“A Bússola de Norte Móvel é um artefato para rastrear um objeto, pessoa, animal, ser vivo ou lugar de qualquer natureza. Para fazê-la funcionar, o usuário precisa abri-la e segurá-la em uma das mãos enquanto, com a outra, a conecta a um objeto referencial. Quanto mais relacionado ao Norte adaptável for a referência, mais precisão apresentará o funcionamento da bússola. No entanto, feitiços de autoproteção, barreiras e invisibilidade podem afetar o resultado. A interação da bússola com seres e objetos de poder extraordinário é contraditória: pode ser muito eficiente ou não funcionar de maneira alguma. Não é necessário indicar outros pontos cardeais na confecção. Para maior eficiência, recomenda-se a prática anterior de exercícios mentais, em especial as compreensões de propriedade.”

As ilustrações seguintes ao parágrafo introdutório apresentam diferentes sugestões de formato, tamanho e decorações, assim como diagramas. Há modelos mais e menos generalistas: em forma de folha para plantas, um baú para objetos cotidianos, com um desenho ou fotografia de alguém no interior. Não produz nada há um tempo, então a ideia é mais animadora a cada instante. “É um instrumento de produção complexa e refinada, que pode levar até um mês para poder ser usado.” E lá se vai minha ideia genial. Fecha o livro e se deixa cair deitado no chão. Um tanto de letargia há de fazer a indignação passar.

Chegar a pé ao Paraíso em si não é impossível. A população da montanha não o incomodaria de qualquer maneira, ainda mais com aquele tempo. A cordialidade dos seres celestiais também era famosa, desde que o visitante não tivesse intenções de se mudar. Não, obrigado. Gosto da minha casa. E as tempestades de neve? A escalada íngreme? E se Tenshi não estiver lá? Começo a crer que não vou resolver isso com minhas próprias mãos. A quem recorrer, no entanto, é um trabalho mais de eliminação do que de longos esforços. A lista acaba por incluir Marisa, mais atualizada com magia do que ele, e Aya como segunda opção, se necessário correr atrás de algum boato. Patchouli, talvez, em caso de nada feito, mas prefere manter distância da mansão Scarlet. “Direção: sentido, rota, caminho escolhido para seguir”, ele anota. Irônico seria se “destino” for a próxima.

Ao arrumar-se para a primeira tentativa, arrisca levar o gorro na bolsa em vez de sair com ele. A ferida desinflamou e dói pouco ao toque. Escolhe o livro de piadas como presente de fim de ano para Marisa. Ela quase sempre o leva embora com discrição, vai facilitar o pedido e não faz mal um agrado numa época propícia. Por pouco, pega os óculos quebrados, na intenção de descobrir o que fazer com eles mais tarde. Do lado de fora, mantém a placa de “estamos fechados” como está, com uma alteração discreta. Na face oposta, anexou um papel com a mensagem “saí para te ajudar”; até se deu ao trabalho de colorir de vermelho a beirada visível. Ela vai entender se passar aqui.

O vento não está mais tão forte, mas caminhar pela neve dá trabalho. A floresta não se comporta como uma só: cada árvore parece ter vontade própria de seguir a estação ou manter as folhas na copa. Os trechos fechados o obrigam a acender a lanterna de mão. Cada sussurro, risada e chamado causam um arrepio, uma dúvida ou os dois. Podem ser reais, podem não ser; a terra das ilusões não tem seu nome à toa. Há fadas demais. De repente, a revoada se entreolha, discute e parte para outro lugar.

É difícil distinguir a conversa e até a direção a seguir entre tantas vozes agudas e asas batendo que o atordoam, mas nota as palavras “rápido, ande logo” e “vamos perdê-la de vista”. Uma dispersão do caminho sinuoso o faz tropeçar numa raiz e congela por um momento. Agarra-se a um galho com mais força do que precisava. Mal me recuperei de uma queda, chega por enquanto. Uma clareira se abre no fim da trilha, coberta de neve como o resto, e as fadas gélidas voltam para as copas das árvores, conversando e gargalhando como sempre. Há pegadas na trilha até a casa de Marisa, por uma rota um pouco diferente da que ele fez. Será que é uma má hora?

