Olhos De Sangue

Capítulo 7 - Revelações.


Acordei quando fui jogado na água.

Demorou um tempo até que eu percebesse que o que estava acontecendo, até que levantei num solavanco, tossindo e cuspindo água.

- Pelos deuses! – Ouvi Nina exclamar. – Sinto muito Yudai!

Sacudi a cabeça, dispensando as desculpas. Ao menos a queda na água me ajudara a acordar. Pisquei e percebi que estava sem a armadura e descalço. Alec começava a acordar, mergulhado até o queixo dentro da água. Pousadas na grama rala, vi duas espadas, que deveriam ser a minha e a de Alec.

- Vocês nos desceram? – Alec perguntou.

Olhei para cima e percebi que estávamos abaixo do penhasco em que havíamos lutado com o Despertado e esse provavelmente devia ser o rio em que escutara Alec cair. Olhei em volta e vi que um tanto afastadas do rio havia muitas árvores, iniciando uma floresta.

- Deviam ter me acordado com um chute. – suspirei. – Não estava tão ruim assim.

- Não?! – ela exclamou. – Você estava todo coberto de sangue e cortado. Sua perna estava com um buraco feio e sangrava muito.

Ponderei um pouco e depois tive que concordar. Anita apareceu, também só trajando o macacão e com seu longo cabelo solto. Saí do riacho e Alec também se levantou, reparei que seu braço estava feito de água novamente, e reparei também que Anita parecia pensativa e tensa. Ela então ergueu o olhar e bradou:

- Quero que respondam com o máximo de sinceridade: Algum de vocês já chegou perto do Despertar?

- Hã? – Nina perguntou atônita.

- Apenas respondam. – disse.

-... Bom... Sim. – Alec disse, aparentando estar sem jeito.

- Hã? – encarei-o.

- Eu também. – Nina disse por fim com um suspiro.

- Ótimo. – disse. – E são problemáticos? Sabem de algo que não deveriam saber?

- Não.

- Nem eu. – Nina respondeu.

Hesitei um pouco antes de responder.

- Sim. – Respondi.

- O que você sabe? – perguntou.

- Eu fugi da área de treino quando tinha onze anos. – torci os lábios. – E vi uma caçada que teve resultados que foram encobertos.

Ela assentiu levemente, e então pôs a mão no queixo, pensativa e passou-se um bom tempo até que ela dissesse lentamente.

- Então o que eu pensava é verdade.

- O quê? – perguntei curioso.

Ela hesitou um instante, parecendo ponderar se contava o que se passava em sua mente ou não, então respirou fundo e disse:

- Acredito que a Ordem queria se livrar de nós.

Aquilo me pegou de surpresa, e percebi que com os outros não fora diferente. Se livrar de nós?

- Tem certeza? Quer dizer, você não parece se encaixar em nenhum dos dois casos.

Ela deu um sorriso leve.

- Eu me encaixo em ambos os casos.

Pisquei.

- O que te leva a pensar isso? – Alec perguntou, se levantando também. Assustado, vi então que seu braço agora estava completamente regenerado, feito de carne e osso. Muita água saía dos poros do braço.

Ela suspirou e olhou para o chão, torcendo as mãos.

- A Ordem primeiramente nos mandou para uma missão que era praticamente suicida. – começou. – E sempre procuram saber o nível do oponente para mandarem um contingente com poder o suficiente para não perder, para não perderem uma força que possa ser preciosa. Mas estávamos em desvantagem. Praticamente ganhamos por milagre.

- Por uma pedrada. – Nina observou.

- Há mais algo?

- Há alguns anos, me mandaram para uma caçada a Despertado. Quando ele chegou, reparei que ele agia de modo estranho. Ou melhor, agia de modo estranho comigo. Mas mesmo assim, ajudei a arrancar seus membros e dei o golpe final. Quando ele morreu e assumiu sua forma humana, percebi que... – seu semblante tornou-se pesaroso - Era uma pessoa muito importante para mim, e que havia sido mandada em missão dias antes. Tudo o que eu sabia era que essa pessoa já tinha chegado perto do limite antes e depois ouvi uma conversa de dois curadores. Eles disseram que “Agora que morreu, é menos uma preocupação. Logo outro será colocado em seu lugar.

