Oitava Fileira

As coisas deram certo. Que droga.


Nero? O action figure de capeta teve um capítulo pra ele, enquanto eu fiquei no banco? Essa história virou a casa de mãe Joana mesmo! Ninguém respeita mais a protagonista!

Pronto, acalmei. Como eu ia dizendo, depois do meu dia de autoanálise (que é uma droga, não recomendo) e um sonho muito legal com o Silencioso derrubando uma torre na minha cabeça, acordei cedo e encontrei a mensagem, presa numa portinhola de serviço.

Parte boa: eu já podia entrar. Parte ruim: Maria tinha uma bomba. Cento e trinta quilos de explosivo plástico... Uau. Agora sei por que não tive aumento todos esses anos. Parte assustadora: a Dupla dinâmica do Fim dos tempos já tinha transformado Las Vegas em farinha.

E claro, a parte espantosa: nossos outros eus estavam vivos. Conhecendo a outra Denise, dariam um jeito de fazer parte da festa.

Tenho que admitir: Lady Shih é boa. Boa no que faz, acho que a Maria Satã tem alergia a bondade. Só não sei como vamos ficar os quatro juntos, minha cabeça já está latejando de dor, fora isso toda ajuda é bem-vinda.

Entrei sem problemas, o feitiço de glamour nem oscilou. O Cyber é bom mesmo, nem imagino com o que pagaram aquele canalha cibernético. No meio do burburinho, comecei a encontrar pessoas conhecidas da Denise, e comentar um babado chocante aqui e ali. Pouco antes das dez da manhã, segui pro escritório da administração central, satisfeita. Antes do final da tarde, as notícias que eu queria estariam nos ouvidos das gêmeas.

Apesar da Maluca Suprema se vestir como uma alta executiva (e sim, ela preferia Prada), o resto das pessoas na cidade usava roupas comuns; quase impossível se vestir de um jeito formal depois do armagedom, amores. Então eu, com meu suéter de tricô novo e jeans velho, estava bem-vestida o bastante pra encontrar o superintendente, mesmo ele sendo uma das pessoas mais importantes do lugar.

O José Luís era tão organizado e pontual quanto um cavalheiro britânico: um dos poucos casos na vida em que a aparência casava com o sujeito. Alto e magro, com uns óculos quadrados horríveis e o cabelo penteado pra trás. O rosto tão bem barbeado que passaria numa inspeção militar. Quem ainda usava gravata e camisa de botão depois do fim do mundo, Pai do céu?

Criei uma simpatia genuína pelo sujeito, até porque com as piradas que ele tinha como chefes, era surpreendente ele conseguir fazer coisas boas. Mais de uma vez eu o ajudei a sumir com alguém condenado à morte por entrar com os sapatos sujos de terra no salão de Lady Shih. Ele também me fez uns favores aqui e ali, fomos próximos por um tempo, então era meio que um amigo… ou o mais perto disso da minha antiga vida.

O habitat dele era a Administração, e às dez e cinco da manhã ele parava pra tomar café e descansar por dez minutos, num canto longe da importância e das interrupções.

Como um homem desses se dava bem com o Nico Demo, o próprio Caos encarnado, vai além da minha imaginação. Depois disso tudo, talvez eu consiga explicar o acidente pro Luís.

O encontrei no lugar de sempre. Vamos lá Denise, é hora do show.

— Boa tarde, Johnny.

Ele levantou os olhos e me reconheceu na hora. Talvez porque só eu o chame assim.— Boa tarde, De-

O interrompi com o dedo nos lábios. — Hoje meu nome é Penha, querido. Vim te fazer uma visitinha, em nome dos velhos tempos.

Luís terminou seu café em silêncio, uma sombra de sorriso no rosto.

— Sequer uma terceira intenção hoje? Isso é novidade.

— Sou um anjo de inocência. A auréola está no polimento. É que ouvi umas coisas interessantes por aí e decidi dividir com você. E se depois você quiser me fazer um pequeno favor… Eu não recusaria.

