— Essa conversa está muito estranha. – falei olhando do médico para Vitor. – O que quer dizer com o organismo da minha mãe?

— Ela era sensível a certas substâncias.

— Tenho certeza de que eu não sou. Isto aqui. – falei erguendo o frasco. – Vai melhorar meu pé o mais rápido possível? – o médico olhou para Vitor por um instante e então de volta para mim, ele não precisou responder. – Eu preciso de algo rápido. Preciso me apresentar com o grupo para o Cabo Bosco e não posso me apresentar assim. – apontei para meu pé tentando mostrar o quanto estava desesperada para consertá-lo. Ignorei a informação nova que havia recebido sobre mamãe para focar em mim. Em me manter viva que era a primeira regra da minha sobrevivência.

O médico me observou por alguns minutos como se estivesse em uma luta interna para saber seu próximo passo. Ele assentiu com a cabeça levantando da cadeira, se aproximando da mesa ficando de costas para nós. "Tudo bem, isso não vai ser bonito de se ver" ele disse mexendo em algo que fazia o tilintar de vidro se chocando ecoar na sala. Pude ver Vitor erguer o pescoço para tentar enxergar o que ele fazia e que nós não conseguíamos ver dali. Quando ele se virou para mim tinha duas seringas nas mãos, uma vazia e a outra com líquido verde-escuro. Respirei fundo mantendo a calma, já era a milésima vez que fazia isso em um único dia, mas não iria mostrar medo ou nervosismo para nenhum soldado, afinal de contas, eu era uma Beta e Betas não tinham medo de nada.

Pelo menos eu disfarçava bem.

Vitor se aproximou de mim como um ponto de força mas eu não notei, não conseguia tirar os olhos da seringa com líquido estranho que o médico segurava. O líquido dançava dentro do tubo sempre que o médico balançava os braços explicando algo para Vitor. "... amostra de sangue" o ouvi dizer me fazendo prestar atenção nos dois.

— Você vai sentir uma leve picada. – ele disse sentando novamente na cadeira, erguendo minha perna deixando meu pé em seu colo.

— Eu... Eu não entendi. Amostra de sangue? – perguntei quando o vi colocar a seringa cheia na maca ao meu lado e a vazia prestes a me furar.

— Estava explicando para Vitor que vou precisar tirar um pouco do seu sangue para analisar se você é alérgica a alguma composição ou se pode, realmente, tomar qualquer remédio.

— Tudo bem. Vá em frente. – falei erguendo o braço.

Respirei fundo virando o rosto para a parede, para não vê-lo fazer o que estava prestes a fazer. Quando senti a pressão no pé, me virei para ver que o médico tirava o sangue do machucado e não de qualquer outra parte do meu corpo. Aquilo sim me deixou nervosa, a ponto de não disfarçar ao olhar para Vitor, que me olhava de volta completamente surpreso. Ele se aproximou do médico observando o que fazia de perto e visivelmente confuso. Eu nem mesmo era conhecedora da medicina, mas sabia que havia algo de errado ali.

— É na reação que preciso analisar exatamente o que está acontecendo no pé dela. – o médico respondeu para os olhares curiosos em cima dele. – Tudo bem, é só. – falou puxando de volta a seringa com sangue quase preto, colocando na maca para pegar a segunda. Ele olhou para mim antes de qualquer coisa. – Está pronta? – perguntou.

— Só um minuto. – falei respirando fundo ao fechar os olhos por alguns segundos.

Aquela fala e aquele momento pareceu estranhamente, muito estranhamente, como um déjà vu mas não da minha experiência de vida e sim da vida de outra pessoa. As imagens do meu pesadelo apareceram de repente me fazendo engolir duro observando o médico me encarar. Lembrei instantaneamente do médico, do paciente, da sala branca que, ainda bem, não se parecia com aquela que eu estava. Olhei rapidamente para Vitor, mas ele encarava o médico, fechei os olhos tendo a mais clara sensação de que deveria fugir à encará-lo de frente, mas por alguma razão insana, eu ainda estava lá. O médico não esperou por um minuto e antes que eu pudesse lhe dá permissão para fazer o que ele iria fazer, ele o fez assim mesmo.

A sala ficou escura quando uma dor insuportável me atingiu, me levando de volta ao pesadelo da outra noite. Nele não conseguia enxergar seus rostos, eram apenas sombras das pessoas que estavam lá, alguém deitado em uma maca e um homem com jaleco e seringa ao seu lado, quase a mesma posição que acontecia comigo. Eu só poderia está louca, me forçava a acordar mas não conseguia.

Será que eu iria acordar de novo?

