Aquele nome partia meu coração de um jeito diferente toda vez. Me arrastava pra baixo, e me lembrava do perdedor, fraco e secundário que eu era. De como tudo aconteceu e nós não pudemos impedir. Merda, sequer vimos o que estavam se tornando até ser tarde demais.

Ergui os olhos, Mauro e Denise me encaravam com piedade, mas Cássio estava tremendo.

— A Maria Cebolinha faz parte dos Filhos da Tormenta? Ela matou o pai? Puta que pariu, eu devia ter procurado mais por ela! Prometi que cuidaria dela e esqueci, caralho!

Comecei a puxar Denise pra trás de mim e recuar. Por algum milagre, ela não reclamou. Mauro levantou, os olhos amarelos fixos no teto.

— Xavier, Denise, saiam da casa agora. — Então nós sentimos. Um vibrar grave pelos pés, poeira caindo em nossas cabeças. A casa inteira estava reagindo à angústia de Cássio. Senti Denise me puxar pelo braço e corremos em direção da porta. Saímos, e toda a casa tremia.

Puta que pariu. Denise estava certa. Precisávamos deles pra ter chance contra os quatro filhos da puta. A merda é que eu também estava. Cássio era um monstro. O passado dele o assombrava tanto quanto o nosso, mas agora ele tinha um poder absurdo. Quanto tempo até que tivéssemos que combatê-lo também? Que chances teríamos contra um cara que quase nos matou só olhando na nossa direção?

Como, por todos os diabos do inferno, pensamos que convenceríamos o Cássio a combater a irmã mais nova do melhor amigo de infância? Nos afastei mais uns metros, enquanto Denise conjurava encantamentos de proteção ao nosso redor.

Mais uns minutos, e o tremor cessou. Ouvimos uma voz fraca lá dentro:

— Eu vou ficar bem. Não vou machucar ninguém hoje. Obrigado, Mauro.

— Podem voltar. É seguro agora.

Nos aproximamos da porta. Toda a poeira e as rachaduras sumiram. Cássio, por outro lado, parecia arruinado.

— A irmãzinha do Cebola, Mau. Aquela garotinha... Porra, eu a vi no dia em que nasceu. Isso não vai acabar nunca? — Interrompeu-se ao nos perceber parados na soleira.

Denise sempre diz que eu sou paranoico. Sério, só eu acho difícil ficar perto dum cara superpoderoso que quase derrubou uma casa porque ouviu uma notícia ruim?

Mauro virou-se como se estivesse ouvindo meus pensamentos, e não gostasse deles. Céus, o cara parecia um lobo, avaliando se me devorar valia o esforço. Denise suspirou e me empurrou pra dentro. Me alertou com o olhar pra eu parar de fazer besteira.

A verdade é que eu estava envergonhado. Treinei e me esforcei por anos pra ser forte e poder defender quem amo, e perto daqueles dois era uma criança novamente. Eu não podia proteger Denise ali, e a garota insistia em permanecer.

— Não vou ferir ninguém, prometo. Podem entrar.

Cássio parecia tão constrangido quanto eu.

— Sabemos disso, Dr. Limoeiro. Só queríamos dar espaço pra vocês. — Ela caminhou com confiança até diante do homem curvado no chão da sala. — Você não é um monstro, Cascão. Estaremos no seu quarto, você e Nimbus podem conversar à vontade. Vamos, Xaveco.

Mauro acenou a cabeça de leve pra ela quando passamos. Nos fechamos no quarto quase vazio em que acordamos e Dê finalmente pareceu abalada.

“Ele é instável demais.” articulei sem som.

“Precisamos deles.” ela respondeu.

Ficamos nessa discussão silenciosa até cansarmos e ela me abraçar. A guiei pra cama. Ela sempre relaxava quando estávamos sozinhos, ficar perto dela me acalmava também. Acordei com a porta abrindo com força. Nunca tinha visto Mauro com tanta raiva.

— Mas o que-

— Quem ela mandaria pra seguir vocês? — rosnou, segurando Denise pelos ombros. — Depressa, Denise. Mandaria um mago? Uma tropa? FALA!

— Bru-Bruno. Mas eu teria visto, Mauro! O que aconteceu? Só se foi... Merda, ele não... Não é possível...

— Fala, cacete!

Segurei o braço dele. Por baixo do poder, Mauro estava com medo. Alguma coisa deu muito errado.

— Eduardo. Primo da Magali. Bruxo das trevas, piromaníaco e psicopata. — Ele largou a Denise e correu. Pus a jaqueta e peguei o coldre. Ela parecia em choque.

— Nero não pode estar aqui, Xaveco! Eu fiz a Samara de Taubaté mandá-lo numa missão no sul do Brasil. Ele não conseguiria voltar tão depressa!

— Vou atrás deles. Se Eduardo estiver aqui, é hoje que mando o cara pro inferno de onde fugiu.

— A louca que você vai sozinho atrás do canalha!

Não havia mais Cássio ou Mauro em lugar nenhum quando saímos do quarto. Corri até a saída, Denise pouco atrás de mim.

— Pra onde eles foram?

Ela quase bateu em minhas costas quando parei. Não conseguia parar de xingar.

— Vamos logo, Xavier! Nós vamos chegar... — Ela me afastou e viu o mesmo que eu. As colunas de fumaça na direção que viemos.

— Já é tarde demais. Mas ainda precisamos ir, linda.

Corremos mata adentro.