Ele ficou reto na cadeira. Estava fisgado. — Estou ouvindo. Que rumores?

— Sabe as visitas reais? Eles são uma bomba ambulante. Soube que eles se desentenderam com um pessoal em Vegas e não sobrou nem poeira pra contar a história. Eu mesma vi quando os dois transformaram cem dos soldados do Nero em adubo sem nem suar.

O pobre Luís ficava mais sério a cada palavra.

— E ela — apontei pra cima, sussurrando. — tem uma bomba literal. Suficiente pra mandar a cidade inteira pelos ares. Com radiação, coisa bem ruim. Misture os dois e…

O observei ligar os pontos. Nenhum de nós dois duvidava do ódio de Maria pelo Cebola. Se ela era capaz de se explodir só pra não vê-lo por cima? Com toda a certeza.

— Eu também ouvi — ele falou com cuidado. — que você e Xavier fizeram um show e tanto de despedida. Não está aqui pra ajudá-la.

— Não. Tem qualquer coisa nas fogueiras do Nero que muda suas lealdades — admiti — Estou aqui pela cidade. Mesmo que não acredite em mim, pode checar. Não Las Vegas, claro, mas a surra que o moleque levou… ah, isso vai se espalhar como fogo, com o perdão do trocadilho infame.

Dei um segundo pra ele absorver a informação. — Você odeia, mas sabe que tenho razão. Eu também detesto estar certa dessa vez. Porque é bem perturbador pensar no tipo de pessoa que nós deixamos no poder aqui. Nas barbaridades que tornamos possíveis. Principalmente eu.

Ele sabia. Era um cara inteligente, e eu contava com isso. O único jeito de morrer pouca gente nesse fuzuê galáctico era com a influência do Luís tirando as pessoas da linha de fogo.

— O que você planeja?

— Você sabe. Deixá-la sem chance de fritar todos nós. Tirar os civis do meio, mandar menos soldados se ela pedir reforços. Aqueles dois não são maus, mas vão matar pra se defender se necessário. E eu sei que ela está planejando algo. Apostaria minha vida nisso.

De certa forma, já apostei. Fiquei olhando pra ele até que Luís tomou uma decisão e levantou-se.

— Vem, Penha. Quero te mostrar uma coisa.

Ele me levou até o escritório dele, onde já havia um monte de gente procurando por ele e uma pilha de papéis pra ler. Ele resolveu tudo num piscar de olhos e fechou a porta. Mostrou um quadro com a reprodução de uma fotografia velha.

— O que você vê?

— Gente feia em ternos bregas com fones de ouvido?

— É o Tribunal de Nuremberg. Esses aí são nazistas.

Credo, era essa a ideia que o homem tem de decoração? Um monte de gente má morta em ternos horrorosos?

— Sou impressionado com essa foto desde criança. Sabe o que a maior parte deles disse quando foi acusada, nesse lugar aí?

— Nem faço ideia.

— “Eu só estava cumprindo ordens”. Mais de seis milhões de pessoas mortas, eu pensava, e tudo que eles podiam dizer era isso? Será que não viram o que estava acontecendo? Deixo esse quadro aí pra me lembrar. Parece que não adiantou muito.

Putz, que pesado. Ao mesmo tempo, sabia o que ele queria dizer.

— Vou decretar um feriado. Organizar uma festa, em honra aos nossos convidados, fora dos portões. As generais irão concordar, elas gostam quando a cidade fica vazia.

— Menos sujeira — concordei. A louca, esse homem é um gênio! — Relaxa, John. Às vezes o melhor possível é tudo que dá pra ter.

— Eu sei.

Meu instinto apitou quando ouvi passos depois de tocar na maçaneta. Deveria ser normal, a Administração era cheia de gente… mas estava errado. A direção do som, era como se saíssem detrás da porta do escritório onde estávamos. Não demorei pra localizar o dono dos pés: o meu gorila menos favorito no mundo. O segui discretamente, mas ele percebeu e sumiu. Tudo bem, plano B. Alguma hora ele vai ter que sair do-

Uma mão imensa cobriu minha boca e me puxou pra trás, pra uma sala de arquivo que — surpresa — estava vazia.

