ORBITAIS

CAPÍTULO I: A REBENTAÇÃO DE HÉSTIA


ORBITAIS

PRÓLOGO

Em uma Terra ancestral, marcada pela soberba certeza de superioridade no Universo, ela criou algo. Ingênua, imaginou o céu como uma metrópole. As estrelas eram como as luzes de uma cidade em meio à escuridão, e ela gostava de imaginar o que habitava aqueles prédios longínquos. Ah, como queria poder ver os diferentes tipos de vida que transitavam pelo breu cintilante! Seduzida pelo vazio enigmático, desenhou um caminho no céu da sua casa, com o intuito inocente de conectar toda a existência cósmica em uma só comunhão.

Iludida com a ideia romântica que tinha da própria raça, esqueceu-se daqueles que preferiam o caminho da destruição.



Capítulo I

A REBENTAÇÃO DE HÉSTIA

“Por que será que as pessoas são tão fascinadas pelo espaço?” ela perguntou, fitando o céu escuro acima deles. “Cativados por uma escuridão sem fim e um frio que nunca cessa? Um vácuo infinito que poderia nos matar em um piscar de olhos?” Ele havia escutado suas palavras em silêncio, sua visão embaçada pela leve luz que a lua cheia provia. “É um tanto assustador, não é?”

j.d.m.



ARK STATION, CINTURÃO DE ANDRÔMEDA

DISTRITO 2145-GF - RESTAURANTE THE DROPSHIP, ANO 2785

“Nós não iremos ter essa discussão novamente, Clarke.”

Os olhos uma vez juvenis e cintilantes de Abby, agora cansados e rígidos, a encararam com seriedade. As rugas em sua testa e ao redor dos olhos começaram a ficar mais evidentes depois que o restaurante passou aos cuidados de sua mãe, e os cabelos antes castanho claro começaram a derramar pequenos detalhes de fios prata pela cabeça.

“Não pode me manter presa nesse lugar de merda para sempre.” Clarke sabia que tinha razão e sempre gostava de enfatizar isso à mãe. As tentativas de chantagem emocional e financeira já não funcionavam já que o restaurante tinha uma ótima clientela e as duas mantinham uma relação civilizada. Ela não aguentava mais viver presa naquele Distrito, sabendo que havia tantas coisas lá fora. “Assim que Maya voltar, eu pego minhas coisas e vou embora. Não é mais uma ameaça, mãe. É uma promessa.”

O senhor com cara de lagarto limpou a garganta e apontou para sua mesa vazia, sinalizando sua comida na bandeja segurada por Clarke. Ela o fuzilou com os olhos e, ignorando o “Depois conversamos sobre isso” de sua mãe, pôs a comida sobre a mesa com uma força desnecessária, quase derramando o chá do pseudo-réptil.

“Desculpe, Cint.” Disse a loira e voltou a anotar os pedidos e os levando até a cozinha, onde Jasper e Monty discutiam.

“...mostarda! Não é o sabor certo!”

“Jasper, só por que você não gosta de mostarda, não significa que os clientes não podem gostar! Deixe a moça comer o sanduíche dela com mostarda, ela quem está pagando!”

“Harper odeia mostarda.” Clarke diz, depositando os pedidos na pequena bancada localizada entre o bar e a cozinha. Através da abertura, ela vê Jasper revirando os olhos e ajustando os óculos em sua cabeça.

“Claro que odeia. É amargo e azedo e amarelo! Parece uma gosma.”

“Seu gosto pessoal em condimentos não é relevante, Jas. Agora parem de bagunçar e façam logo os pedidos antes que Abbyzilla apareça.”

Clarke riu com o apelido inventado por Monty e suspirou, sentindo-se cada vez mais exausta. A rotina de co-dirigir um restaurante ficava cada vez mais cansativa, à medida que o tempo passava. Jake estava em todo lugar: nas fotos das paredes, a aliança de sua mãe, até mesmo no espelho… Toda vez que ela encarava o espelho, seus olhos azuis como os de seu pai traziam a dolorosa lembrança da perda.

