Caminhando no escuro

Cortando por um caminho diferente

Liderada pelo seu coração que bate (...)

A noite era tudo o que você tinha (...)

Você fugiu para a noite, você não pode ser encontrada

Mas este é o seu coração, consegue senti-lo?

Bombeia através de suas veias, consegue senti-lo?

LAURA PALMER, Bastille.

— Pietr, eu preciso que me ajude com uma coisa.

Pietr, que lia tranquilamente sua cópia surrada de Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, ergueu os olhos azuis-escuros preguiçosamente. No auge de seus 17 anos, o mais novo dos Benoit ainda não havia adquirido toda sua hiperatividade característica. Aparentemente, em algum ponto entre a adolescência e a maioridade, sua calmaria sobrenatural havia passado para a gêmea mais nova, Louna. Esta, diante de si, parecia prestes a dar pequenos saltinhos para chamar sua atenção.

— Depende. É ilegal?

— Hum... Mais ou menos.

Podemos dizer que o estopim para a troca de personalidade possa ter sido aquela combinação tão curiosa de palavras. Quem olhasse Louna Benoit dos pés a cabeça talvez não visse seu real potencial – a garota era uma mescla de coragem, rebeldia (com causa!) e impetuosidade mascarada com uma aparência de doçura e ingenuidade passiva. Pietr não tinha dúvidas de que a irmã era sua pessoa favorita no mundo. Portanto, até mesmo algo fora da lei poderia ser digno de sua consideração.

— Como assim mais ou menos?

— Bem, somos menores de idade. A gente não vai preso, se for pego. Mas eu sou esperta, só seria pega por um caso gravíssimo de acaso ou coincidência.

Por sua vez, Louna também considerava o irmão como sua pessoa favorita no mundo. Portanto, até mesmo algo fora da lei poderia ser digno de sua consideração, apesar de estarmos falando da situação contrária. Apesar de esforçar-se ao máximo para aparentar coragem, rebeldia e impetuosidade, por vezes sua doçura e passividade falava mais alto. Com Pietr, isso era quase sempre lei.

— Sei. Para quê você precisa de mim num negócio ilegal, Lou-Lou?

— Falando assim parece até que a gente vai lavar dinheiro — Louna riu baixo, prendendo o cabelo volumoso num rabo de cavalo elegante.

— Claro que não. É mais fácil para o pai e a mãe fazerem isso do que a gente.

Louna concordou com a cabeça. Daí, ela resgatou as chaves d’O Carro com cuidado. Pietr preparou-se para a enxurrada de informações. Quando se dividia o útero com alguém, se ganhava o direito a alguns poderes telepáticos. Quer dizer, isso era bem mais legal de ser dito do que “eu a conheço bem”.

— Olha, eu encontrei um cara no farol que também tinha um Chevy. Ele insinuou que o dele corria à beça, aí ele perguntou cheio de deboche se o meu corria tanto quanto o dele. É óbvio que eu respondi que sim, mas mexeu com o meu orgulho... Aí ele falou que adoraria ver se era verdade ou não, e falou pra gente apostar uma na Pennybacker. Eu falei que sim, mas que tinha que ser de madrugada. E aí... Bem, é hoje.

Ah, meu... Deus.

— E eu seria útil exatamente em quê? — Pietr ergueu uma sobrancelha, fechando seu livro como se dissesse com os olhos “você conseguiu. Agora você atraiu a minha atenção”.

— Você... Você, infelizmente, é um homem. E ter um homem em situações de risco é uma boa carta na manga.

Infelizmente? Quer dizer que você só precisa de mim pelos meus colhões?

Louna recostou-se no batente da porta, pensativa.

— Bem... Sim, você colocou no modo grosseiro de se dizer. E porque você é o meu contato de emergência. Assim como eu sei que eu sou o seu. Quer saber de uma coisa? Você fica me devendo essa! O que acha disso!

Pietr estreitou seus olhos idênticos ao da irmã, levantando-se como um gato que se espreguiça após um longo cochilo. Ao seu lado, Chantilily bocejou generosamente.

— Veja bem — Pietr iniciou, resgatando sua jaqueta de aviador pendurada atrás da porta. Abril não era lá um mês frio, entretanto aquela jaqueta já era sua marca registrada. — Sei que, eu indo ou não, você vai fazer isso. E eu já estava ficando um pouquinho saturado da leitura, então vou unir o útil e agradável e ir com você. Mas vai ficar me devendo essa.

Como resposta, Louna atirou-se em seus braços, envolvendo o irmão num abraço de urso do qual ele não desgostou. Era necessário que seus minutos de vantagem valessem a pena, afinal.

— Ah, eu amo você. Prometo que não vai se arrepender!

