Ela passou a se acostumar com o gosto doce-amargo em sua boca quando olhava para ele.

Yuu Otosaka era um narcisista disfarçado, alguém que aprendera a usar suas habilidades para esconder todas as rachaduras de sua autoestima frágil. E Nao era uma observadora nata, tinha de ser desde que fora traída pelos que confiava, então aquilo não fora difícil de notar.

A garota estivera lá para assistir a máscara ruindo, ver o que estava escondido por baixo tomar forma. Como ele era inseguro de si, não mais inteligente que o usual, com um paladar variado e fácil de se envergonhar.

E ela tinha se apaixonado por ele.

Idiota, certo? O fato de você perceber justo o quão importante alguém é quando essa pessoa vai embora. Não é como se aquele sentimento quente e sufocante em seu peito não existisse antes, por mais que ela quisesse negar. Mas quando ele estava lá, quando ela podia fingir que ele não a afetava mais do que qualquer outro, isso era normal.

Quando ele já havia ido por dias, meses, anos, era diferente. Não era normal que ele fosse o primeiro pensamento que ela tinha quando acordava, o último que ela tinha quando fechava os olhos. Yuu estava em algum canto do mundo, cumprindo uma promessa que ela fizera por fazer, e ela começou a perceber justo o quanto queria que ele conseguisse.

Tomori não era idiota - o que ele tinha ido fazer era quase impossível. E, caso ele a amasse tanto quanto dissera que amava - com a voz calma, como se fosse óbvio, como se falasse que as folhas caem no outono – então uma promessa daquelas poderia o deixar um pouco mais resoluto.

Fora por causa disso que a fizera. E por causa disso que passara a noite inteira escrevendo traduções e mais traduções de falas, porque aquele idiota nunca fora realmente bom em inglês quando nunca tivera que estudar para provas. Porque ela estava pagando de volta a confiança que ele tinha nela. Definitivamente não por amor.

Só que agora Nao sabia melhor. Não havia como negar algo tão excruciantemente óbvio.

Porque o Yuu Otosaka que encontrara naquele quarto era exatamente igual ao garoto que conhecera dois anos atrás, o que a irritara e a divertira e a dissera que a amava, mas também era exatamente o oposto.

E, mesmo que infinitamente feliz por ele ter voltado, Nao Tomori tivera seu coração despedaçado por isso.

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Ele passou a se acostumar com os saltos que seu coração dava quando ela sorria.

Era estranho que algo tão simples como uma garota pequena de olhos azuis o conseguisse deixar tão alterado. Para alguém que sobrevivera balas parando a centímetros de seu rosto, quedas de mais de cinquenta andares, explosões e queimaduras e não conseguir confiar mais em si mesmo, ele não devia ter seu corpo tão instável por causa de uma pessoa só.

Mesmo assim, seu olhar continuava fielmente voltando para Tomori, como um íma. Talvez o resto de sanidade que ele tinha em algum canto de seu cérebro ainda retinha memórias dela, mas era egoísta demais para devolvê-las. Talvez não houvesse mesmo uma maneira de realmente esquecer que a amava, memórias apagadas ou não.

Mesmo assim, ele queria saber por quê. Era injusto ter um sentimento entregue a você, pré-existente em seu peito, e não ter a explicação de como ele fora parar ali em primeiro lugar. Yuu já havia perguntado para ela como eles eram, como tudo havia acontecido, mas tudo o que a garota havia feito fora sorrir para baixo, de um jeito que fez seu coração doer.

– Foi um motivo idiota. Você disse que eu te salvei, e aconteceu. Não fui nem eu mesma que fiz isso, então não sei como te contar.

A voz dela estava leve, mas só o entristeceu mais. Ela o salvara de uma vida de depressão e de insanidade pela morte da irmã; e isso parecia ser motivo o suficiente para ele, que já fora salvo mais vezes pelo bloquinho que carregava no pescoço que conseguia contar.

Só que... Ainda assim, algo estava faltando. Ele se lembrava de como se sentira, naquele dia no meio do deserto, pelo simples ato de chutar o memento que ela o deixara - como se houvesse cometido um crime irremediável, virado de costas para o que mais importava em toda a sua vida. Havia algo nela que a devia ter feito tão importante.