Clarke observou o restaurante modesto. As cortinas quadriculadas, os barris transformados em bancos e as paredes metálicas coloridas por ela faziam parte do único lugar que podia chamar de lar. Após a suposta traição de seu pai contra o Conselho de ArkStation, ela e sua mãe tiveram sua casa tomada, e precisaram juntar economias para sobreviver. De início, The Dropship era o que seu nome dizia - uma nave caída à beira de um precipício, em uma área duvidosa do distrito 2145-GF da estação espacial Ark. Com muito trabalho manual e ajustes, ela e Abby conseguiram transformar o local em um restaurante de “beira de estrada”, onde os transeuntes faziam suas refeições entre suas viagens. Alguns clientes moravam por perto, tornando-se regulares e eventualmente, amigos das duas.

Por mais que Clarke amasse o restaurante, não aguentava mais ficar presa à ele. Com tantas coisas magníficas para vivenciar, pessoas e lugares para conhecer, a última coisa que queria era ficar servindo fritas à lagartos pelo resto da sua vida.

A chuva caía torrencialmente do lado de fora da antiga nave, as gotas batendo contra as paredes de aço e reverberando sons metálicos pelo ambiente. O dia frio e cinzento trazia uma estranha antecipação em seu ar, como se a eletricidade dos raios no céu refletisse nos nervos de Clarke. O burburinho de conversas e o calor da lareira aquecia o local, e o cheiro de café e chocolate quente traziam um conforto momentâneo à loira, que assistia as diferentes faces - meio-lagartos, tentáculos no lugar da barba, dentes caninos e membros de metal - conversar amigavelmente.

“Pensando na morte da bezerra?” Jasper surgiu do seu lado, fazendo a bandeja em suas mãos tremer e quase escorregar por seus dedos.

“O que?!” Clarke exclamou, reequilibrando por pouco os copos e pratos em suas mãos e olhando feio para seu amigo, que exibia um sorriso divertido. “Se eu derrubasse, você iria limpar.”

“Nah, eu sou lindo demais pra ficar limpando a sujeira dos outros.”

“Seu trabalho é literalmente limpar a sujeira dos outros”

Jasper deu de ombros, apontando o dedo para a cozinha, onde Monty preparava os pedidos.

“Mais especificamente a sujeira que ele faz na cozinha. Nunca vi tanta panela suja assim, pelo amor de-” BOOM!

Sua frase foi interrompida por uma explosão vinda do lado de fora do restaurante, seguida de um barulho estridente de algo muito pesado sendo arrastado contra o ferro. O restaurante estremeceu, e, por um segundo, Clarke achou que a nave ia escorregar precipício abaixo.

“Mas que merda é essa?” Assustada, ela largou a bandeja no balcão, e seu primeiro instinto após checar sua mãe – com a mesma expressão da filha, a mão esquerda no peito e a outra apoiada no balcão do caixa – é correr em direção ao barulho.

“CLARKE, ESPERE!” Ela ouviu a voz de Abby, mas a ignorou, correndo porta afora.

A chuva forte bloqueia parte da sua visão, obrigando-a a piscar rápido para afugentar a água insistente. No deque que delimita o caminho da montanha até o restaurante, a aproximadamente dez metros de distância, uma nave pega fogo. Não aparentava estar completamente destruída, mas as turbinas traseiras que saíam fumaça e as placas de circuitos faltando na lateral indicavam que não seria fácil consertá-la.

O vidro que separava o piloto do meio exterior estava quebrado na lateral esquerda, saindo fumaça o suficiente para que Clarke não conseguisse enxergar nada. Cautelosa, ela caminhou em direção aos destroços, o coração prestes a saltar pela boca e sair correndo. A chuva não cessava, dificultando seu caminhar pelo deque escorregadio.

Ela não planejou se colocar em perigo eminente, sério. Mas a curiosidade era maior que o medo. Sempre fora atraída às situações que faziam o pelo de sua nuca eriçarem. Na porta do restaurante, ela ouviu Jasper e Monty tentando acalmar sua mãe, que gritava desesperada para Clarke se afastar.

Chegando perto o suficiente para encostar no vidro, ela pausou, respirando fundo. Esperava que seu pai estivesse errado, e que sua mórbida curiosidade não a deixasse sem um membro, ou a fizesse se explodir pelos ares. Com certeza a pessoa que estava dentro da nave precisaria de ajuda após ter sua nave praticamente destruída.

Clarke se aproximou do veículo, apreensiva. Por dentro havia apenas fumaça, e nenhuma visão do piloto. Novamente, sem pensar muito no que estava fazendo, ela levou sua mão até o vidro - que estava quente como brasa. Automaticamente sua mão se afastou com o contato, seus dedos ardendo com a possível queimadura.