Senti um aperto por dentro. Deveria ser horrível descobrir que matara alguém que você era gostava, mesmo que houvesse virado um monstro. Pior ainda foi ver que, mesmo Anita repassando o que havia escutado, as escolhas de palavras demonstravam a frieza diante a morte dessa pessoa.

- Depois disso, reparei que a Ordem age como se fossemos descartáveis, meros peões. Isso me deixou com tanta raiva que decidi que iria acabar com isso.

- Acabar com a Ordem? – Nina perguntou e olhamos para ela. – Sinto muito, mas é suicídio! E além do mais, se a Ordem acabar, o que serão dos humanos?

Anita sorriu mais um pouco.

- Não foi isso que quis dizer. – respondeu. – Eu quero acabar com a Ordem comandada pelos humanos que conhecemos. Ela é extremamente restrita e todos são cuidadosamente selecionados. Todos são perceptivelmente falsos e a Ordem esconde muitas coisas.

- Você quer criar uma em que os guerreiros a comandem. – continuei.

- Sim. Os homens da Ordem são tão frios assim conosco, pois não sabem o que passamos, e todos os híbridos são obrigados a fazer a cirurgia para se tornar um. Se sentissem na pele o que passamos, eles não agiriam assim, toda vida tem seu valor.

- Sem falar nas experiências.

- Sim, as experiências que eles fazem com cobaias sem o consentimento destes. – suspirou. – Esses não são segredos nem para os humanos de fora. Mas vocês nunca estranharam que, quando matamos os monstros, eles imediatamente se desintegram? Como eles pegariam partes suas para transplantar para humanos?

Pensei sobre o que ela dissera. Sobre os curadores da Ordem serem falsos não era surpresa, mas ser tratado como descartável... Não era algo que agradasse. Eu fora obrigado a ser separado de minha família e sabia muito bem sobre ser obrigado à cirurgia, mas quanto aos monstros, realmente ela tinha razão.

- Mas o que você quer que façamos? – Alec perguntou.

- Disfarcem. – respondeu. – A Ordem já tentou nos livrar pela primeira vez, agora viu nosso nível de resistência. Finjam então como se não soubessem de nada.

Ela virou-se para Alec e Nina.

- Digam seus motivos para terem chegado perto do Despertar.

-... Curiosidade. – Alec disse e desviou o olhar, e soltei um suspiro. Não acreditava que ele fosse tão desmiolado a ponto de tentar algo tão perigoso. Vi Anita o olhando com repreensão e Nina o encarando.

- E você, Nina?

- Regulei mal meu uso de Aura. – reparei que seu semblante tornou-se minimamente pesaroso e melancólico. – Eu estava magoada com alguém e acabei não me segurando muito bem por isso.

- Não foi comigo. – Alec disse a mim. Minha expressão deve ter dedurado meus pensamentos.

- Foi difícil para vocês retornarem? – Anita perguntou.

- Para mim foi. – Alec disse, e reparei que ele corava minimamente. – Foi extremamente doloroso, mas... A dor era prazerosa. Parecia que quanto mais doía, mais eu desejava-a. Era uma sensação bem estranha.

- E masoquista. – observei e ele me fuzilou com os olhos em resposta.

- Comigo foi mesmo assim. – Nina disse após.

- Ah, legal, dois masoquistas, vocês realmente se merecem. – bufei baixo antes de conseguir reprimir o sarcasmo que acabara herdando de meu pai.

Ambos me olharam com uma expressão que me indicou que pensavam seriamente em cometer um homicídio qualificado. Um arrepio passou pela minha espinha ao me lembrar do dragão.

- Se eu molhar ele será melhor condutor para o choque. – Alec rosnou.

- Ótima ideia. – Nina disse.

Anita riu enquanto eu realmente passei a temer a possibilidade de ambos estarem falando sério, mas então Anita me salvou ao continuar o assunto de antes.