Soar o sino da porta não surte efeito. De algum canto da casa, algo se assemelha a um diálogo abafado. Nem ousa traçar um caminho entre a quantidade de tralha e se conforma em ficar perto da entrada. Aquela bandeira pendurada é minha. Ou era. A conversa não cessa e Rinnosuke suspira. Tenta abrir e fechar a porta um tanto de vezes até Marisa sair desconjuntada do quarto. Ela o cumprimenta, em dúvida sobre a visita.

—Posso voltar depois, se não for conveniente agora.

—Não, qual é. Aconteceu alguma coisa?

Como explico a questão sem estragar tudo? Num estalo, consegue a resposta. Sendo eu mesmo, claro.

—Estive pensando que seria uma boa ideia criar dívidas de gratidão. - Marisa o encara sem compreender uma palavra. - Não se pode prever o clima nesta época de fim de ano. Se eu garantisse uma forma de controlá-lo e tornar o festival viável em qualquer circunstância, todas as pessoas diretamente interessadas começariam a prestar contas a mim… Inclusive as importantes. Mais claro agora?

—Não sei onde eu entro nisso, mas prefiro conversar sentada. Pode me dar só um minuto e me esperar na cozinha?

—Se me mostrar por onde passo sem quebrar nada.

Marisa deixa água fervendo e corre de volta para o quarto. Estranho como não dá para ouvir a algazarra das fadas daqui de dentro. O aposento lembra as ilustrações de livros ocidentais. Distrai-se rolando uma beterraba da fruteira de um lado para outro da mesa. A cozinha da bruxa má? A ideia o faz dar um riso abafado. Sua anfitriã é sem noção, de fato, mas passa longe de fazer sopa de crianças no caldeirão. A raiz cai num empurrão mais forte, perto do pé da cadeira; antes que possa pegar, uma marionete surge e a recolhe do chão. Sua controladora está logo atrás, movendo as mãos da boneca para entregar a beterraba a Rinnosuke.

—Ei, cuidado aí, talvez eu faça o almoço com isso. - Marisa vem pelo corredor com um pão doce nos braços. - Vocês dois já se conhecem?

—Comprei um item interessante na loja dele uma vez. - Alice recolhe os fios do títere. - A garrafa redonda de nébula.

Ela está me ignorando? Bate uma ponta de arrependimento por tê-la vendido. Era uma peça incrível, coberta por uma rede metálica. O líquido no interior brilhava em várias cores quando agitado. Enquanto discutem, Alice se senta à mesa enquanto o chá é servido.

—Eu vi uns dias atrás, lembra?

—Claro, você tentou abrir e o conteúdo quase cobriu o meu escritório.

—Como eu ia saber que um líquido viraria gás daquele jeito? Não é minha culp-

—Gás? - Ele interrompe Marisa. - Sei que o mundo exterior tem objetos fascinantes, mas achei que a tecnologia só chegasse a deixar a nébula líquida.

—Simples, é só não ser do mundo exterior.

Algo me diz que ela sabe de onde essa garrafa veio. O chá é vermelho e ácido, de nenhum sabor reconhecido, harmonizando bem com o pão. Marisa o questiona outra vez sobre o motivo de sua vinda, soltando algumas migalhas pela boca cheia. Não posso culpá-la, está mesmo muito bom.

—Aquele dia na loja com a sacerdotisa do vento, você deve se recordar. O festival precisa ser realizado e tem que haver uma data para isso. Minha ideia é conseguir uma maneira de tornar essa data segura quanto ao clima todos os anos. Não no mesmo dia do calendário, seria desnecessário, mas nesta época adequada. E é sobre-humano que eu faça isso sozinho.

—Sobre-humano? Você precisa se olhar mais no espelho.

Bom argumento. Deixou a sensatez no armário, também. Não sabe dizer se Alice se incomodou com o comentário.

—Enfim. Sei quem pode me providenciar isso, e que você poderia me ajudar.

—De quem estamos falando?

—Tenshi Hinanawi.

As duas trocam olhares descrentes. Até eu me incomodei com os terremotos daquela vez. Marisa quebra o clima com um sorriso de orelha a orelha.

—Já faz tempo, não? Mas entendo seu problema. É mesmo difícil saber onde ela se meteu.

—O que quer dizer com isso?

—Ela acha o Paraíso um saco e fica viajando por aí. Até acenei para ela uns meses atrás, quando passou por cima de casa.