Talvez fossem seus olhos; pareciam a cor do céu das manhãs na costa da América, uma das poucas visões que ele lembrava com carinho de sua viagem. Talvez fosse o cabelo dela, colorido como a lua ficava no Egito, ondulado e caindo por seus ombros. Ou talvez fosse seu sotaque que soava adorável para ele, seus momentos de animação que ele passara a ver mais e mais, sua personalidade forte, sua habilidade de manter-se impassível mesmo com o mundo caindo à sua volta.

Não fora só porque ela o salvara que ele se apaixonou - talvez fora porque tinha sido Tomori. Ela não desistira dele, mesmo no estado deplorável que ele provavelmente estivera; porque ela era teimosa o suficiente para não desistir, porque ela sabia como era tanto quanto ele. Porque Yuu não confiaria em ninguém mais para ir tão longe por ele além dela.

–... Talvez não faça muito sentido, mas... Acho que é por isso. Não acho que outra pessoa teria conseguido além de você.

Ele contou suas descobertas assim que pôde para Tomori, quando ela o veio visitar no horário de sempre. Sua recompensa foi uma respiração interrompida, olhos azuis brilhando, molhados, e um sorriso que tentara ser sarcástico, mas acabara saindo terno demais.

– É... Talvez fosse por um motivo desses.

Yuu se perguntou se também poderia se acostumar a querer mais sorrisos, e mais olhares, e mais dela.

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Uma vez admitindo que o amava, ele esquecendo ou não, as coisas ficaram mais fáceis. Yuu precisava dela para se recuperar, e Nao não podia se sentir como a que saíra mais triste daquilo tudo - não quando fora ela que abraçara Ayumi no corredor do hospital depois que seu irmão não a reconhecera, ou a que permanecera em silêncio com Yusa e Takajou depois que eles tentaram sem sucesso fazerem com que suas memórias voltassem.

Ela já tinha seu irmão, que melhorava a cada dia e já conseguia manter conversas normalmente; podia dar conta de um namorado com amnésia. Ele havia dito que se apaixonara por ela porque Nao não era de desistir, então tinha que continuar o provando disso.

E, bom... Caso ele lembrasse só uma coisinha sequer, ou mostrasse sinais de que poderia estar voltando a amá-la tanto quanto amou um dia... Ela o diria então. Achava justo responder direito à confissão dele de anos atrás, mas só quando o mesmo estivesse querendo ouvir essas palavras.

Sua rotina continuou sendo a de voltar para aquele quarto de hospital sempre que podia, trazendo gravações da vida que levara nesses últimos dois anos e ouvindo histórias de lugares que ele lembrava ter ido em suas viagens. Ela sabia que Yuu devia estar escondendo as piores partes, mas ele as contaria eventualmente se quisesse. Pelo menos, era o que esperava.

Nao acabou trazendo também uma gravação de quando o encontrara pela primeira vez, pela insistência dos outros do conselho. Foi uma ótima ideia; o rosto levemente em choque do garoto à sua frente enquanto via seu eu de dois anos atrás estava começando a lembrá-la do Yuu que conhecia.

– Eu... Não parecia ser uma pessoa muito boa. - O garoto tinha a testa franzida, chegando a corar um pouco de vergonha ao ver uma imagem de si mesmo olhar com raiva para a câmera.

– Bom, você usou sim seus poderes para fingir ser o aluno mais inteligente da sua escola e mentir para os outros sobre o que você era. - Ela deu de ombros, o olhando de soslaio quando ele se encolheu. - Mas você melhorou depois. Não é todo mundo que aceita ir numa missão suicida como você fez, sabe.

–... É, talvez. - Yuu sorriu por fim para ela, para depois voltar seus olhos para a câmera. - Mas... eu ainda queria saber como exatamente cheguei a fazer isso. Por mais que eu tente... Eu simplesmente não consigo...