- Vocês dois já chegaram perto do Despertar, então isso significa que a força de vocês aumentou consideravelmente. – começou. – Vocês podem equiparar-se agora em força com dígitos únicos até o meu número, o seis, mas não tentem de forma alguma arranjarem confusão com os números um a cinco. Eles são, literalmente, monstros no quesito força. Caso se encontrem com um, não os ataquem, ajam da maneira mais submissa que conseguirem e torçam para que não suspeitem ou ataquem.

Alec assentiu, e Nina também, fitando o chão.

- Mas, de todos os cinco, vocês devem ter cuidado com um em especial.

- A número 1, Liana? – perguntei.

- Não, com o número dois, Nicholas. – respondeu. – Ele é um guerreiro extremamente sangrento e ama, mais do que tudo, matar Despertados, se recusando a matar monstros normais. Se em suas caçadas não houver sangue que ele considera o suficiente, não hesita em se virar contra os próprios companheiros.

Nina estremeceu e disse:

- Imagino como ele seja.

- Sua aparência não é nenhum pouco condizente com sua personalidade. – ela revirou os olhos. – Ele tem a altura de Yudai, aproximadamente, e possui traços andróginos.

- Andróginos? – Alec perguntou.

- Resumindo, ele se parece o bastante com uma garota para ser confundido com uma. – resmunguei. – Isso é sério?

- Sim, mas isso só o ajuda a manter uma fachada. Na maior parte do tempo ele aparenta ser gentil e doce, tendo realmente os modos que lembram a uma mulher, mas, como ele mesmo disse – trincou os dentes – ele só age assim, pois acha divertido ver as pessoas acreditando que ele é uma ótima pessoa. Isso até por as garras para fora.

- E quanto aos outros? – perguntei.

- Vocês sabem já sobre Liana e Nicholas. Os outros são: Número 5, Raban, Número 4, Denis e Número 3, Elizabeth.

Não consegui reprimir o gemido de desgosto ao escutar o nome de Elizabeth, e Alec me olhou, dando um sorrisinho sugestivo. Então ela era um dígito único top cinco. Isso não era muito bom para mim. Anita e Nina nos olharam sem entender.

- O que foi? – Nina perguntou, e reparei que ela parecia um pouco triste novamente. Ou era impressão?

- Elizabeth tem uma certa afeição por Yudai. – Alec sorriu entrelaçando os dedos. – Que o marcou muito...

- Acho bom você parar por aí. – bufei.

- Na verdade, o traumatizou por... Tá bom, parei! – exclamou ao ver minha expressão. – Nós já conhecemos Denis, eles estão juntos no mesmo pacote na maior parte do tempo.

Anita deu um suspiro e concordou. Também me lembrava de Denis e Elizabeth sempre juntos, mas de maneira diferente de Alec e Nina.

- Acho que será melhor nos despedirmos agora. – disse. – Depois, tentarei mandar para vocês a imagem dos símbolos dos cinco.

Assentimos e então ela disse:

- Até mais. Espero ver vocês um dia então.



Depois disso, voltei para Nero e... Não consegui deixar Raquel lá. Como explicar? Parece que quando cogitei em perguntar por alguém que a aceitaria, eu fiquei... Indeciso? Não, acho que triste... Só sei que me apeguei bastante a ela, mais do que pensara. Eu então acabei saindo de lá com ela me seguindo, e ela parecia feliz por eu ter deixado-a continuar me acompanhando.

Eu também não podia voltar a Ordem, já que ela estava comigo, então depois de uma semana a curadora que seria responsável por mim, Undine, apareceu, me deu a missão simples de eliminar um monstro na cidade de Laville. Ela perguntou sobre Raquel e apenas dei de ombros e disse que ela estava me seguindo.

Depois disso, fui à cidade de Laville, matei o monstro e se passaram duas semanas, e quando estávamos acampando na costa de uma montanha percebi a movimentação característica de Undine quando ela chegava, acompanhada pelo motor do veículo da Ordem, tão baixo que chegava a ser quase inaudível até para mim. Era incrível a rapidez em que ela me encontrava, e pensei seriamente na possibilidade de terem inserido um sinal de radar em mim quando fiz a cirurgia. Afastando aqueles pensamentos, me levantei e Raquel me olhou.

- Fique aqui. – avisei.