O vidro se abriu de repente e uma mão agarrou seu pulso, fazendo-a pular e tentar se soltar. A mão peluda e com garras a segurava com força e após a fumaça sair, ela deu de cara com olhos felinos amarelos. A mulher-gato tinha um corte na cabeça e a outra mão ao redor do tronco, onde o casaco se encontrava ensopado de sangue. A respiração áspera e rápida e a movimentação de seus lábios com caninos expostos esboçava dava a entender que ela queria dizer algo.

Ignorando seu instinto de sair correndo, Clarke chegou mais perto a fim de entender o que felina queria dizer.

Heda...” ela sussurrou e Clarke se sobressaltou ao reconhecer a língua falada. Um objeto esférico e quente foi colocado em sua mão, pequeno o suficiente para sumir ao fechá-la. As palavras proferidas logo em seguida pelos lábios felinos propagaram um calafrio por seu corpo e fizeram seu coração congelar.

Skaiheda.” Ela disse. “Oso gonplei nou ste odon.”

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PLANETA AZGEDA, CINTURÃO DE ÁRTEMIS. EM ALGUM LUGAR AO REDOR DO DISTRITO 2143-GT

NAVIO ESPACIAL APOLLO XX

“Raven, a torre!”

“Eu estou vendo, idiota! O que me falta é uma perna, não os olhos!”

“Calem a boca e concentrem-se em nos tirar daqui!”

Bellamy estava furioso.

Enquanto Raven desviava de hangares, torres e deques espaciais, tentando ao mesmo tempo os tirar da mira dos lasers grounders, Emori gritava palavrões e Murphy revirava os olhos como se estivesse irritado com a situação, ele e Miller se encaravam em seriedade em uma pequena conversa silenciosa.

“Não me olhe assim.” Miller resmungou, em meio a gritos e xingamentos. “Quando se trata de Octavia você nunca ouve ninguém. Não tinha o que fazer para mudar sua cabeça.”

“Talvez se alguém tivesse checado a porra do número da nave direito, não estaríamos nessa situação.” Disse Bellamy, fuzilando Murphy com o olhar.

“Ei, não coloque a culpa em mim! Você disse nave Trikru. Só tinha aquela. Como eu ia adivinhar que Octavia não estava nela e sim um bando de Reapers?!”

“Talvez pela quantidade de contrabando de pó de estrela nela, Murphy!”

“Vocês dois, calem a boca!” Gritou Raven do leme, a testa franzida em concentração. O navio espacial balança ao chocar sua lateral numa torre de comando.“Consegui uma brecha para pular, então é melhor se segurar."

Fazer um salto e viajar em velocidade da luz sempre dava náuseas ao Capitão do navio Apollo. Ele sentia como se seu estômago estivesse sido deixado para trás, junto com sua capacidade de raciocínio. Porém, considerando a situação na qual sua tripulação se encontrava, Bellamy preferia mil vezes perder seus órgãos vitais do que ser capturado pelos viciados espaciais.

Octavia costumava chamar os Reapers de aspiradores de pó, o que sempre arrancava um sorrisinho em seu rosto. Ele sentia muito a falta da irmã, e a realização de ter falhado ao encontrá-la mais uma vez era como perdê-la novamente. Quanto mais eles demorassem em encontrar a nave Trikru que a havia “resgatado”, maiores as chances de O. não sobreviver.

“...uma pequena desregulada nos propulsores traseiros. Mas nada que eu não possa resolver.” A voz de Raven Reyes, sua piloto e segunda em comando, interrompeu seus pensamentos, e só então ele percebe estar são e salvo em algum lugar no espaço longe de Reapers e grounders. O vazio do espaço, outrora confortante, parecia zombar da sua cara, as estrelas e planetas longínquos brilhando em meio à escuridão.

Cuidado com as estrelas, Bell. De longe são belas, mas se chegar perto demais, podem te cegar.

“Capitão?” Emori se pronunciou, colocando a mão robótica levemente em seu ombro. Ele estremece com o toque gelado do aço.“Está tudo bem?”

Miller fez uma careta ao ouvir a pergunta da garota. Ele já sabia a resposta.

