“E não há nenhuma garantia
De que eu não vou acabar sozinho
Mas pelo menos eu estou finalmente livre
Do medo do desconhecido
E isso é o suficiente para mim”

FOR ME, Dearlie.

Após a terceira checada completa em seu corpo, Joelle suspirou. Já era desconfortável o suficiente olhar-se no espelho de outra pessoa. Ainda mais quando era um homem nu e satisfeito, enquanto ela suspeitava dever estar sentindo algo semelhante. No entanto, as lembranças da noite anterior apenas a arrepiavam dos pés à cabeça. E não eram bons arrepios.

Sentia-se traindo a si mesma. Como se a punhalada pelas costas viesse de um braço extra dela. Não que Joelle houvesse levado alguma facada na vida, mas imaginava que doía bem mais uma autoflagelação do que um ataque direto.

E veja só as coisas que pensava apenas com um espelho...

Jo não se considerava feia. Era até bem atraente, se fosse levar em conta os padrões atuais de beleza. Portanto, seu “problema” não era relacionado à autoestima. O buraco era mais fundo, e ela temia pisar em falso e cair no próprio poço. Se ela mesma não sabia determinar o tamanho, quando chegasse ao fundo poderia ser fatal.

Suspirando, Joelle resgatou as peças de roupa espalhadas pelo chão. Vesti-las novamente foi uma tarefa enfadonha, visto que o único som que se ouvia eram roncos baixos e o som de seu coração se despedaçando uma vez mais. Após deixar um bilhete mediano na cozinha, Joelle deixou o apartamento para abraçar o clima seco da manhã em Austin.

Era uma pena os morcegos não terem aparecido para a temporada, ainda. Se fosse o caso, poderia ter alguma companhia na volta para casa.

Sábados e domingos eram dias de ensaio. Portanto, ainda que retornasse para casa, encontraria paredes vazias. E nada de roncos. Mathilda – Mattie, para elas –, sua companheira de apartamento e guitarrista do The Bats — “ora, essa, ninguém tinha nome melhor para aquele caos todo?” – estaria a esperando junto à Marla e Louna na garagem de Marla. Era inevitável não se sentir um pouco a Lindsay Lohan em Sexta-Feira Muito Louca. Rindo sozinha com a própria conotação, Joelle bateu no portão da garagem esperando que alguém a recebesse.

Foi Marla quem abriu a porta, com seu visual típico da Emma Bunton – duas marias-chiquinhas fazendo conjunto com o resto do cabelo solto, delineador azul-céu e um camisetão rosa-bebê, atravessado apenas pela faixa da guitarra de Mattie. Não poderia ser mais adorável e mortal. Ao ver a amiga, abriu um sorriso de orelha a orelha e abraçou-a de lado protegendo o instrumento.

— Oi! Desculpe o atraso — Joelle aplicou a pouca reserva de doçura que conservava dentro de si.

— Estava com o Henry? — Marla bateu a porta da garagem enquanto indagava com certa esperança na voz. Não a esperança intrometida; estava mais para uma inquieta. — Dessa vez procurei alguém sem defeitos. Deu em algo?

Joelle negou com a cabeça, pendurando a bolsa no mancebo deixado na garagem provisoriamente.

— Estava e... Hmhm. Ele ronca.

— Roncar não é bem um defeito, Jo.

— Não se já estiver dormindo. Senão, chega a ser agoniante.

Marla concedeu o ponto do argumento para a amiga. Dando de ombros de forma solidária, acrescentou para não morrer o assunto:

— As meninas foram fazer um lanche lá em cima. Voltam em breve. ‘Tá com fome? Vou mandar uma mensagem pra Lou trazer alguma coisa pra você.

Joelle assentiu com a cabeça um tanto aérea, porém sentou-se num dos pufes disponibilizados para as integrantes ilustres do The Bats com uma calma surpreendente para seu estado de espírito. Por dentro, estava tão agitada quanto um beija-flor – apesar de achar tal comparação completamente descabida –, já por fora era silêncio e expectativa. Quem sabe seu baixo pudesse curá-la da melancolia, não é?