Entrei por entre as árvores, e parei quando vi Undine sentada em cima de uma pedra. Ela era uma senhora com idade entre cinquenta e sessenta anos, já tinha cabelos grisalhos e rugas, e olhos tão negros que nem se distinguia a íris da pupila e vestia roupas todas negras, com o símbolo da Ordem, que eram duas espadas cruzadas dentre dois ramos.

- Noite bonita. – comentou quando me aproximei.

Não respondi e ela apenas sorriu. Reparei então que ela tinha duas grandes sacolas de viagem e uma mochila nova. Em suas mãos ela segurava uma espécie de bolsa quadrada, abrindo-a e fechando-a levemente.

- Undine, o que é isso? – perguntei cautelosamente.

- Para sua nova missão. – disse e atirou em mim a bolsa.

Ela se abriu e percebi que ela era dividida em três segmentos por dentro, e todos estavam cheios com pequenos sacos de panos fechados com pequenos pedaços de corda.

Num segmento vi sacos azuis, verdes, negros, castanhos e de um tom alaranjado. No outro havia sacos negros, castanhos, amarelados, laranjas e azuis. No terceiro segmento havia apenas sacos vermelhos.

Peguei um saquinho verde e o observei.

- O que é isso?

- Transfiguradores. – disse. – Esse que você está segurando é um transfigurador para os olhos. Se você o ingerir, seus olhos ficarão verdes.

Eu a encarei.

- Está ocorrendo muitas mortes na Terra. – ela sorriu. – Escolheram você para ir verificar, atravessando o Portal Dimensional. Mas você não pode ir como você é, então precisará fingir ser humano. Por ser uma missão disfarçada, ela pode demorar. – Baixou o tom de voz. – Muito.

- Espera, me disfarçar de humano?!

- Sim, nessas sacolas tem roupas para você e para a menina. Entramos em contato com um humano que foi salvo por um híbrido disfarçado há alguns anos e descobriu sobre nosso mundo, então aceitou hospedá-los, já que vocês são menores de idade. A maior idade aqui é com 16, mas lá é somente com 18, e você tem 15, não?

Assenti, sem saber o que dizer ainda.

- Você vai fingir ser o irmão mais velho dela, então, em sua sacola colocamos os sacos pretos que estão misturados com os dourados. Está vendo? – assenti. – Esses mudam a cor de seu cabelo branco, os azuis tornam seu cabelo da cor que eram quando você era humano, o mesmo acontece com os alaranjados que estão junto com os dos olhos. Os sacos vermelhos suprimem sua Aura e você não conseguirá sentir a Aura do monstro.

- Se vocês querem que eu o encontrem, então por que tenho que perder meu senso de encontrar Auras?

- Pois se ele sentir sua Aura, poderá se mover para outro lugar ou então você pode acabar matando-o em plena luz do dia. Na Terra, eles não entenderiam e achariam que você é um menor de idade matando alguém. Cada pílula de Transfigurador e Supressor dura 12 horas. Você poderá fingir ser um adolescente normal de dia e caçar a noite.

-... Tudo bem então.

- Você já está matriculado no segundo ano do ensino médio da Ludwings High School.

- Quê?! – exclamei.

- Você irá para a Filadélfia e irá estudar numa escola. – disse, se levantando.

- Espera, Undine... Eu...

- Adeus então, o Portal fica a algumas horas daqui, parta amanhã.

- Undine!

Ela desapareceu na escuridão e logo depois escutei o ruído do motor do veículo da Ordem, e então foi se distanciando. Mesmo assim, gritei para o nada:

- Mas eu só estudei até a 5ª série!

Bufei enquanto meu mau humor começando a surgir. Essa agora! Na Ordem não ensinaram nada quanto a matérias que caem normalmente numa escola, apenas técnicas de luta, sobrevivência. Mas isso esclareceu algo que eu nunca havia entendido. O porquê de darem aulas de atuação. Então deviam servir para missões disfarçadas, pois se esforçavam para que fôssemos bons em qualquer tipo de personalidade, desde caras educados e cuidadosos a caras vulgares.