Ouvi alguém exclamar bem perto de mim e então abri os olhos encontrando Vítor e seus grandes olhos castanhos me encarando próximos demais.

— Cora? Você está me ouvindo? – ele perguntou erguendo sua mão frente ao meu rosto. Pisquei os olhos olhando o teto branco sob mim, olhei em volta, a sala na qual havia entrado com Vitor, o médico em uma distância segura para ele e ninguém mais além de nós três.

— O que você fez? - Vitor gritou para o médico.

— O que ela precisava para melhorar. – engoli duro sentindo um gosto metálico na boca, fechei os olhos respirando e engolindo o quanto poderia para tirar o gosto da boca e para ter certeza de que ainda estava viva. Olhei para minhas mãos, meus dedos mexiam inconscientemente.

— É apenas um efeito do medicamento. Dormência no corpo, gosto estranho na boca, porém ela ficará bem. – o médico disse.

— Faça isso parar, então. – Vitor pediu analisando meu rosto, pondo dois dedo em meu pulso, pescoço e abaixo do nariz.

— Ela ficará bem. Só precisa de tempo. – tentei mover minha cabeça, mas era inútil. Parcialmente meu corpo inteiro estava dormente, ele estava lá mas eu não o sentia, tal como a dor em meu pé e cabeça. Por um lado, havia funcionado, mas por um outro, nada daquilo parecia certo.

— Quanto tempo? – Vitor perguntou, o médico olhou em seu relógio de pulso e então sorriu.

— Alguns minut...

— Hã? – foi a única coisa que saiu de minha boca. Mais parecia um gemido do que a tentativa de falar uma palavra.

Os dois homens me observaram por três segundos antes de se aproximarem com olhos penetrantes, mãos geladas e dedos que tocavam e checava minha pulsação, minha testa, a cor embaixo dos meus olhos e minha garganta. Eu gostaria de poder dizer que estava tudo bem naquela parte sem que as palavras saíssem em gemidos e enroladas. Vitor encarou meu rosto e então desceu seu olhar para minhas pernas e não conseguiu conter o choque em seu rosto.

Será que eu poderia mexer a cabeça? A virei para os lados em um alongamento lento, tentei sentar fracassando na primeira vez sem força nos braços, Vitor me ergueu para que eu pudesse ver o resultado. O som de surpresa saiu da minha boca e eu tinha consciência disto, meu tornozelo estava completamente e inteiramente bem. Realmente bem. Com todas as palavras, bem. Não havia qualquer área arroxeada, dolorida ou apodrecendo, estava exatamente como sempre foi.

— Milagre? – o médico perguntou ao assistir minha expressão. – Não, é a mais pura ciência.

— Como...? – Vitor perguntou, incapaz de terminar a frase. Limpei a garganta pronta para dizer que não importava como. A princípio só o que importava era meu pé estar saudável outra vez. O que importava era eu voltar a andar e não ser um deles. Mas, por trás de toda animação e surpresa, importava sim. Quem era aquele médico, afinal de contas? O que exatamente ele injetou em mim?

— Uma pequena mistura de compostos.

— Apenas isto? – Vítor perguntou surpreso, um pouco intrigado. O médico concordou com a cabeça enfaticamente. – Cora, você está bem? Se sente bem?

— Sim... Bem... Melhor.

— Vá, leve-a para comer algo, ela precisa de açúcar no sangue e testar o tornozelo novo.

— Esta pronta? – Vitor perguntou para mim. Balancei a cabeça esperando que fosse o sinal de concordância, apesar de não senti-la muita bem. Vitor me ajudou a levantar da maca colocando uma de minhas mãos em seus ombros enquanto em me ajudava a andar até a porta.

— Espera. – falei a Vitor parando na soleira da porta aberta. Virei a cabeça para o médico que nos observava em seu lugar. – Qual... seu... nome?

— Doutor Robson. – ele respondeu. Um frio subiu pela espinha me deixando tensa, Vitor percebeu isso se apressando para me tirar dali.

De repente as imagens do meu pesadelo voltaram como um tapa, me fazendo fechar os olhos ao perceber que era o mesmo médico que eu havia sonhado na noite anterior e ele fazia exatamente o que fez no pesadelo comigo. "Tudo bem Cora, já passou" ouvi a voz de Vitor tentando me acalmar. Para ele eu deveria estar muito assustada para ele ter ficado tão nervoso lá dentro, mas ele nem mesmo imaginava o motivo de toda a tensão, o que explicava a sensação de algo errado com o médico ou o instinto de fugir antes que ele fizesse algo comigo.

Agora, eu só precisava ter certeza do que ele iria fazer com meu sangue e quem eram as pessoas no meu pesadelo.