—Tenho uma sugestão. - Alice se junta à conversa. - Um feitiço de rastreamento local funcionaria nesse caso.

—E se ela tiver cruzado a barreira?

—Duvido um pouco. Yukari e ela não se bicam. - Rinnosuke se serve de mais bebida. - Vamos trabalhar por essa linha. Nosso problema mudou: precisamos de um objeto simbólico. Uma joia, um amuleto… Algo do tipo serviria.

—Não temos nada assim. - Marisa apoia o rosto com a mão e dirige a pergunta a Alice. - Ela já perdeu o chapéu alguma vez?

—Não creio. Talvez fosse bom usar suas anotações no grimório.

—Mais um objeto deve dar uma localização boa.

Por um tempo, só se ouvem goles de chá e mordidas no pão, até Marisa romper o silêncio sem controlar o tom de voz:

—Já sei! Pêssegos.

—Onde vamos encontrar um nessa época do ano?

—Na verdade, posso resolver isso. - Rinnosuke se pronuncia. - Tenho um produto com esse sabor no estoque da loja. Se unirmos as duas fontes, a precisão cresce.

—Faz sentido. Como você pretende nos pagar?

Dizer que eu não contava com essa não serve. Hesita fazer contato visual com Alice até ter uma boa proposta.

—Quatro livros para cada, à escolha, desde que não desfalquem alguma coleção ou que levem um conjunto inteiro.

Elas se entreolham e, por um instante, pensa em desistir. Meus livros… Então, aceitam a oferta. Está feito. Suspira de alívio, ou de arrependimento, não sabe dizer. Reimu surge em sua mente, com o olhar perdido, refletindo sobre inúmeras coisas difíceis de resolver. Às vezes, as causas se perdem no meio do caminho. Afasta as inquietações como um inseto insistente; Marisa e Alice se aprontam para sair, acertam os detalhes e conversam fiado sem inclui-lo. Ao que tenta comentar algo, fazem que não o ouvem, com exceção de afirmarem ir buscar materiais na vila.

Da porta para fora, o mundo parece outro. O ambiente volta a ter sons e vida própria, ao contrário da bagunça de Marisa. Por sorte, a neve cai suave e sem vento.

—Ah, então você saiu com um tempo desse? Que malcriado. Trate de voltar logo.

Há mais alguém aqui? Ouve um miado. Alice se agacha para pegar no colo um gato grande de pelo longo laranja, com olhos dourados como os dele próprio.

—Pode brincar com ele, se quiser.

Rinnosuke leva um tempo para notar que ela enfim dirigiu a palavra a ele. Busca um galho e o balança diante do felino, cujas pupilas dilatam na hora. Sua dona o deixa livre para correr atrás da presa, e ele nota as duas caudas. É um gato youkai. O que será que ele come? A coleira de sinos tilinta pela clareira. Enquanto se diverte, vê de relance Marisa de papo com um trio de fadas e jura enxergar uma sombra de sorriso no rosto de Alice, sabe-se lá o motivo. Estranho pensar que alguém tão reservada tenha escrito o que Reimu diz ter lido. As duas se reúnem para a partida, a mascote de Alice já a caminho de casa, e tem uma recordação súbita; tira da bolsa o presente.

—Este aqui é por minha conta, Marisa.

No caminho até a vila, qualquer assunto é coberto por vários tons de euforia. É, não havia escolha melhor. Só se dá conta de onde estão quando as portas da loja parecem familiares… Demais. Há quanto tempo não venho? O senhor Kirisame ganhou algumas rugas e mechas grisalhas, mas continua alto, com um rosto severo e um contrastante sorriso largo. Ele arregala mais os olhos ao ver Rinnosuke chegar que o gato de Alice momentos antes.

—Oh, eis um rosto que não aparece todo dia.

E lá vem o abraço quebra ossos. Não vê escapatória e retribui. A efusividade de Marisa é dele, com certeza. Já a estatura… Ele o larga e tem um diálogo rápido com a filha, que segue para o próprio escritório com Alice. Começa a enchê-lo de perguntas: o que tem feito, como vai de saúde, o que aconteceu com a cabeça, como estão as vendas, o clima que nunca dá uma trégua. Esquiva-se dos assuntos mais delicados, afinal, a história completa com notas de rodapé causaria problemas. Uma cliente entra e ele, escondido atrás do balcão, se distrai balançando um enfeite chinês na parede. Quanto menos for visto por habitantes da vila, melhor.