Peguei as sacolas e deduzi que a cor de rosa era de Raquel, então abri a marrom. Ela estava cheia de roupas, o bastante para alguns meses. Encontrei então dois grandes sacos com pílulas e peguei um. Era um tanto pesado e era alaranjado, então parece eu teria de ficar com meus olhos com a cor que eram antes. Havia outro saco negro, que era para o cabelo então. Coloquei o saco novamente no lugar dentro da sacola e abri os bolsos e encontrei um envelope, que o peguei e mesmo no escuro consegui ler nas costas dele “Endereço da residência.”.

Peguei então a mochila que estava lá. Era cinza e azul e fiz uma careta ao abri-la. Livros de matérias escolares, e a grande maioria eu nunca havia visto na escola, devido vivermos num local diferente, por exemplo, aprendíamos as regras de nossa linguagem, Darneliyano. Fechei a mochila, a pus nas costas e voltei para a fogueira. Raquel me olhou com estranheza ao me ver com as sacolas.

- O que é tudo isso? – perguntou.

- Para a próxima missão. – respondi e pousei a sacola cor de rosa perto dela. – Isso é para você, veja se as roupas aí cabem em você.

Sentei do lado dela enquanto abria a sacola e peguei então um livro. Apesar de estar disponível na biblioteca da Ordem, nunca havia pego um livro da Terra e estranhei – muito – ao conseguir ler que estava escrito no título “Regras de linguagem para inglês”. Abri e o olhei rapidamente, vendo as linhas de exercícios que estavam por fazer. Coloquei-o novamente na mochila e peguei outro e estava escrito “Espanhol” na capa, mais umas coisas que ignorei. Abri-o e novamente estranhei. Estava claramente numa linguagem diferente, mas eu conseguia entender cada linha ali escrita como se fosse a minha língua natal.

- Raquel, você sabe ler? – perguntei.

- Sim, por quê? – perguntou, deixando de lado a blusa que estava observando.

- Pode ler isso para mim? – perguntei, abrindo numa página qualquer do livro de inglês.

- "Vem gentil noite! Vem noite amorosa de escuras sobrancelhas! Restitui-me o meu Romeu, e quando, mais adiante, ele vier a morrer, em pedacinhos o corta, como estrelas bem pequenas, e ele a face do céu fará tão bela que apaixonado o mundo vai mostrar-se da morte, sem que o sol esplendoroso continue a cultuar. Comprei a casa de um amor, sem estar na posse dela; vendida embora me ache, possuída não fui ainda. Tão tedioso e lento é este dia, tal como a noite em véspera de alguma grande festa para criança impaciente que tenha roupa nova, mas não possa vesti-la."

Ela leu algumas palavras com certa dificuldade, mas definitivamente conseguiu ler tudo, e então eu disse:

-... Não precisava ler tudo.

- Desculpa.

Peguei uma frase – bem menor – do livro de espanhol e pedi para que ela a lesse também, e novamente leu sem problemas.

- Estranho, as duas estão no que acho que em línguas diferentes e nenhuma delas se parece com a nossa, e lemos sem problema. – comentei.

Ela pareceu estranhou também enquanto eu guardava os livros, então depois de um tempo fomos dormir.

No outro dia, eu e Raquel chegamos ao 9° portal, o qual demarcava minha região. A primeira visão que se tem ao chegar ao local, se parecia com um imenso templo sem paredes cor de creme pregado a uma montanha. Ele era erguido por pilares feitos de tijolos, e cada tijolo era tão adornado com entalhes e glifos que sequer se via o tijolo direito, cada um interligando-se ao outro de maneira precisa e graciosa.

Por dentro, o teto era pintado com imagens de vários deuses, sendo que eu não lembrava o nome de nem um décimo deles. Espalhados pelo templo havia estátuas de cobre de mulheres com armaduras extremamente femininas. Bati de leve em uma delas e esta emitiu um som parecido com o de um sino, as vibrações continuaram muito depois do som se esvair. Ao fundo, da única parede do templo, estava algo como a batente de uma porta, de pedra com glifos de ouro. Bem no centro da parte superior, estava a imagem de duas mulheres idênticas com as costas coladas, ambas com uma asa superior e outra inferior, que juntas, davam a impressão de penosas asas de borboleta. A da esquerda estava com as mãos unidas como se rezasse, enquanto a outra segurava uma flauta de dois canos levemente curvada.