– Ei. - Tomori levou uma das mãos para afagar o cabelo do garoto, o distraindo de seu rosto aflito. - Você não precisa se preocupar com isso. Se não consegue lembrar as antigas, vamos só fazer memórias novas que sejam melhores.

Por mais que eu quero que você lembre.

Um olho singelo virou-se para ela, e ele sorriu um sorriso que poderia ter a quebrado e a remontado novamente ao mesmo tempo.

– Obrigado, Nao.

Ela quase o disse, naquele momento. Mas as palavras ficaram presas em sua garganta, e ela não pôde fazer nada além de sorrir de volta.

Foi num dos dias em que ele estivera mais instável, no entanto, quando ela o encontrara se debatendo na cama e tivera que o segurar enquanto as enfermeiras não chegavam, que a garota se encontrou dizendo aquelas três palavras.

Yuu tinha o olhar voltado para a cama, se recusando a virar-se em sua direção e observar a marca que ele acidentalmente deixara em sua bochecha quando a tentara afastar em seu desespero. Nao havia segurado sua mão quando as enfermeiras saíram, o acalmando o melhor que podia com seus anos de experiência, só para tê-lo a fitando com o olho arregalado antes do mesmo se afastar.

– Desculpa, eu não... Eu não queria ter feito isso–

– Ei, eu não sou do tipo que se machuca por uma coisinha de nada dessas, sabia. - Ela respondeu, estreitando os olhos, tentando fazê-lo olhar em sua direção novamente. - Você estava tendo um pesadelo, é normal–

– Mas você– Eu não queria fazer isso com você!– A voz dele saiu alta e carregada de angústia, e ela percebeu que provavelmente não fora a primeira vez que ele machucara alguém enquanto inconsciente. - Você não–Eu não–!

– Shh. - Ela o interrompeu, levando suas mãos ao cabelo dele novamente, tentando controlar seu pulso acelerado porque ele tinha soado tão preocupado e ela tinha tido esperança de repente. - Eu estou bem, Yuu, você não precisa fazer nada. Eu já fiz muito pior que isso com você.

– Eu provavelmente merecia. - Ele murmurou, ainda frustrado, mas tinha se acalmado consideravelmente com o cafuné. Nem reagira quando ela o chamara pelo primeiro nome; parecia que Nao havia achado um de seus pontos fracos.

– Mereceu mesmo. - Ela respondeu, sorrindo quando ele enrijeceu seus ombros com isso. - Mas você também não merece ficar se culpando por isso, então é.

Passaram mais alguns segundos antes dele voltar a falar, voz num murmúrio baixo, como se não quisesse que ela tivesse ouvido.

– Por que você está fazendo tudo isso?

Ela piscou, e sorriu novamente. Dessa vez, as palavras escaparam de sua boca de uma vez só, como mágica.

– Porque eu te amo. Nós estamos namorando há um mês quase, pensei que fosse óbvio.

E Yuu, que não tinha memória de nenhum momento desde que se conheceram que não fosse por vídeos ou pela boca dos outros, que não se lembrava de suas discussões, do show que foram juntos ou de quando a dissera que a amava pela primeira vez, ainda assim tinha um brilho familiar no olhar quando a trouxe para perto.

Eles tiveram seu primeiro beijo na sala do hospital numa tarde de primavera, e Nao se sentiu infinitamente feliz que aquele seria um primeiro de que ambos lembrariam.

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Sua vida estava lentamente voltando ao normal. Para alguém que passara por tanta coisa, Yuu achara que seria impossível - mas a alguns dias de ser liberado do hospital, finalmente, os traços de habilidades que um dia tivera já desaparecidos de seu corpo, ele pôde se deixar relaxar com isso.

Nao havia levado sua câmera para o passeio com os outros mais cedo, onde gravaram o primeiro vídeo de dois anos em que ele aparecia na fita. Ela insistira que gravaria todas as coisas felizes que acontecessem daquele ponto em diante, e ele não via motivo para discordar.