Seu estado contemplativo foi interrompido pelo barulho das meninas descendo até a garagem. Mesmo sem olhar em direção ao som, Joelle podia escutar os sons de embalagens plásticas e risadas ora contidas ora exageradas. Louna e Mattie poderiam não ser as melhores amigas do mundo, porém todas na banda eram unidas. Tal pensamento a fez sorrir, na mesma hora em que Mattie jogou-se no pufe ao lado do seu.

— E aí, Jojo?

— Não sei quem é essa — Joelle devolveu a piada interna, sorrindo de lado. — Sobrou alguma coisa ou os dragões queimaram tudo?

Em resposta, Louna atirou-a um pacote de salgadinhos intacto. Jo teve a ligeira impressão de que ela não o abrira de propósito, no entanto guardou o pensamento para si. Havia certas coisas que era melhor não serem ditas.

— Obrigada, Lou-Lou.

— Ei, assim eu vou ficar com ciúmes — Mattie bronqueou, apenas para enfiar a mão no salgadinho recém-aberto. — Desculpa, não almocei hoje.

— A parte boa é que o cachê paga a comida — Marla gargalhou, resgatando para si uma garrafa d’água. Nem ali nem em outro mundo a pobre Marla Hayes sucumbiria a algo tão vil e repugnante quanto salgadinhos. Puro veneno para o meu corpinho, dizia. Joelle gostaria de ter os mesmos princípios. — Senão já estaríamos falidas!

Todas as quatro riram ao seu modo, compondo uma sinfonia que as fazia ser únicas.

— O que vamos mandar hoje? O Roosevelt pediu uma setlist até segunda à noite — com seu senso de liderança nato, Marla recostou-se no balcão de ferramentas. — Pensei em fazemos um brainstorm hoje só para reunir ideias, e começarmos os ensaios amanhã. Aí ninguém sai sobrecarregada e ainda dá um tempo de mandar alguma coisa entre hoje e amanhã. Gostaram bastante de Heart of Glass, mês passado.

As bochechas de Louna se inflamaram com uma violência sutil. Era capaz de ela nunca aceitar um elogio sem corar.

— É uma boa ideia — sorriu ela, logo suspirando em seguida. — Podemos fazer isso assim que a Jo disser o que tem de errado hoje que está tão quieta.

Joelle olhou para ela de supetão. Infelizmente, já não havia mais como passar despercebida aos olhos atentos de Louna. Talvez se conhecessem há tempo demais, afinal de contas.

— Oi? Eu ‘tô sempre quieta.

— Quieta, observando, sim — Louna replicou. — Hoje você está quieta com cara de peixe morto.

— Ah, meu Deus. Para, gente, eu ‘tô bem. Vamos começar logo?

As três se entreolharam, medindo as palavras escolhidas. Joelle permaneceu fitando-as, implorando clemência.

— Qual é, Jo — Marla suspirou. — A gente é uma equipe... Se um não funciona, o resto também não.

Dando-se por vencida, Joelle ajeitou-se de perna-de-índio. Não sabia por onde começar, uma vez que não sabia qual era o problema com ela. Portanto, somente balbuciou algo perto de um “tá bom”, porém permaneceu na mesma posição por um tempo.

— Foi por causa do Henry? Ele te fez alguma coisa? — Marla voltou a usar aquele tom maternal. Joelle nunca a dissera a ela diretamente, mas amava quando ela agia dessa forma. — Porque, se fez, eu vou descer uma pancada que ele vai até esquecer quem é.

Todas as três restantes gargalharam, talvez por imaginar a cena cômica que seria alguém como Marla descendo a mão em alguém para salvar a honra da amiga. Ainda assim, Joelle devia respostas às preocupações das amigas.

— Não, ele não fez nada. Ele foi bem legal, até. Quer dizer, para quem estava só querendo afogar o ganso...

— Socorro — foi a vez de Louna rir de nervoso, sentando-se no chão. — Então qual é o problema, Jo? Não vamos te julgar. Todo mundo aqui já fez alguma merda na vida.

Bem, isso era verdade.

— Eu não sei... — Joelle começou. — E se de repente todo mundo tem uma alma gêmea, menos eu?