—Teria um tempo para ver o que fazemos com isto aqui? - Alcança os óculos em frangalhos na pochete depois que a freguesa segue para outra parte da loja. - Não creio que dê para aproveitar muito.

—Bom, não sou nenhum especialista, mas parece não ter conserto, de fato. Aqui, escolha uma das minhas armações. Presente de virada de ano.

—Tem certeza? Não entenda mal, não estou recusando…

—Eu insisto. Você é parte da família.

Rinnosuke dá de ombros e gasta um bom tempo provando os modelos em frente a um vaso metálico que distorce sua imagem. Elege um par semelhante, mais estreito e elegante que o anterior. Servem bem, até. A cliente volta com um produto e ele congela no lugar, como parte da mobília. Se for quem estou pensando, não adianta, já me viu faz tempo. Apesar da situação incômoda, a conversa entre os dois comerciantes flui depois que ela se vai, sobre os assuntos mais diversos. Quando eles acabam, sobra um silêncio desconfortável.

—Até quando vai tentar disfarçar?

—Disfarçar? - A pergunta o pega de surpresa. - Não sei do que se trata.

—Estou brincando. Na verdade, fiquei curioso. Você sabe, com a filha que eu tenho, desenvolvi um faro para lorota, e acho que você não me disse a verdade. Pelo menos, não toda.

—Marisa está planejando um procedimento bastante seguro, se é isso que o preocupa. Os riscos são mínimos e só ocorrem se ela colocar fogo em algo por acidente. - Ela é capaz disso, mas não vem ao caso.

—Não, não, nada a ver com isso. Sei como funcionam essas coisas. - O olhar do senhor Kirisame fica mais alheio; seu rosto se altera como se quisesse esquecer algo. Eu sei como é.— É mais como… Duvido um pouco que essa empreitada seja iniciativa sua. Não tem o seu perfil. Entende?

Como raios ele sabe? Parecia uma mentira convincente.

—De fato, não foi. Podemos conversar na cozinha? Sei que elas estão no escritório, mas é um assunto privado. Gostaria que não saísse daqui.

—Se você diz. Não sem um copo de chá fervendo.

Estou sem fome ou sede, mas com um frio desses, é pecado dizer não. Diferente das misturas criativas de Marisa, o pai dela serve chá-verde comum com os mesmos biscoitos de arroz que ela levou à Kourindou. Quase me sinto em casa, dez anos atrás. Mantém o tom de voz baixo para evitar tensões.

—Vamos ao que realmente aconteceu. Eu venho… Ajudando a sacerdotisa Hakurei. É uma tarefa dela, em prol de Gensokyo, aquele dever de gerações. Gostaria de omitir os motivos disso, já que são relativos à vida pessoal dela-

—Ah. Entendo a preocupação. - Isso, eu já não sabia. Ele o espreita por cima do copo de chá, algo que afligiria quem não o conhecesse. - Marisa saiu daqui, mas uma vez pai, sempre pai. Notei que elas tinham algo e, pelo visto, não têm mais. Reimu aparecia aqui às vezes. Elas pareciam uma pessoa só, carne e unha. Isso vai dar um tanto bom de trabalho.

Eu sei bem. Sorri a contragosto, o machucado na cabeça coça sem precedentes.

—Até ontem, parece que eu carregava minha filha num braço só. Elas crescem rápido.

Triste e curto destino, o de todo ser humano. Ou talvez seja só meu ponto de vista. Lembrar é desagradável, mas o assombra de vez em quando. O sino da porta toca de novo; o senhor Kirisame pede licença para atender. Rinnosuke espiona de longe e é surpreendido pela volta rápida do amigo. Pego em flagrante. Nem tenta disfarçar.

—Não se preocupe, eu mesmo estava fuçando nos seus afazeres. Vendi o produto errado a ela. Confundi os dois modelos de espelho que tinha.

—Por que razão você venderia dois modelos de espelho?

—Um deles era de ouro. O que acabei de entregar a ela. Você sabe a diferença, certo? - O dono da loja volta à mesa, com o relativo bom humor de antes.

—Os mais comuns são de prata. Não é necessário saber muito mais para deduzir o resto.