— Veja lá, hein? Lulu da Pomerânia — Pietr riu com uma pitada de deboche acentuado.

— Uhum! Tripa Seca. Vamos logo antes que o seu cabelo fique oleoso e você tenha que voltar para lavar.

— Por favor, não fale do meu cabelo... Ele fica oleoso todos os dias...

— Problema seu. Vamos logo!

Após pausarem as ofensas amigáveis para descerem as escadas em silêncio – Louna contava com mais uma vantagem de levar Pietr: os pais jamais questionavam se ele saía na madrugada, ao passo que ela jamais poderia cogitar uma besteira dessas –, os irmãos Benoit embarcaram na noite que os chamava para uma aventura em dupla. Ao menos... Louna embarcou.

Eram poucas as ocasiões em que Louna sentia-se realmente empolgada com algo. Não era a racha que lhe causava animação, era a sensação de liberdade em dirigir e exibir-se sem revelar sua própria identidade. Louna poderia ser quem quisesse atrás do volante. Era mesmo uma pena que não poderia fazer aquilo seu estilo de vida. Como diria M.I.A, garotas más vivem rápido e morrem jovens. E Louna estava interessada em ter ao menos uma vida após os 20 anos.

Por sorte, Pietr acompanhou-a sem mais reclamações. Olhando-o de soslaio, Louna pensou que talvez ele também estivesse ansioso para algo que saísse de sua zona de conforto literária. Ele não era o que Louna chamaria de estudioso, uma vez que ele raramente estudasse – o ruivo estava mais para o estilo de quem aprendia rápido e sem esforço. Apesar disso, Pietr não perdia tempo em escapar da rotina quando lhe era conveniente.

Ao chegarem na Pennybacker, Louna percebeu-se sinceramente surpresa de a ponte sob o rio Colorado estar vazia. Talvez o sujeito fosse mais influente do que ela soubesse... Ou então foi só golpe do acaso. Fosse como fosse, aquele seria seu dia. Melhor dizendo... Sua noite.

— Boa noite, senhorita — olhando-o melhor, Louna analisou que o “sujeito” era menor que Pietr, apesar de claramente ser mais velho. Se existisse um placar fictício de pontos a serem marcados, Louna viraria o cartaz de mais um. Apesar de ter um belo carro, o homem não tinha nada de espetacular. Ali estava um ponto em comum... — Trouxe uma garantia?

— O quê, o magrelo? Sim, é a garantia que a desproporção bate vocês dois bombados aí — Louna gargalhou com maldade.

— Minha perna é fina, mas ao menos o cérebro compensa o peso... Né? — Pietr sussurrou, de canto.

— Me deixa ofender o cara, é na esportiva...

— Ah, tá. Desculpe. Continue.

O homem permaneceu encarando-os com uma expressão engraçada. Louna entendeu que seria algo para entretenimento de ambos os lados, então sua tensão dissipou-se quase que de instantâneo.

— Seu motor tem alguma vantagem? — Louna indagou, indo para perto do Chevy II que era primo distante do seu. — Porque o meu é adaptado, mas só para fazê-lo andar sem morrer.

— Nenhuma modificação, gatinha. Pode olhar se quiser.

Então, o moreno alto e bombado – céus... Chegava a ser incômodo o quão pequenina ela parecia perto de qualquer um! – abriu o capô do carro e exibiu seu motor completamente entediante. Para os padrões de corrida, é claro. Então seria uma disputa justa.

— A gente dá a volta e termina nesse lado da ponte? — o homem ofereceu, estendendo uma mão para que Louna a apertasse. Quando ela o fez, com os olhos faiscando, ele assentiu com a cabeça. — Ok. Boa corrida, gatinha.

— Me chame assim de novo e eu corto sua língua e dou para a minha gata comer.

Girando nos calcanhares, Louna entrou de volta n’O Carro e atravessou a ponte num ritmo calmo. Ajeitando o retrovisor enquanto partia, Louna observou Pietr com sua cara de autoconfiança exalando nas sardas ruivas. Sorriu para ele e supôs que ele já havia feito os cálculos de quem seria o vencedor daquela noite, portanto aquele também seria o estopim do final de sua vida selvagem.

Atrás do volante, Louna tinha o mundo em suas mãos. Concentrando-se nos pés que iam aos pedais, Louna repousava a mão tranquilamente sob o freio de mão. O Carro rugia, aguardando para que a motorista desse o comando. Seu coração batia como se fosse implodir dentro do peito. Mesmo se perdesse, seu orgulho já valeria a partir dali.

Um sorriso transpassou seus lábios. Após olhar para o “adversário”, ambos soltaram o freio de mão simultaneamente. A fugitiva ia de encontro com a noite, pois sabia que essa lhe receberia de braços abertos.