Seu irmão, Shunsuke, o havia dito que eles voltariam para o prédio que ele e Ayumi haviam morado há dois anos - um mais seguro, onde os três poderiam voltar a morar juntos sem se preocupar. Ele teria de voltar a estudar para recuperar o tempo perdido, mas Yuu não tinha ideia de como voltaria aos estudos não lembrando muita coisa, então preferia não pensar sobre o assunto.

Tudo parecia estar se ajeitando. A única coisa que ainda o incomodava eram, claro, suas memórias. Ainda fazia pouco tempo desde que ele voltara ao Japão, então ainda havia a possibilidade remota que pudesse se lembrar, um dia...

Mesmo assim, não era justo. Ele queria se lembrar. Queria que as memórias que tinha não fossem de situações em que quase morrera, em que o único motivo de estar são era uma promessa que ele nem lembrava para quem havia feito; e sim de seus amigos, de sua família, pelas pessoas por quem saíra naquela missão em primeiro lugar.

Queria se lembrar de Nao; do que pensara quando a vira pela primeira vez – mesmo que fossem coisas ruins, provavelmente - de como ela passara da pessoa que arruinara seus planos para aquela que salvara sua vida. Ele a amava, tinha se apaixonado de novo por ela mesmo sem memórias, mas ainda assim não era suficiente.

Yuu não precisava que fosse muito, só uma memoriazinha sequer estaria bom. Porque ele via o quanto isso a afetava, mesmo quando ela era uma profissional em disfarces.

Mas bom, era melhor parar de pensar nisso. Ayumi não gostava quando ele ficava olhando triste para um ponto da parede, e aquela era sim uma ocasião especial.

Era a primeira vez que ele se lembrava de comemorar seu aniversário.

– Bom, Nii-chan, faça o pedido e apague as velas! - Sua irmã mais nova saltitava a alguns passos da cama, um chapéu de festa na cabeça e brilhinhos nos olhos. - Assim você finalmente será um adulto!

– Você sabe que, tecnicamente, eu já sou um faz duas horas, certo? - Ele comentou em resposta, com um sorriso sem graça.

– Não seja chato, Yuu. Catamos dezoito velas só para você, sabia? - Nao o repreendeu ao seu lado, o jeito como ela dissera seu nome trazendo leves arrepios aos seus braços. Tinha a impressão de que a mesma só começara a chamá-lo assim depois que voltara, felizmente.

– Vamos lá, Otosaka-kun! A vida de adulto te espera! - Yusa estava animada do outro lado, mãos fechadas em punhos, Takajou parado ao seu lado e com a expressão normal, mesmo que algo dissera a Yuu que aquilo era estranho.

– Vamos logo, Yuu-kun. Eu ainda não ouvi você assoprando. - Shunsuke comentou de seu lugar na parede, sorrindo.

– Certo, certo. - Ele esperou que todos se aquietassem antes de se voltar para o bolo novamente. O garoto se aproximou das velas, fechou os olhos.

Bom... aqui vai.

E assoprou. No céu azul estrelado de fora do quarto, um cometa riscou o céu brevemente antes de sumir.

Quando todas estavam apagadas, todos os integrantes do quarto comemoraram. Yuu abriu os olhos, piscando, vendo enquanto Ayumi tirava animadamente as velas e Nao e Yusa pegavam pratos e talheres.

– Aqui, aniversariante. Peguei até um morango. - Ele olhou para a mão estendida de sua namorada, uma fatia de bolo o esperando. Yuu pegou o prato, e voltou seus olhos para ela.

– Não tinha uma tradição de dar o primeiro pedaço para alguém ou algo assim?

– Nah. Você deve ter ficado sem bolo por dois anos seguidos, acho que merece desrespeitar as regras dessa vez. - Nao sorriu para ele novamente, se ajeitando para sentar-se ao seu lado na cama do hospital.

Ele a encarou por um momento; depois, sorriu.

– É, tem razão. - O garoto voltou-se para sua fatia de bolo, pegando um pedaço grande com o morango que ganhara. - Mas acho que você errou em outra coisa.

– Hm? - Nao, que também já começara a comer, virou-se para ele com uma sobrancelha arqueada.

– Considerando tudo que aconteceu, nós até que temos uma compatibilidade boa.

Owari.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.