Da porta, consegui ouvir o som de um veículo, e pessoas conversando, mas não se via nada. Da porta se saía apenas uma luz branca que iluminava o local com um brilho sobrenatural. Pus as sacolas que Undine dera no chão e vasculhei os bolsos da mochila até achar os três pacotes que ela dera com as pílulas.

- O que é isso? – Raquel perguntou enquanto eu retirava os sacos negros e alaranjados.

- Segundo Undine, isso vai fazer com que meu cabelo e meus olhos assumam uma cor normal. – disse enquanto pegava o pacote com pílulas para os olhos. – Teremos de fingir ser irmãos, então eu devo tomar uma pílula negra para o cabelo.

- E para os olhos? – perguntou.

- Eu vou tomar uma para que eles fiquem da cor que eram antes.

Consegui ver a curiosidade brilhar em seus olhos.

- Que cor eles eram antes?

- Azuis, só que muito mais claros que os seus.

Pus as duas pílulas na boca e depois peguei a para Auras, as engoli e então pus o capuz de meu casaco, peguei as sacolas e atravessei o portal com ela andando ao meu lado. Saímos num beco escuro, e devia ser de tarde, estava quase anoitecendo. Olhei para trás e percebi que não dava para ver nenhum portal. Olhei com atenção para depois me desesperar – se fosse preciso. Depois de um tempo, percebi a mesma imagem das duas mulheres entalhadas de modo discreto em um tijolo. Depois de constatar que deveria se voltar por lá, percebi que não estava sentindo o cheiro humano de Raquel, e nem escutava coisas que estavam bastante longe antes. Pior ainda, parecia haver uma película sobre meus olhos, que deixava minha visão menos aguçada. Pisquei um tanto incomodado no começo, mas me acostumei muito rápido.

- Seu cabelo... – Raquel comentou.

- Mudou de cor? – perguntei.

- Sim, e seus olhos estão azuis. – ela deu uma risadinha. – Eles são tão claros que parecem estar arregalados.

- Não tem graça. – bufei enquanto colocava as coisas no chão para pegar o envelope de antes.

- Desculpa então. – ela disse. – Mas eles são quase brancos.

- Sim... – falei um tanto distraído enquanto abria o envelope.

Estava escrito lá: “Uma casa de três andares de tijolos vermelhos com nove janelas com parapeitos brancos, perto do Rittenhouse Square. O dono da casa se chama Theodore Harrys e ele já foi informado de sua chegada.”

Conseguia me lembrar vagamente que ela havia dito que eu iria para a Filadélfia, mas... Poderia ser qualquer casa. Pouco afastado, consegui ver algumas árvores no que pensei ser um parque. Então coloquei as sacolas no chão e disse à Raquel:

- Fique aqui um instante.

Saí um pouco do beco e perguntei para a primeira pessoa que vi, um cara alto e desengonçado:

- Com licença, pode me dizer se aquele parque – apontei para o local com árvores. – é o Rittenhouse Square?

- É sim. – respondeu com uma voz anasalada.

- Ah, obrigado.

- De nada.

Sem acreditar que acabara saindo tão perto e então voltei para o beco e peguei as sacolas.

- Bom Raquel, acabamos saindo bem próximo de onde temos que ir.

- Que bom!

Saímos do beco e então vi logo após havia uma casa que cabia exatamente com a descrita no envelope. Abri então o gradeado e toquei a campainha.

- Um minuto! – uma voz masculina gritou lá de dentro. – Um instante!

Depois de quase cinco minutos, um homem mais alto do que eu, com um cabelo cor de palha puxado para trás num rabo de cavalo, com uma franja meio longa e duas mechas do cabelo soltas. Devia ter uns vinte e sete anos ou menos até. Usava óculos retangulares e um tanto pequenos. Reparei que seus olhos eram de uma cor estranha... Roxo?

- Hã? quem são vocês? – perguntou enquanto ajeitava os óculos.

- Ah. – comecei sem saber o que falar. – Você é o senhor Harrys?