—Por acaso, notou quem era a cliente? Talvez consiga vê-la de longe pela janela da direita.

A muitos metros, uma silhueta de vestido escuro caminha pela neve, o cabelo difícil de distinguir do chão. Era mesmo a criada da mansão Scarlet. Será que ela sente frio?

—Ela já comprou algumas coisas na Kourindou. - Estreita os olhos e vê que começou a ventar lá fora. - Não é uma figura rara, mas duvido que as aquisições sejam para uso próprio.

—Eu também. Sabendo dos problemas dos vampiros com a prata, você liga os pontos e desvenda o mistério todo.

Faz sentido. Se os boatos forem verdadeiros, Remilia é perigosa, hedonista e imprevisível como os youkais costumam ser, mas vaidosa o bastante para querer ver a própria imagem num reflexo. Pode ser só pelo entretenimento de mandar a serviçal fazer compras no meio do inverno, o que já não faria tanto sentido para mim. Muda de assunto e comenta da bússola, sua ideia inicial. Mesmo receoso ao falar sobre magia, o senhor Kirisame diz conhecer esse tipo de objeto.

—Tenho uma para encontrar minhas ferramentas. A ironia é ter perdido algumas delas enquanto a produzia.

—Tento ser organizado e acontece o mesmo comigo o tempo todo.

—Pronto, pessoal! - Marisa aparece no portal da cozinha com uma sacola enorme de tecido. - Kourin, você vem com a gente?

—Só até a metade do caminho. Preciso resolver algumas coisas na loja.

A despedida nem tem esse gosto; a conversa é harmoniosa, mas não conta com Alice para existir. Com discrição, o senhor Kirisame dá um jeito de segurá-lo no interior da casa, as meninas distraídas uma com a outra e em ir logo embora.

—Quer cumprimentá-la? - Ele sugere, com cansaço na voz. - Ela ficaria feliz em ver você.

—Claro. Vamos lá.

A portas fechadas do quarto, grande demais para ser só dele, o antigo mestre de Rinnosuke puxa um lençol de um móvel para revelar um grande espelho redondo. Por trás de um livro fino, um olhar mal-humorado e uma carranca se revelam.

—Ei, você demorou. Perdi as contas de quantas vezes reli essa página.

A voz de mulher sai de um gramofone atrás deles. Depois de um fantasma jantar na minha casa, não sei se isso ainda me assusta. Ela desvia o rosto para o lado, saindo detrás do volume de A Metamorfose de Kafka.

—Perdão, querida. - O senhor Kirisame descola o livro da superfície de vidro, vira a página e o coloca de volta. - Nosso pupilo está de passagem por aqui.

—Já não era sem tempo. Como vão as coisas, Rinnosuke? As vendas melhoraram?

—Nunca foram ruins como você pensa. - Devolve o sorriso sarcástico. - Você não mudou nada.

—Segure a língua, moleque. Meu marido se ofende com esse tipo de coisa. - Ela parece intrigada com algo nas folhas, sem encará-los. - Esse livro é desconfortável. Não consigo parar de lê-lo.

Rinnosuke passa os olhos pelo rosto do senhor Kirisame, sem encontrar traços de mágoa; vê apenas saudade em seu semblante, ouve-a em seu diálogo, percebe em seus gestos. Eu o entendo. Ela é a única com quem eu troco farpas que não doem. Apesar de medir dois palmos a menos que o esposo, a mãe de Marisa o intimidara bem mais à primeira vista. Qual foi a primeira coisa que ela me disse diretamente? Leva tempo até recordar as palavras exatas. “Se você continuar fingindo que eu não existo, vou obrigar você a me insultar. Eu sei que você quer.” Depois disso, ela passou a dar palpites em seus estudos, criações e até nas tarefas diárias que recebia como aprendiz, mas aprendeu a lidar com e apreciar a presença dela, tão intrometida quanto a de Marisa. “Há deboche guardado nessa sua cabeça. Coloque para fora de vez em quando ou isso vai te matar qualquer dia.” Coisas deram errado no caminho e lá estava ela, presa numa dimensão vazia e em contato com tudo e todos pelo espelho da cômoda. Observa o casal a uma distância segura.

—E Marisa, não veio nem dar um oi?

—Ela está acompanhada. Ganhamos uma nora.