“Tudo está perfeito.” Respondeu Bellamy, irônico. “Meu navio está furado, perdemos metade da mercadoria e minha irmã está presa em uma nave Trikru em algum lugar do espaço que eu NÃO SEI!” Exclamou, raivoso, e Emori suspirou, resignada. A garota não tinha medo do Capitão, ao contrário dos outros. Precisava de muito mais para assustá-la. “Graças ao seu namoradinho, abordamos a nave errada e olha o que nos custou.”

Ele sentiu uma pontada de culpa por falar assim com a pobre garota, mas sua frustração é tamanha que ele não se dá o trabalho de se desculpar. Além disso, sabia que Emori não levaria para o pessoal, sendo ela uma das pessoas mais duronas da tripulação. Ele estava exausto e com raiva daquilo tudo, sentindo-se impotente por não conseguir fazer uma coisa certa sequer em sua vida.

“Murphy.” Ele disse, a voz grossa e autoritária, e o garoto de nariz grande e olhar de escárnio levantou as sobrancelhas. “Se cometer qualquer erro como esse a partir de agora, chuto sua bunda pra fora daqui, entendeu?”

Murphy suspirou e levantou as mãos em sinal de rendição. Sabia que tinha feito besteira, e não queria levantar a ira do Capitão Blake quando se dizia respeito à sua irmã.

“Olhe, me desculpe. Eu deveria ter percebido que era uma nave de reapers. Não irá acontecer novamente, Capitão.” Ele disse o nome com ironia, fazendo Bellamy respirar fundo pela milésima vez. Se Murphy não fosse tão perspicaz, ele o expulsava da tripulação por ser um pé no saco.

“Está avisado.” Respondeu. “Raven. Em quanto tempo pode consertar os propulsores?”

“Menos de uma hora.”

“Certo, comece já. Miller e Emori, quero que me ajudem a procurar uma pessoa.”

Miller o observa, desconfiado.

“Bellamy, eu não sei se é uma boa idéia...”

“É o único jeito. Existem poucas pessoas capazes de rastrear uma nave grounder sem ser pega, e você sabe disso.” O moreno respondeu, respirando fundo. “Precisamos do seu ex-namorado.”

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ARK STATION, DISTRITO 2145-GF , RESTAURANTE THE DROPSHIP

Skaiheda.

O nome rodopiava na mente de Clarke, dando voltas e voltas em seu cérebro até fazê-la ficar tonta. Após a mulher gato pronunciar aquelas palavras, ela desmaiou, deixando Clarke em desespero.

Para melhorar a situação, a guarda espacial apareceu logo em seguida, fazendo perguntas sobre grounders e mapas, deixando-a ainda mais confusa. Ela, obviamente, escondeu o objeto no assoalho de seu quarto, sentindo que se aquilo caísse nas mãos do Conselho, algo daria muito errado. O Conselho de ArkStation controlava o Cinturão de Ártemis com mãos ambiciosas de aço, desde a criação do planeta Mt. Weather. Agiam como os pacificadores da galáxia quando, na verdade, eram eles que a desequilibravam, tentando dominar planetas menores e cobrando valores exorbitantes de taxas que não deveriam existir. Clarke os odiava desde que o pai conseguiu uma cadeira no Conselho, e passou a odiá-los ainda mais após o desaparecimento dele.

Marcus Kane, chefe da guarda e “amigo” de seu pai, se aproximou. Seu uniforme branco se destacava em meio ao caos de metais enferrujados e barris de cerveja, como se não fizesse parte do ambiente. Ele acenou para Abby, que apenas o olhou com desprezo e saiu às pressas. Clarke o fuzilou com o olhar.

“A que devo a honra de sua presença, Chefe Kane?” Diz a loira em um tom ácido. Kane franziu o cenho, não parecendo aborrecido com Clarke. Seu olhar era frio, desafiador.

“Olá Clarke. Como vai?” Disse em um tom amigável. Clarke levantou as sobrancelhas, desacreditada. Como ele tinha coragem de aparecer ali depois do que fez com ela e sua mãe?

“Melhor impossível. Não veio nos expulsar de casa de novo, veio?”

Kane sorriu levemente, como se achasse a pergunta atrevida engraçada. Ele reparou as mãos de Clarke no bolso do avental que ela usava, e arqueou uma sobrancelha com interesse.

“Clarke, sei o que pensa de mim. Tenho certeza que não passo uma boa imagem após...Você sabe. Mas vim aqui cumprir uma promessa que fiz ao seu pai.”