***

Os gritos e o cheiro continuavam horríveis como da primeira vez. Corri com a faca pra cima dos postes horrendos no meio do caminho, enquanto Denise ajudava Cássio com as chamas. Mauro não estava visível em lugar nenhum. Horas depois, eu tinha fuligem até no cabelo, e Denise estava com umas ninfas, ajudando os poucos moradores sobreviventes. Cássio checava a área de algum jeito, e Mauro surgiu ao seu lado como um ninja.

Havia tanto poder escoando dele que os dois caminhavam em linha reta, tudo no caminho desmanchava no ar. Parou numa casa desabada e metade dela virou um pó fino, que foi escavado até puxarem um rapaz. O menino parecia um boneco quebrado. Eu conhecia a sensação. Fui até eles, o apoiei nos ombros e o guiei até as ninfas, contando as mentiras que me ajudaram quando meu mundo caiu.

Duas crianças e um cachorrinho depois, todos os vivos recebiam ajuda. Denise me encontrou, desolada. Circundamos o vilarejo duas ou três vezes, mas Nero e seus asseclas já tinham partido há muito, então procuramos Cássio e Mauro. Os encontramos na praça central, pouco mais que um pátio, em que barracas de feira, frutas e as pedras do calçamento pareciam ter participado da Terceira Guerra Mundial.

Caminhei para os rapazes no centro, e percebi que minhas roupas estavam se desfazendo quando Denise me puxou de volta. Cássio nos notou, e a pressão diminuiu a ponto de podermos nos aproximar. Permanecia virado para o amontoado de corpos e móveis no centro do terreno, meio desfeito em carvão. Olhei pra Denise, ela também não entendeu.

— É isso que eles têm feito? — Mauro nos encarava com gravidade, muito além da fúria.

— Nunca vi esse tipo de linha antes. Foi uma barricada?

— Não. Cebola, mostra a eles. — Só então percebi que Cássio estava vestido de novo com a máscara e chapéu do seu personagem, e não falou nada. Me segurou e a Denise pela cintura e flutuou conosco com facilidade. Estávamos a uns quinze metros de altura quando entendemos.

Não era uma reta e sim um símbolo. O símbolo do Cebola que Cássio usava na própria máscara, não o dos Filhos da Tormenta. Descemos em silêncio.

— Eduardo de Lima, Bianconero ou Nero. — expliquei. — Sim, foi ele. Um dos quatro Filhos da Tormenta, de longe o mais bestial. Também não o vi montar seu símbolo antes.

Com um grunhido de Cássio, o símbolo se desfez e todas as cinzas se juntaram num monte diante dele. Ele saiu na direção do hospital improvisado. Mauro o acompanhou.

Tantas mortes. Toda aquela destruição só porque passamos por ali. Se nossa viagem até a floresta durasse um dia a mais, Bianconero teria nos alcançado e seríamos nós presos àqueles postes flamejantes.

Algum tempo e muito trabalho depois, Denise me olhava arrasada.

— Quarenta pessoas assassinadas, Dê. Toda uma comunidade destroçada depois que trocamos dez palavras com um local. Cebola fez um bom trabalho aqui, mesmo eles entendem que não foi a mando dele. — Ela olhou pra mim, um tanto sem ar pelo peso de tantas vidas perdidas (ou talvez fosse a fumaça em seus pulmões). Ela era forte. Deuses, ela era tão forte, e isso me dava força também.

— Foi por nossa causa, Xaveco, mas não é nossa culpa. Foi o demônio do Eduardo, com as asas que Maria deu a ele. Me recuso a carregar os crimes daquele nanico piromaníaco na minha consciência. Vamos acabar com essa... RuPaul do céu, como pude me esquecer disso? Ele ainda deve morar lá! Estamos muito perto, e se ele decidir nos ajudar, temos mais que uma boa chance, amor!

Epa, ela estava me chamando de amor em público?

— De quem você tá falando, Dê?

— Maria é uma versão tosca do irmão mais velho. Manipuladora, inteligente, egocêntrica como só um Cebola consegue ser. Cresceu ouvindo todas as histórias do irmãozinho bugado dela. Quem era a única pessoa no mundo que metia medo no Cebola?

— A Mônica?

— Claro que não, estrupício! Se Cebola tivesse medo da Mônica, não teria passado toda a vida desafiando a garota! Pensa, Xaveco, pensaAaah!

Pulamos no lugar. Há quanto tempo Mauro estava ali? Inferno, o homem parecia uma assombração, precisava ter um sino no pescoço!

— Um sino não adiantaria se eu não quisesse, Xavier.

Opa.

Mauro virou-se pra ela, um pouco menos soturno. — É mesmo uma boa ideia, Denise. Vão atrás dele, temos alguns preparativos a fazer. Discutimos o resto depois. Nos esperem um pouco aqui.

— Vocês não vêm junto até o... — Mauro a interrompeu com suavidade.

— Cebola não está bem. Encontrar aquele homem agora poderia fazê-lo demolir tudo num raio de quilômetros. Inclusive vocês.

— Se você viesse, nossa-

— Não vou a lugar nenhum sem o Cebola. E muito menos passar diante do túmulo do tio antes de enfrentar a garota. Hoje à noite vocês vão nos contar tudo que souberem sobre aquele grupo. Preciso explicar a vocês sobre a rota a seguir, aquele lado da floresta não é seguro pra humanos. E Denise...

— O que é?

— A primeira coisa que sua mestra deveria ter te ensinado é que nomes têm poder. Pare de dizer nomes de quem você não quer chamar a atenção. E, pelas Damas da Luz e das Trevas, PAREM de discutir seus planos em lugar aberto. Já tenho muito o que fazer, não posso ficar bloqueando feitiços de rastreamento a cada cinco minutos.