—Ah, a parte importante ela nunca me conta. Como é a moça?

—Educada, estudiosa… E youkai. Sem ofensas, Rinnosuke

—Vir aqui é aceitar a realidade de que todos nós ouviremos desaforos. - Dá de ombros ao ser adicionado à conversa. É divertido, no fim das contas.

—Sei que essa foi para mim. Gostei muito, aliás. Vai ser a primeira frase da minha biografia, quando eu sair daqui e voltar a escrever… E comer, e beber, e fazer alguma coisa.

Quem diria que até sofrer pode ser sarcástico. Resume para ela os últimos acontecimentos, tal qual fez com o amigo quando chegou. Uma pena eu precisar ir. Temos partidas de xadrez pendentes. Revê-la é bom enquanto dura, mas deixa um gosto amargo. Atrás da porta fechada, Marisa reclama da demora e de não aguentar mais esperar no frio. Despede-se da amiga com mais agressividade desnecessária e do senhor Kirisame com um silencioso aceno de cabeça.

A vila passa despercebida, tal qual a conversa das magas. Memórias, memórias a todo momento, de desespero, gritos de socorro, aflições de anos anteriores; notícias difíceis de contar a alguém duradouro como ele, mais ainda a uma criança de onze ou doze anos. As olheiras fundas, a barba por fazer, as noites sem dormir de seu mentor atrás de uma solução. O choro disfarçado de Marisa antes de dormir, a indignação ganhando volume nela, um apego de pai e filha que se torna pó. Melancolia não combina com ela. Respira fundo e tenta sair da areia movediça de lembranças. A lição aprendida do jeito difícil: um em um milhão ainda é uma chance, e o destino gosta de reviravoltas.

—Kourin, o que está fazendo aqui? Mudou de ideia?

Esbarra em alguém. Olha em volta como se tivesse despertado de um cochilo. Já estão os três às portas da floresta, uma brisa irritante os recepcionando. Bom que ela tenha acreditado na minha desculpa. Um ponto a menos para mim, que me esqueci dela

—Obrigado, Marisa. Estava distraído.

—Percebi, você quase me derrubou no chão.

Nem foi assim tão forte. Esfrega os olhos e encara o céu cinzento.

—Ah, é mesmo, você está sem óculos. Só dessa vez, eu perdoo, tá? - Sorri de lado. - Apareço aqui, no máximo, depois de amanhã.

—Bata na porta, por favor, e não arranque meus lençóis. Ainda estou convalescente.

A figura dela e de Alice some entre as árvores. Quem diria que ser ignorado viria a calhar. Dá meia-volta e segue para o outro destino da bifurcação.

~

—Ah, é você.

É o Templo de Schrödinger. Não sei como o humor dela está até abrir a caixa. Reimu carrega um cobertor sobre o corpo e a cabeça.

—Não vai me convidar para entrar?

—Anda, quero fechar a porta.

O que eu estraguei agora? Ela recebe sem surpresa e sem escolha a oferta de boas ou más notícias, por trás de um inseparável copo de chá.

—A boa, então. Consegui uma maneira de saber onde Tenshi está. É mais provável que fora do Paraíso do que dentro, o que facilita as coisas. - Observa por um momento, em busca de uma reação que não vem. - Tomei a iniciativa de ir atrás disso, já que me ofereci para ajudar.

—Agradeço. Qual é a parte ruim?

—Quem vai encontrá-la. Acho que não preciso dizer muito mais.

O silêncio que se segue já era aguardado.

—Você não contou para ela que isso tem a ver comigo, contou?

—O pai dela suspeitou, mas Marisa não sabe.

Rinnosuke engole em seco, torcendo silenciosamente pelo melhor.

—Eu vi vocês mais cedo. - Isso, sim, é uma surpresa. Reimu coça os olhos e adquire uma expressão pesada, indecifrável. - Difícil acreditar que algo está a meu favor.

—Você tem minha palavra. - Caso ela tenha algum valor. - O que mentir para você me traria de bom?

—Isso já não depende de mim.

Calcula bem a próxima frase. Criar e resolver problemas nunca se pareceram tanto.

—Não faz sentido fingir ser útil. Sou uma pessoa melhor que isso. Ou meia pessoa, se preferir.