Tive muito medo por um segundo. Não podia dar tudo errado agora, quase no fim. O canalha iria escapar, avisar a doida-mor e tudo desceria pelo ralo. A voz do sujeito mais escroto da cidade chiou no meu ouvido:

— O Superintendente conspirando contra Lady Shih em pessoa. Ah, o General vai ficar tão feliz comigo, que dessa vez vai me deixar começar o fogo. Ouviu, putinha? Você, aquele burocrata traidor e todos que ajudaram os dois vão queimar na praça antes do dia acabar.

Quis gritar de alívio. Tinha achado quem eu procurava. Ah, Bruno, que fofo da sua parte me trazer pra um lugar deserto e me dar mais motivos pra acabar com sua raça. Se ele visse embaixo do feitiço, se me reconhecesse, talvez não fosse tão arrogante e relaxado. Melhor pra mim.

Joguei a cabeça pra trás, ouvindo satisfeita o crec seco do nariz, enquanto enfiava meu calcanhar nos genitais dele com toda a força que tinha. Ele caiu, ainda sem acreditar, enquanto eu me ajoelhei ao lado dele e sem dar tempo pra uma reação, enchi a cara do nojento de porrada.

Até pensei em dizer alguma frase de efeito, mas ficaria clichê demais, então me levantei e pisei com tudo na garganta dele. Respirei fundo, aliviada do exercício. Aquele canalha já não valia nada desde que andava com o Toni, e o tempo só refinou o chorume. O arrastei pra trás de um armário, arrumei minha roupa, retoquei o batom.

Bati de novo na porta do Luís.

— John, lindíssimo, sei que você está ocupado, só mais uma pergunta: Onde vocês guardam os sacos de lixo?

***

Eu nem tinha saído do prédio, quando o burburinho começou. Não importa o lugar, as palavras feriado e festa sempre animam as pessoas. Amava o John por ser tão rápido, mas estava angustiada. Ainda não era o suficiente, alguma coisa me dizia que o tempo estava se esgotando muito, muito depressa. Queria gritar com as pessoas felizes largando do trabalho, enxotá-las dali. Caramba, andem logo!

Minha próxima tarefa: avisar minha outra eu diva e maravilhosa da situação. Ela vinha de um outro tempo, não sabia de todo o babado do Cas e do Mauro, e não era como se eu pudesse ligar pra ela e explicar tudo. Felizmente, essa parte era mais simples. Era só seguir a dor de cabeça.

Conforme eu me aproximava dela, sentia o quanto estava pior. Todo o meu corpo estava reagindo, como se eu fosse me desfazer em gelatina. Minha cabeça girava, e eu soube que tinha chegado no lugar certo quando despenquei igual a uma jaca madura.

— Moça? Você tá bem?

Péssima. Horrível. Com um cabelo sem graça e um galo novo na cabeça — Estou. Não, não preciso de ajuda, posso levantar sozinha.

Olhei pra cima, estava na frente de um bar. Duo’s. Ha, ha, ha, universo. Você é hilário. Entrei, me apoiando na porta, encontrei os dois que procurava. A louca, adorava a atitude da garota! Metade da guarda procurando pelos dois, e eles de boas, tomando umas e vendo a paisagem bem na cidade capital da louca.

Denise estava usando o mesmo truque velho da maquiagem, mais um toque mágico aqui e ali, a tornando a mulher madura que ela poderia ter sido. Também tinha mudado os próprios cabelos e os do Xavecão. Só os olhos a entregavam, amargos e afiados como sempre.

Não podia culpá-la. Ela sacrificou tudo por décadas, pra evitar o fim do mundo e o retorno da serpente, desistiu de viver uma vida legal com o Xavecão, aí o mundo acaba de outro jeito. E depois aparece mais uma Cebola louca com planos de dominação mundial, com o capeta em forma de guri e duas maníacas por limpeza ajudando.