Um nó surgiu na garganta de Clarke, lágrimas raivosas ameaçando cair pelo canto de seus olhos. Como ele ousava falar que iria mantê-las a salvo depois de tirá-las de sua própria casa, deixando-as vulneráveis ao mundo? Depois de ter traído a amizade de seu pai para o Conselho? A culpa era de Kane que Jake estava desaparecido.

“Você não tem direito de falar sobre meu pai. Sei que veio a trabalho, Senhor, então fale logo o que quer.” As palavras saíram como ácido de sua boca, a raiva e frustração fazendo-a tremer. Kane era perigoso, assim como todos ligados ao Conselho. Não deveria subestimá-lo, mas não conseguia controlar o ódio que sentia ao ver o rosto daquele que traiu seu pai.

Kane hesitou, observando os arredores como se não quisesse que alguém o escutasse. Ao perceber que seus homens estavam ocupados interrogando os clientes, aproximou-se de Clarke e a encarou com uma gravidade quase aterrorizante.

“Sei que a mulher felina lhe entregou algo...Algo que o Conselho está atrás há séculos.”

“Não sei do que está falando.” Clarke respondeu, desafiadora. Kane estava tão perto que ela era capaz de sentir o ar que ele expira. Instintivamente, deu um passo para trás, suas costas encostando na parede gelada do restaurante. Estava encurralada.

Atrás de Kane, sua mãe terminava a conversa com um guarda e ia em sua direção. Kane notou a movimentação e falou de maneira breve e baixa.

“Não posso fazer muito além de lhe alertar. Por conta das testemunhas, eles não farão nada por enquanto…” Seus olhos se fecharam levemente, ameaçadores. A barba bem aparada cheirava a perfume barato e suor. “Se eu fosse você, teria cuidado. Sua família já tem um certo...Histórico. Não iria querer que algo acontecesse com o que resta dela, certo?”

“Bom, já foi passado o susto.” Abby apareceu, limpando as mãos no avental e aparentando estar exausta. O Chefe da Guarda se afastou da garota, com um sorriso falso estampado em seu rosto. “Kane, já respondemos tudo que deveríamos. Se puder nos deixar, estamos cansadas e precisamos fechar o restaurante.”

Ele abriu a boca como se fosse dizer algo, mas a fecha quase imediatamente, apenas acenando com a cabeça e se dirigindo à porta, chamando seus guardas com um gesto de mãos. Com uma última olhada para trás, piscou para Clarke, saindo porta a fora.

“Você está bem?” Abby perguntou à filha, que encarava a porta como se pudesse queimá-la com os olhos.

“Sim, só… Cansada.”

“Claro.” A mãe respondeu, quase ríspida. Encarou Clarke com um misto de irritação e preocupação. “Eu não sei o que fazer com você Clarke...A qualquer sinal de perigo você corre de encontro a ele.”

Clarke não respondeu a mãe, ainda processando a conversa com Kane. A ameaça era clara. Ela tinha que fazer algo antes que fizessem mal à sua mãe.

Ela se retirou para seu quarto antes de receber qualquer sermão de Abby a respeito de imprudência e coisas perigosas. “A curiosidade sempre mata o gato, Clarke.” A frase nunca foi tão verdadeira. Tirou a orbe do assoalho em seu quarto e a examinou. Era um objeto pequeno, dourado e desgastado, como se alguém tivesse passado a mão nele muitas vezes. Marcações estranhas cobriam sua superfície, como uma rede.

Observou a pequena orbe na palma de sua mão, sentindo os diminutos detalhes intrínsecos na superfície dourada que formavam constelações nas pontas de seus dedos.

Algo que o Conselho procurava há séculos...

Ouviu uma batida em sua porta e escondeu o objeto embaixo de seu travesseiro.

“Ei, somos nós.” Disse Monty do outro lado da porta. “Podemos entrar? Trouxemos sopa.”

“Claro.” Ela respondeu, sentando-se em sua cama pequena do quarto que tinha no andar de cima do restaurante, onde ela e sua mãe moravam.

“O que aconteceu lá fora?” Jasper perguntou, sentando-se ao lado dela na cama e encostando-se na parede. Tirou seus óculos de proteção gigantes da cabeça e brincou com eles. “Eu ouvi uma explosão que não veio da nossa cozinha, e de repente você tava lá fora passando a mão num gato.”