Reimu ri como se pudesse respirar de novo. Busca chá para ele, ignorando a descortesia de antes, e não se senta mais ao lado oposto da mesa. Gostaria que tudo tivesse lógica. Não questiona a mudança. Muito cuidado agora que esclareci as coisas. Ela pergunta do ferimento e fica satisfeita em ver a melhora.

—Amanhã já deve fechar. Não há nada que eu queira mais do que lavar o cabelo em paz.

—Mais cuidado da próxima vez, nem sempre alguém vai te socorrer.

Ah, se minha sorte ajudasse. Dá um sorriso sarcástico, mas não se sente ofendido; quaisquer dois minutos de conversa com a mãe de Marisa renovavam as defesas de qualquer um. Agradece em silêncio por ter um copo para aquecer as mãos. É mais frio aqui dentro do que parece. Tenta abafar certa urgência de voltar para seu aquecedor, seus livros e sua cadeira. Reimu permanece calada, reflexiva, até deixar escapar:

—Como ela está?

—Marisa? - Prossegue quando ela faz que sim com a cabeça. - Animada. Desbocada. Esforçada. Nada muito diferente, fora voltar a se entender com o pai, e isso já faz alguns meses.

—Não consigo odiá-la. - E esse é o semblante de quem tentou. Reimu suspira com pesar. - Nem tirei satisfações com ela, e nem sei no que isso daria.

Eis uma coisa difícil de projetar. Mas é fato que Marisa merece um sermão. Esta não é uma situação em que se deixe a melhor amiga, ou o que quer que elas sejam. Policia-se para não encarar por tempo demais, apesar de querer buscar pistas na expressão dela. Arrisca:

—Ela frequenta bastante minha loja, se quiser alguma notícia. - Além de assistente, sou um pombo-correio. Como cheguei a esse ponto? Desiste de recapitular e segue o fluxo.

—Você tem resolvido coisas demais para mim.

—Dói admitir, mas não ando ocupado há um tempo.

Muda de assunto; entra em mais detalhes sobre o rastreamento encomendado, cujo passo a passo Marisa não informou, e as outras possibilidades. Surpreende-o de início que Reimu o ouça com tanta atenção. Claro, é uma tarefa dela. Quem estou tentando enganar?

—Bom, Aya tem mesmo muitos contatos, apesar da qualidade duvidosa do jornal dela. Pode ter ouvido algo a respeito. - Ela reflete com o queixo apoiado na mão. - Se precisarmos falar com ela ou Patchouli, seria mais fácil para mim.

—Sou obrigado a concordar. A mansão Scarlet talvez me transformasse numa refeição requintada, e não estou muito a fim disso.

—Ah, não, não. Remilia não se alimenta de qualquer um. Ela tem gostos bem refinados.

—Ei, o que quer dizer com isso? - Estreita os olhos. Estou sendo ridicularizado?

—É coisa dela, não me pergunte.

—Tem certeza?

—Claro.

Reimu tenta disfarçar o riso por trás do copo. Muito engraçado… Não devolvo a desfeita porque você está abaixo do peso.

—Não tem nada tão errado comigo, tem?

—Não sei. Tem?

—Eu me alimento bem. Não é possível que meu sangue tenha um gosto tão ruim. - Você costumava falar de assuntos mais lógicos, Rinnosuke.— Aliás, por que isso está em debate?

Ela dá de ombros e não responde; ele não contém um sorriso. Quem diria que eu deixaria alguém rir à minha custa.

Sem que perceba, o dia começa a escurecer cedo como os outros da época. Já não fazia sol, agora, então… Reimu acende uma lamparina de óleo, posta no chão ao lado dela. O aquecedor sob a mesa tem poucas brasas e muitas cinzas. Isso explica parte do frio.

—Como você suporta dormir nessa época? - Esconde as mãos nas mangas opostas. - Estou aqui congelando há algumas horas e acabou de anoitecer.

—Cobertores e carvão. - Outra vez a cara de assunto complicado. Reimu termina a terceira maçã do dia. - Marisa dormia aqui, ou eu ia para a casa dela.

Não encontra o que dizer e prefere ficar calado; ela prossegue, como se pensasse alto:

—O que ela viu na Alice?

Como eu saberia? Não perguntei.