Depois que a Maria deu a louca e começou a falar de dominar o mundo, a outra Denise nem falava mais comigo. Dizia que já tinha visto aquilo, que sabia no que iria acabar. Aconteceu tudo do jeito que ela previu, e eu estava com a cara no chão quando me encontrei com ela e pedi desculpas. Me tornei uma agente dupla, e teria conseguido por mais vinte anos se o Xavier não tivesse sido jogado na roda.

Me sentei na mesa deles, o Xavecão tomando chá com o habitual olhar perdido. Ela sussurrou algum encantamento que não conheço, fazendo o enjoo passar e diminuindo a (nossa) dor de cabeça.

Pai amado, ainda me dava arrepios ver o bofe daquele jeito. Tá, eu sei que ela não teve escolha, ele literalmente implorou que ela o reduzisse àquele... aquilo, mas não consigo. Não consigo entender como é se sentir tão mal a ponto de preferir ser um troço sem mente ou vontade própria a ser... sabe, você mesmo.

Graças a Deus o meu Xavier é um poço bobo de otimismo e nunca vou ter que descobrir se eu poderia fazer o mesmo que ela.

— Ben, a…

— Penha. — Ela levantou uma sobrancelha. Ah, me deixa viver. Ela não está nessa história, já não cabe mais vilão. — Garçom, o mesmo que ela.

— A Penha está aqui. Você se lembra dela, não é? — O moço bugado virou pra mim, abriu um sorriso automático e me estendeu a mão. Apertei sem entusiasmo.

— Olá, Penha. É um prazer rever você.

— Oi, Ben. — Minha caipirinha chegou. Adoraria ficar fazendo a social e matando a saudade, mas vamos aos negócios. — Soube que nossa amiga em comum tem um baita show de fogos preparado pros hóspedes dela.

— Mesmo? — Denise tinha uma cara de pôquer impecável, mas eu conhecia a garota (afinal, era eu). Continuei, no mesmo tom casual:

— Seríssimo. Dá pra iluminar a cidade inteira. O negócio vai ser tão inesquecível que farão uma festa fora dos muros só pra todo mundo poder ver as luzes.

— Parece uma ótima ideia. Pena que General Bianconero não vai estar aqui, não é?

— Pois é. Ele enfrentou o Cebola e sofreu um bocado de baixas. Os homens dele estão só o pó da rabiola, devem estar aqui em quatro dias, no mínimo.

Ela se levantou da mesa, o olhar intenso como nunca. — Precisamos ir, Ben. O General precisa de uma recepção adequada.

Quando entendi no que ela pensava, minha mente travou. — Não… O Limoeiro fica a uns trezentos quilômetros de distância. É impossível… nem ele seria capaz de chegar-

— Você está aqui, não é? — Bom argumento. — A rainha dele está sozinha com os dois homens que ele saiu pra enfrentar. Nero vai chegar hoje, nem que precise vir correndo sozinho.

Meu Deus, ela tem razão. É impossível, mas o sociopata mirim vai dar um jeito. E eu ajudei a colocar todos os civis inocentes entre Nero e o objetivo dele.

— Não tinha outras opções, Penha. O show de fogos precisa ser visto de fora. Eu e o Ben aqui vamos manter o dragão longe das pessoas. Você vai mantê-las longe dos fogos.

Eu… Eu poderia trancar os portões. As pessoas não voltariam pra cidade em pânico. Iria argumentar dos idosos e pessoas que não puderam sair de casa, mas não pude. Minha tarefa era evitar que todo mundo morresse. Fazer com que ninguém morresse… não dava. — Mas vocês dois contra o dragão? Só vocês dois?

“Vocês todos irão morrer. E se não encontrarem um meio, se não criarem um caminho, o mundo inteiro cairá com vocês.”

— Sou poderosa, conectada e imbatível, e queria mesmo encontrar o dragão. Ele precisa aprender umas coisinhas sobre fogo.

— Mas você… Se você não...

— Menos drama, gata, não combina com você. Vamos, Ben.

Às vezes o melhor possível é uma droga.