Fez-se um silêncio paciente entre as três. Se tudo que Joelle precisava era um estopim, ele já estava dado. Portanto, continuou:

— Todas vocês tem alguém especial. Mattie tem o Davey. Marla e Pietr finalmente estão juntos de novo. Louna e Adrien precisam se ajeitar em algum momento, porque se existe destino é o caso dos dois — apesar de não olhar, Joelle arriscou dizer que Louna teria ficado constrangida. Teria de lembrar-se de parabenizar-se depois. — E eu não tenho ninguém especial. Eu fico pensando se... Se sempre vou ficar em segundo lugar em tudo? Se as pessoas especiais foram feitas para deixar a vida melhor, quer dizer que eu vou ser infeliz pra sempre?

Joelle ergueu a cabeça, saindo de seu monólogo por breves instantes. Ao invés de parecerem estar achando todo aquele papo um tédio, as três ouviam com atenção. Foi Mattie quem se pronunciou primeiro:

— Se sente infeliz agora?

— Sim — a resposta veio automaticamente.

— E nos outros dias antes desse, estava se sentindo infeliz?

Para isso, Joelle teve de colocar os miolos para fritar. Recapitulando cada pedaço de sua semana e da anterior, negou com a cabeça cuidadosamente. Igualmente com cautela, Louna pousou uma mão em seu ombro.

— Percebe que, tentando ser igual aos outros, está se perdendo cada vez mais em sua identidade?

Joelle voltou à órbita, finalmente sendo capaz de olhá-la nos olhos.

— Como assim?

— Não existe apenas um tipo de amor — Mattie sustentou o argumento anterior. — Teoricamente, existem quatro tipos... Ou eram mais? Enfim. Apenas porque não consegue amar alguém romanticamente, não quer dizer que esteja impossibilitada de amar tudo que a vida tem a oferecer.

Faz sentido...

— Me desculpe pelo Henry... — Marla emendou, engolindo em seco enquanto Joelle ainda organizava seus pensamentos. — Se te desrespeitei em algum momento, me perdoe... Foi na melhor das intenções.

— Ah, Mar, não esquenta — Joelle arriscou um sorriso em meio à sua seriedade de sempre. — Fui em quem quis continuar com isso. Mas parece que hoje foi a gota d’água.

Marla suspirou, aquiescendo. Por sua vez, Louna realocou-se até o pufe de Joelle, deixando-as mais próximas para poder envolvê-la com um braço. Às vezes, o papel de mãe se alternava entre elas.

— Se estar com alguém é sinônimo de felicidade, então seja a mais infeliz de todas — Louna aconselhou com seu melhor tom misterioso. — Talvez possa vir a ser bem mais feliz fugindo das regras.

Mattie exprimiu um som de revolta.

— Afinal, quem criou essas regras? E outra coisa: é impossível ser feliz com alguém sem ser primeiramente feliz sozinho. Imagine só deixar minha felicidade toda nas mãos de Davey, ou vice-versa?

— Hum, seria meio egoísta... — Joelle franziu o nariz, assimilando tudo o que havia escutado. Respirando fundo, ela reconheceu que as amigas haviam acabado de lhe oferecer uma lanterna. — Eu acho que...

Joelle pigarreou, reunindo coragem suficiente para expor o agora o óbvio. Havia uma aura de expectativa no ar que até poderia lhe sufocar, se fossem outras pessoas e outras épocas.

— Eu sou assexual... E arromântica. E amo vocês. E vocês me amam. É suficiente.

As três sorriram sensíveis cada uma ao seu modo. No entanto, todas as três partiram para um abraço em grupo, apesar do resmungo que Joelle emitiu com o contato físico excessivo.

— ‘Tá legal, ‘tá legal... Já deu, gente.

— E essa é a Jojo que conhecemos — Mattie sorriu contente com a provocação.

— Vocês estão andando com alguém novo, hein? Porque essa Jojo...

As quatro voltaram a rir, como de praxe. A tensão do momento anterior se foi tão rapidamente quanto havia chegado, e Joelle foi obrigada a conter as lágrimas que se acumularam no canto dos olhos.

Droga... As amava, mesmo!

— Ok, chega de lengalenga — a mãe Marla saiu e eu estado amoroso para assumir o autoritário. — Quero ideias na minha mesa para ontem.

— Me devolva meu bebê e depois a gente conversa — Mattie atalhou de brincadeira, resgatando a guitarra que Marla levava a tiracolo. — Ladra.

— Eu estava cuidando dela. Não dá pra levar a bateria no colo!

Em meio ao amor e ao caos, quatro morcegos levantavam voo pela noite em Austin.