—Ela é estoica. Solitária. Meio assustadora, se você levar em conta as bonecas e que ela ignorou minha existência boa parte do tempo. - Reformula quarenta vezes o raciocínio. É desgastante, mas melhor que arruinar a conversa.— Pode ser o mistério. O que existe por trás dessa fachada?

—Sabe que faz sentido? Marisa sempre foi assim.

—Tenho uma opinião formada e antiga sobre ela, mas não conheço a sua.

Reimu procura as palavras.

—Ela se encanta fácil pelas coisas. Se forem complexas, chamativas, mais ainda.

—Você acha que não é complexa, ou chamativa, ou algo… Intrigante?

Nota não ter soado tão imparcial, com ela demonstrando surpresa. Fui ofensivo? Pareceu um elogio? Não faço ideia. Desiste de se corrigir.

—Na verdade, acho que perdi a graça. Quem quer saber de um enigma resolvido?

—Não acho positivo que pense assim. - Hesita entre ficar calado e continuar por um bom tempo. - Posso ser sincero?

—É o que você faz de melhor, acho.

Aí vem a parte difícil de não machucá-la mais ainda.

—Marisa é imatura. Eu a conheço desde que ela nasceu. Talvez a carta que você leu seja verdadeira; talvez Alice a ame. Mas Marisa… - Agora é tarde para voltar atrás. — Ela não deve nem saber o que sente direito. Se eu puder especular, ela está deslumbrada, apenas, e isso é passageiro. Não que eu entenda muito do assunto, veja bem.

—Você fala como se entendesse.

Pensando bem, é a primeira vez que abordo esse tema por vontade própria.

—Algumas coisas se aproveitam ao observar as pessoas e tirar conclusões disso. Não é de todo inútil.

—Não achei que você se interessasse por pessoas.

—Depende do que estamos falando. - Aonde ela quer chegar?— Pessoas são um livro de mistério sem final: elas nunca me contam quem são de verdade. De certa forma, se parece com minha habilidade para os objetos… Com a diferença de que pessoas não têm uma “utilidade”, uma natureza fixa. Também não significa inutilidade. Compreende?

—Não sou tão burra. - Reimu protesta num tom desinteressado.

—Eu nunca disse isso. Só não tinha certeza se a explicação era clara.

Tira com rapidez a mão da manga para coçar a cabeça; uma casca se desprende. Ainda bem que cicatrizo rápido. Eu me machuco mais do que gostaria. Alonga o pescoço e espia a janela.

—Neve, de novo. É melhor irmos antes que piore.

Ambos ficam de pé com relutância. Colocar os sapatos sem pancadas doloridas no tempo frio exige malabarismos. Um agasalho e o cachecol vão ter que servir. Reimu se despede do outro lado da porta, só metade do rosto fora da coberta. Rinnosuke não se move e ela o questiona:

—O que foi, você não estava de saída?

—Não acha que vou deixar você passando frio aqui, acha?

Ela o olha com cara de dúvida, sem responder.

—Eu disse “irmos”. Você vem comigo.

As duas frases bastaram para fazê-la lacrimejar e limpar os olhos, como se disfarçasse. Não sei onde errei agora.

—Vou buscar um casaco.

Fora do templo, ele acende a lanterna de mão. Observando atentamente, o resquício de dia e seu aparato mostram a floresta adormecida sob a neve. Em dois ou três meses, nem vai parecer o mesmo lugar. Reimu volta com o bastante em termos de roupas, com as cores de costume exceto pelo casaco marrom. Ela recomenda:

—Vamos pela trilha. Vai ser difícil pegar o atalho a pé.

—Se eu voasse, ou flutuasse, ou qualquer coisa do gênero, minha vida seria muito mais fácil. - Ele começa a caminhar. - A rota mais longa, então. Não se afaste muito, minha lanterna não ilumina um raio tão amplo.

—De que adianta voar se sua vida consiste em ficar parado numa loja?

Contra fatos, o que eu posso fazer? Lembra-se de estar com fome após tantas horas. Que falta de vontade de cozinhar. Se eu tivesse saído com dinheiro, resolveria isso na vila. Sente uma mão puxando seu antebraço.

—Não ande tão rápido. - Reimu ofega, a respiração se condensando. - Por que a pressa?

—Mas não estou com pressa.

Ela o ignora e continua segurando-o pelo braço, mais de perto. Que seja. Está frio, mesmo.