Monty revirou os olhos e assoprou a tigela de sopa fumegante, entregando uma para Clarke e outra pro amigo.

“O que ele quis perguntar é se você está bem. Ela te disse alguma coisa?”

Clarke se remexeu desconfortável, olhando atenta para a porta para ter certeza que sua mãe não escutaria.

“Eu não sei muito bem o que ela disse.” Respondeu, e comeu uma colherada da sopa. “Era em trigedasleng.”

Jasper levantou a cabeça rapidamente.

“Língua de grounder? Tem certeza?”

Clarke afirmou com a cabeça, os cabelos loiros e curtos balançando sobre seu ombro.

“Meu trigedasleng é arranhado, mas pelo o que eu pude captar, tinha algo relacionado a um comandante. Ela disse Heda.”

Monty se remexeu desconfortável em seu lugar no chão.

“Você acha que a guarda vai voltar aqui?”

Jasper sugou a sopa com um barulho alto, fazendo os outros dois o encararem.

“Eu acho que não.” Disse de boca cheia, e Clarke ri quando Monty faz uma careta de nojo. “Não tem nada aqui que eles queiram.”

Clarke não revelou a conversa que teve com Kane para os amigos. A sensação de gravidade não a deixava, e sabia que se falasse para Jasper e Monty que ela estava em perigo, eles iriam fazer o possível para ajudá-la, até mesmo se colocar em apuros.

Mas sabia que para desvendar o mistério do objeto ela iria precisar da inteligência dos dois, então resolveu falar por partes.

“Tem isso.” Clarke tirou a orbe debaixo do travesseiro. Os dois arregalaram os olhos e se encararam surpresos.

“Mas é só uma lenda...” disse Jasper para o amigo asiático.

Dizem ser só uma lenda... toda história de dormir tem um pouco de verdade.”

“Não pode ser verdade.” Clarke pronuncia, cética. “É só uma história de crianças. Não pode de fato haver um planeta de tesouros.”

“Clarke, posso ver?”

Ela entregou a pequena e maciça bola para Monty, que a examinou de perto com os olhos brilhando de excitação. Ele revirava o objeto entre os dedos, apertando entre os relevos a fim de encontrar alguma pista sobre o que era aquilo.

“Tem uma abertura desse lado que parece caber algum tipo de chave.”

Jasper apalpa o objeto, passando seus dedos longos e finos pela orbe dourada.

“Eureka!” Exclamou o garoto alto e magro, que havia encontrado uma espécie de botão na esfera. De dentro da orbe, saíram luzes espetaculares, parecidas com um holograma galáctico, tons de azul e prateado iluminando todo o quarto. As luzes formavam linhas e símbolos complexos, como um emaranhado de teias de aranha cintilantes.

“Maneiro!” Monty exclamou, e quase deixou seu prato de sopa cair no chão, enquanto Jasper e Clarke observavam encantados.

“Isso é...”

“O mapa.” Sussurrou Clarke. “O mapa de Thanatos.”

Um barulho é escutado nas escadas em direção ao quarto, e Clarke logo pegou a orbe e a fechou, a jogando embaixo do travesseiro.

Abby apareceu na porta do quarto, parecendo cansada e preocupada.

“Está tudo bem por aqui?”

“Sim, mãe. Só estamos comendo. Por que não vai descansar um pouco?”

Abby suspirou, segurando o pingente de seu colar entre os dedos e o girando, mania que pegou de Clarke, e assente, murmurando um “boa noite” e caminhando em direção ao seu quarto, a porta fechando logo após.

“E agora, o que fazemos?” Jasper perguntou, olhando para Clarke como se esperasse instruções.

Skaiheda. Comandante dos Céus.”

Ao ouvir a tradução, Monty e Jasper arregalam os olhos. O nome era tão poderoso, que mesmo o sussurrando fazia com que os pelos da nuca eriçassem.

“É o seguinte, meninos.” Clarke disse, com determinação e ferocidade nos olhos. “Nós vamos encontrar meu pai.”

