Obscure Grace

Capítulo 14


Que seja doloroso, que seja difícil, mas acabo de tomar uma decisão: vou sair daqui. Me recuso a acreditar que foi o último abraço que dei em Rafael, vi o último sorriso de Cibele, sonhei com o último bolo de chocolate de mamãe. Will disse que podemos fazer nosso próprio paraíso, e talvez seja verdade, porém o meu é estar viva com minha família.

E, queira ele ou não, vou tirá-lo daqui comigo.

— William — chamo, procurando nas gavetas por um pedaço de papel e uma caneta. — Vem cá, temos muito a planejar.

Caminho até a sala de jantar e coloco o caderno na mesa de madeira, buscando depois o que restou do brigadeiro e deixando bem ao lado.

Pouco mais de meia hora mais tarde, está escuro lá fora, e nós dois estamos debruçados um à frente do outro na mesa olhando para o desenho mais detalhado do céu que Will conseguiu fazer. É um círculo grande com outros quinze, cada um menor que o anterior e dentro deste. Além disso, todos têm uma pequena abertura, mas elas não estão alinhadas. O resultado final parece um labirinto que eu costumava achar atrás da caixa do Todynho.

— Cada abertura é a porta de saída de um estágio — explica ele, circulando uma delas com a caneta, e posso sentir sua respiração quente na pele enquanto fala. — Encontrando algo errado, você manipula o estágio. Vê esse ponto que eu desenhei? Suponha que você está aqui. Agora imagine todo esse círculo girando e a abertura vindo até você, então você passa e ele gira de novo até a posição inicial. Mas há três jeitos de passar: o primeiro é girar o círculo, o segundo é dar a volta.

Eu sou brasileira, e se tem uma coisa que isso nos ensina é que sempre existe uma maneira mais fácil.

— E se nós pularmos o muro? — Debruço-me mais sobre o desenho dele, tentando visualizar um labirinto de verdade.

— Esse é a terceira forma, mas não é muito usual. Foi exatamente o que a Paula fez por você: te ajudou a pular o muro. Pra isso, você precisa de alguém que tenha poder de manipular a estrutura, assim como ela. Quem pode fazer isso são os anjos, e alguns ceifeiros.

— Você é ceifeiro e tem sangue de anjo — reclamo, rolando os olhos. — Não pode fazer isso?

Em resposta, ele se endireita e vira de costas para mim, colocando as mãos na base de sua camisa. Depois de hesitar por um segundo, puxa para cima o tecido claro lentamente até que suas costas apareçam por completo. Não é a primeira vez na vida que vejo um homem seminu; Jake Collins, o intercambista que tocava violoncelo, na festa beneficente... Longa história. Ainda assim, parece mais próximo e íntimo do que qualquer coisa. Há uma tatuagem cujo desenho não reconheço, parece um símbolo.

— Significa que sou rastreado — diz, antes mesmo que eu pergunte. — Não seria minha primeira tentativa de burlar as leis do céu. Qualquer que seja a próxima... — Outras palavras não são necessárias, porque basta um movimento dele para que várias cicatrizes sejam notadas. Grandes, pequenas, algumas recentes e outras antigas, mas de alguma forma sei que são todas de tortura. Chego a estender a mão para tocar alguma, mas paro no meio do movimento.

Depois disso, ele abaixa a camisa e se vira de novo para me encarar. Há um grande desconforto em olhar pra ele ainda mais de baixo do que o normal, mas tem algo diferente também. Uma pontada de reconhecimento, talvez.

Mas, como eu já disse, sempre tive a imaginação bem fértil.

— O que vamos fazer, então? — Minha voz sai mais baixa do que eu tinha planejado.

— Se conseguir nos levar para o décimo ou o décimo primeiro estágio, eu consigo pular direto pro último — afirma ele, pensando por alguns segundos. — É obrigatório passar por ele antes de sair assim como o estágio inicial. Vai ser bem cansativo, mas com um pouco de adrenalina e talvez uma barra de chocolate eu leve você sem nenhuma parada.

Rio baixinho e ele me lança um olhar confuso. É estranho imaginar uma divindade da morte comendo chocolate.

— E quem vamos chamar para nos ajudar com isso?

— É bem simples — responde, dando de ombros. — Nós vamos raptar um anjo. Não é difícil atrair um, e prendê-lo menos ainda. Só precisamos de alguns ingredientes especiais.

Acho que ele não entende a gravidade do que está me sugerindo. Raptar um anjo! Claro que ele deve entender do assunto, mas uma criatura com tanto poder assim nos vaporizaria num piscar de olhos.

— Ok, gênio, e como vamos fazer isso? Com sangue de unicórnio e uma tesoura sem ponta? — ironizo.

— Claro que não! — diz ele no mesmo tom. — Afinal, onde íamos achar uma tesoura sem ponta? — Demoro cerca de dez segundos para perceber que ele está brincando, e sou obrigada a rir. É, talvez ele seja um pouco engraçado. — Arranje mel, canela e hortelã, o resto pode deixar comigo. — Como ainda estou olhando, ele fica sério. — Não, dessa vez é verdade! Arranje mel, canela e hortelã.