- Sim, e vocês?

- A Ordem nos mandou. – disse, esperando que o que fora escrito fosse verdade.

Sua expressão mudou rapidamente, e então abriu o caminho, nos convidando a entrar. A sala de estar era bem grande, as paredes eram recobertas com um papel de parede listrado verde escuro mesclado com verde musgo. No canto esquerdo da sala havia uma escada de madeira escura. Havia uma TV – sim, eu sei o que é uma televisão – e envolta dela sofás de veludo de uma cor um pouco mais clara que a escada, e lá atrás vi uma porta aberta para o que me pareceu ser a cozinha, que dentro de meu campo de visão, parecia ser toda feita de lajotas brancas.

- Meu nome é Theodore Harrys. – disse. – E seus nomes?

- Yudai Hentric. - respondi.

- Raquel Ebenézer. – Disse logo após.

- Bom, a Ordem disse sobre sua vinda, mas disseram que não era nada garantido. – explicou. – Eu meio que não esperava...

- Não se preocupe, a Ordem faz isso conosco também. – garanti com um suspiro. – Ainda mais quando soube que fui matriculado na escola.

Ele sorriu.

- Você não parece estar muito animado.

- Nem um pouco, descobri que as matérias que aprendem aqui são completamente diferentes das que são ensinadas em Darneliyan. E eu só estudei lá até a 5ª série...

- Deve haver algo que possa lhe ajudar.

- Bom, meu nível de entendimento é melhor que o de uma pessoa normal. – era verdade, a transformação em híbrido faz algo conosco, que conseguimos aprender mais rápido do que qualquer humano. – Se eu quiser, posso ler o livro todo só de folheá-lo.

Ele ergueu uma sobrancelha e então aumentou o sorriso.

- Isso vai lhe ajudar e muito.

- Só vou precisar esperar o efeito do que eu tomei passar.

- Sua sorte é que vocês chegaram num sábado. – disse. – Amanhã você pode se por em dia. – Ele olhou para Raquel. – E você?

- Ela é humana. – respondi. – E não disseram nada quanto a ela ser matriculada em algum lugar.

- Eu sou professor. – disse. – Tenho livros didáticos e você pode lê-los e eu posso ensinar o que puder para ela em casa depois do trabalho.

- Ah... Obrigada. – Raquel respondeu antes de mim.

- Sim. – respondi um tanto atrasado. – Obrigado.

- Bom, ao menos tenho quartos de hóspedes arrumados, então vou mostrar para vocês onde podem ficar.

Ele começou a subir as escadas e fez sinal para que nós o seguíssemos. Eu estava um tanto desconcertado de ter que ficar na casa de um completo estranho, mas teria de fazer isso. Ele mostrou primeiro o quarto em que Raquel poderia ficar. Suas paredes eram pintadas de branco e eram alternadas com um rosa escuro – o que me fez perguntar a mim mesmo se ele tinha um quarto de hóspedes para um homem e para uma mulher. - e a cama de solteiro estava com lençóis beges e um edredom roxo, tinha uma escrivaninha de madeira pintada de branco, um criado mudo da mesma cor com um abajur e um guarda-roupa, também branco. Sim, aquele quarto com certeza havia sido feito para uma garota, e me perguntei quanto dinheiro ele tinha, se o quarto de hóspedes era assim. Os móveis pareciam ser um tanto... Caros. Os lençóis também.

Pousei a sacola de Raquel ao lado da cama enquanto Harrys esperava na porta, e quando saí, me mostrou o quarto em que poderia ficar. O quarto confirmou que ele tinha um quarto de hóspedes de acordo com o sexo, pois o meu era bem mais masculino. As paredes pintadas no mesmo padrão do quarto de Raquel, só que alternavam com azul marinho. Harrys fechou a porta enquanto eu pousava a sacola no chão. A cama estava com lençóis brancos e negros, tinha também uma escrivaninha, um criado mudo com abajur e guarda roupa, mas todos eram de cores escuras.

Coloquei a minha sacola no chão também e entreabri as cortinas para dar uma olhada na rua.

Eu iria começar a fingir uma vida que nunca poderia ter.