiga, que sofria ainda com as dores.

— Não se preocupe Ikki, eu vou cuidar de você.

— Obrigada, Esmeralda… Esmeralda?

A noite iluminou-se pelo sol da tarde e a masmorra em que ela sofria deu lugar repentinamente a um bonito jardim de flores aos pés do vulcão.

— Faz pouco tempo que começou a brotar. E eu tenho vindo sempre pra ter certeza de que elas cresçam.

— Esmeralda…

— É o meu lugar preferido. — disse ela.

— É incrível.

— Diga-me, Ikki. Por que você quer virar uma Cavaleira? — perguntou ela. — Você tá sempre cheia de cicatrizes. Eu não consigo entender. Eu não entendo porque as pessoas precisam se odiar e brigar entre si. — ela então se abaixou e pegou uma flor do jardim. — Deve existir coisas muito mais sublimes nesse mundo do que essa vida de sofrimento. Mesmo nesse lugar horrível podem nascer flores tão bonitas.

E então colocou, com muito carinho, uma flor no cabelo de Ikki, que experimentou sorrir, pois sentia-se leve e revigorada. Até que uma onda de energia maligna varreu aquele jardim e o reduziu a cinzas.

— Há quantos anos está aqui já, garota? — perguntou uma voz odiosa.

— O quê?

A montanha ao fundo fumegava sua habitual fumaça escura; os rios de lava queimavam o solo e as rochas ao redor tinham todas marcas de erupções e cinzas. À sua frente estava seu mestre, um homem absolutamente forte, com cicatrizes por todo o corpo, mas o rosto escondido por uma máscara ritualística.

— Você não tem o que é preciso para conseguir a Armadura de Fênix. E o seu destino é ficar aqui para sempre!

Um soco no estômago da garota e um chute na cara.

— Ou você a conquista hoje, ou não conquistará jamais. — disse o terrível homem. — Seis anos que eu tento te ensinar a como ser forte. Você precisa de ódio, garota! Acha que o mundo terá compaixão com você? Acha que o mundo lhe dará flores? Não, esse mundo vai te esmagar! Esse mundo vai acabar com você, vai te violentar e te destruir.

E, enquanto falava, espancava a garota.

— Sinta o ódio por tudo dentro de você, Ikki! Encha seu peito de pura ira e ódio para que seus inimigos sejam reduzidos a cinzas na sua frente! Abandone qualquer sentimento além do ódio. Não consegue bater em seu mestre, pois irá apanhar de todo mundo na sua vida! Odeie seus pais que a deixaram órfão. Odeie o seu irmão covarde que a mandou pra cá no seu lugar. Odeie aquela Fundação que te obrigou a trilhar esse destino infeliz.

Ela sangrava enquanto apanhava de seu mestre. Ele a levantou pelo pescoço.

— Odeie! Odeie tudo, Ikki! Tenha ódio por tudo que existe!

E a jogou perto de uma rocha. E Ikki estava enfurecida; seis anos de um treinamento infernal, que havia se tornado ainda mais cruel e perverso nos últimos anos. E ela odiava aquele homem do fundo do seu coração por todo sofrimento que a fazia passar, por todo sofrimento que Esmeralda passava, por tudo de ruim que o povo daquela Ilha sofria. A dor das pedras escaldantes sob seus pés, a fumaça tóxica do vulcão, nada daquilo era perto da raiva que sentia por aquele homem.

Ikki abriu os olhos em chamas e avançou contra seu mestre, mas seu punho parou no peito dele. Havia lágrimas em seus olhos.

— Idiota! — gritou ele. — Por que conteve o golpe?

— Eu… eu…

— Ainda não entendeu que isso vai lhe custar a vida?!

E então o mestre de Ikki a atacou com seu punho odioso e Ikki esquivou-se da investida apenas para ouvir, longe, alguém sofrer no seu lugar.

— Esmeralda!

A garota estava apreensiva por sua amiga e estava ali para se certificar que seu pai não a mataria, mas o infortúnio fez com que ela estivesse no lugar errado, na hora errada. E seu peito sangrando a levou ao chão. Ikki a tomou nos braços.

— Esmeralda, por favor, não morra! Esmeralda! — as lágrimas lhe corriam pelos olhos.

— Ikki… — ela tinha muita dor e uma tristeza nos olhos. — Ah, Ikki, eu queria tanto te ver com a Armadura de Fênix.

— Não, Esmeralda! — ela abraçou a amiga no chão, em prantos.

As lágrimas descendo e pingando no corpo já morto de Esmeralda, Ikki sentia uma dor imensa no peito.

— Que estúpida. Ela não deveria nunca ter vindo até aqui.

— Como você foi capaz de matar a sua própria filha?! Como é possível? Seu assassino!

— Pois quem matou Esmeralda foi você, Ikki, quando hesitou em me atacar. Você é o motivo dela estar morta! Foi sua fraqueza que causou a morte dela.

Aquelas palavras doeram fundo dentro de Ikki e aquela dor que tinha no peito se espalhou pelo corpo como um veneno acordando seu cosmo profundo com uma vontade única de calar aquela voz horrenda.

E quando se levantou, o fogo de ódio que queimava em seu coração precipitou-se ao redor do seu corpo cobrindo-a com uma aura rubra e intensa. Como se queimasse em chamas. E as chamas secaram as lágrimas de seus olhos e ela avançou contra seu mestre e o espancou dos pés à cabeça. E finalmente o atravessou com seu cosmo de maneira fatal.

Seu mestre ainda teve forças para virar para Ikki e tirar a máscara ritualística que cobria o seu rosto, uma máscara que havia perdido sua cor, como se morta também.

E Ikki viu que, debaixo da máscara, os olhos do assassino de Esmeralda eram os seus próprios olhos revirados de ódio. À sua frente, Ikki viu a assassina de Esmeralda: ela própria.

Nascia a Fênix.