— E isso é um tipo de feitiço? — pergunto, começando a procurar no armário pelo que ele pediu, mas não encontro nada. Tenho que lembrar de ir ao supermercado.

— Mais ou menos, é um charme para atrair anjos. — Ele rabisca alguns itens no caderno e arranca a folha, guardando no bolso do jeans. — Agora, se não quiser ser levada pra um manicômio, sugiro que pare de falar comigo.

— Ué, por quê?

Em resposta, ele aponta para a porta da cozinha, e a maçaneta está girando. Vovó acaba de chegar.

Quase espero que ela entre calmamente como deveria fazer uma senhora de sessenta e dois anos, mas é inútil: ela dá no mínimo dois chutes na antiga porta metálica, e o vitral treme com os golpes. Então, ao mesmo tempo que luta com uma enorme sacola reutilizável cheia de compras, ela entra xingando a mãe de quem fez a porta, de quem fez a sacola, de quem inventou o supermercado e do infeliz que plantou dores nas pernas dela. É, essa é minha avó. Pela cara de Will, consigo entender que agora ele sabe com certeza que ela não é uma velhinha jogadora de bingo.

— Lis! Eu não te esperava aqui tão cedo — diz ela, me abraçando com carinho e bagunçando meu cabelo com seus dedos pequenos, e somos meio amassadas pela sacola. Uma das coisas que mais gosto nela é que consegue até ser menor que eu. Rio, contente por estar com ela de novo, mesmo que não seja... Bom, ela de verdade e sim apenas uma memória. Vovó está viva e forte em sua casa no interior. — Ah, já que está aqui, faça o favor de guardar essas coisinhas pra mim. — O fim de sua frase sai mais marcado do que deveria, o que a faz parecer uma pergunta.

Deus, ela sempre faz isso. No começo eu me irritava muito, mas agora é até fofo.

Ela larga tudo na mesa e para por um momento para conferir se não esqueceu as chaves ou o celular no mercado. Sim, ela tem um celular, que aliás é melhor que o meu, e não só isso: também já me ensinou a fazer várias coisas.

Espera... Quase me esqueci de Will! Fico uns bons instantes preocupada com o que dizer dele, como apresentá-lo, afinal não é todo dia que trago pra casa um rapaz louro e bonito com nome estrangeiro. Porém, logo depois, ela segue pelo corredor, ignorando completamente meu amigo.

— Mas vovó, a senhora não vai dizer um oi para o... — começo, mas Will dá um pulo digno de filme de ação até mim e tapa minha boca antes que eu termine a frase.

— Não levante suspeitas. — Ele tira a mão devagar, arrastando-a para baixo em meu rosto. — Ela não pode me ver.

— O que foi, querida? — Ela está parada no meio do caminho, me olhando com uma expressão estranha. Troco um rápido olhar com Will e balanço a cabeça negativamente para ela, quieta. — Quase achei que seu amigo tivesse voltado. — Assim, sem mais nem menos, ela vai para a sala e se esparrama no sofá. — Ah, e tem bolo na geladeira!

Por mais tentador que seja, não deixo que isso me distraia. Antes de fazer qualquer outra coisa, xereto nas compras dela para encontrar o que preciso, mas não há nada aqui. Bem estranho uma velhinha não comprar canela, mel e hortelã.

Procuro por meu celular e os fones, que incrivelmente estão em cima do armário, e coloco algo agitado pra tocar. O aleatório me sugere I'm So Sorry, do Imagine Dragons, que aceito de braços abertos. Cantarolando junto e fingindo que sei alguma parte além do "I'm so sorry", vou tirando as coisas da sacola e colocando cada qual em seu lugar.

Meu corpo pode até estar aqui — figurativamente falando —, mas minha mente está voando por aí e tentando encontrar uma solução viável pra tudo isso. Podemos até atrair e prender um anjo, mas será que podemos obrigá-lo a ajudar? E se forem todos como Raziel? O melhor agora é seguir as instruções de Will, porque até agora ele é a única forma que vejo de sair ilesa daqui.

— Vó, eu vou ao mercado! — grito, depois de guardar tudo, e espero que ela me escute por cima do volume alto da televisão. "Quando eu vejo minha novela, não quero ouvir nenhum outro som", ela sempre dizia quando eu e Rafa éramos pequenos e fazíamos bagunça durante nossas visitas.

Ela murmura qualquer coisa em resposta, que pode tanto ser um "vá com Deus" quanto um "não use drogas". Conhecendo-a, eu diria que é uma mistura dos dois. Ah, não posso esquecer de perguntar a ela sobre o que disse mais cedo...

— Mas Will, eu tenho que... — Paro de falar ao ver que ele já não está mais por perto. Por isso tudo ficou tão quieto enquanto eu guardava as compras! — Ok, senhor ceifeiro, só... Volte logo, ok? Preciso de você.

Parte de mim sabe que ele não pode ouvir, mas a outra parte tem uma pequena esperança de que ouça.

Mel, canela e hortelã, certo? Ok, vamos fazer isso.