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ARK STATION, DISTRITO 2145-GF , RESTAURANTE THE DROPSHIP

DIA SEGUINTE AO ACIDENTE DA NAVE

“Nós procuramos por todo lugar, Bellamy.” Raven proclamou, exausta, sentando-se de vez na cadeira do restaurante e massageando o local onde parte de sua perna se encontra com a prótese de aço. Por mais que estivesse acostumada a andar por aí com uma perna mecânica, o aparelho ainda deixava sua pele e músculos doloridos. Emori a enviou um olhar simpático, sabendo bem como era o desconforto de um membro prostético.“Nós precisamos de uma pausa. Comer algo decente uma vez na vida.”

“Eu descanso quando O. estiver do meu lado.” Respondeu o Capitão, alto e rabugento, os ombros caídos em derrota e olheiras sobressalentes sob seus olhos. Sentia como se tivesse envelhecido cem anos.

“Bellamy, nós também queremos muito encontrá-la. Você sabe que não é o único que se importa com sua irmã aqui.” Disse Miller do seu lado. “Mas não irá achá-la se morrer de fome e cansaço. Fizemos nossa parte hoje, amanhã continuaremos a busca. Eu mais do que ninguém sei como ele consegue se esconder. O colar pode estar aqui, mas ele não...”

Ao falar aquilo, Bellamy notou o olhar pesaroso de Miller. Ele não queria colocar o amigo naquela posição, sabendo que poderia colocar o único cara que Miller gostou de verdade em perigo. Ainda mais após Monty ter fugido e ter enviado uma mensagem a Miller, dizendo não poder contatá-lo mais por questões de segurança.

“Me desculpe.” Disse ao amigo. “Sei que não queria estar nessa posição.”

“Não vou mentir que no fundo gostaria de encontrá-lo. Ao menos ia saber se ele está feliz com sua decisão…”

O restaurante parecia seguro o suficiente, num distrito longe e pouco povoado. Sua localização, literalmente à beira de um precipício, parecia perfeita para uma pausa discreta. Apesar do lugar longe e deserto, o ambiente era acolhedor e confortável, embora as cortinas xadrez não combinassem nada com a decoração. O restaurante não estava muito cheio, com algumas mesas sobrando, e por sorte não chamaram muita atenção ao adentrar o local, Bellamy fazendo o possível para cobrir suas tatuagens com o sobretudo.

Os cinco então escolheram o que iriam comer e Bellamy, sendo o líder, ficou encarregado de chamar a garçonete loira e bonita e fazer os pedidos (não que ele tivesse insistido para ter uma desculpa de falar com ela, isso jamais). Ela parecia se destacar entre os copos meio vazios e barris de cerveja, suas mechas de cabelo rosa balançando enquanto ela conversava com uma moça de duas cabeças.

A garota de seios avantajados e olhos azuis avistou a mão levantada de Bellamy, e acenou com a cabeça, terminando de anotar o pedido da mesa ao lado e se direcionando à que se sentava a tripulação do Apollo. Ela caminhava como se o movimento fosse automático e sua cabeça estivesse em outro lugar.

“Boa noite, meu nome é Clarke e estarei servindo vocês. Já escolheram o que vão pedir?” disse numa voz monótona, cansada de repetir aquilo mil vezes ao dia nos últimos dois anos. Ela parecia um tanto aborrecida e a maneira que mordia o lábio inferior e levantava as sobrancelhas irritou Bellamy sem motivo aparente. Ele notou que ela tinha uma pinta acima do lábio superior que era muito atraente.

A garçonete fez um ruído com a garganta para chamar atenção e Bellamy se assustou, percebendo que estava a encarando esse tempo todo sem dar uma resposta. Raven soltou uma risadinha disfarçada de tosse e Miller sorriu de lado.

“Alguém pelo visto não gosta de servir mesas.” Bellamy falou, ao invés de fazer os pedidos, e a loira chamada Clarke semicerrou os olhos estonteantes em sua direção. Ele viu Murphy enfiar o rosto em suas mãos pela sua visão periférica e o ouviu murmurar algo sobre só querer uma alimentação de qualidade.

“Obrigada, detetive.” Respondeu, ácida, colocando a mão na cintura e sacudindo o bloquinho de anotações. Ela o encara com interesse, como se estivesse decidindo o destino de sua vida baseado nas próximas palavras.

Então diz:

“O pedido.”

Raven abriu a boca para falar, mas Bellamy a interrompeu.

“Sabe, se está tão infeliz nesse lugar, talvez devesse ir embora ao invés de tratar seus clientes de maneira tão rude.” Ele não sabia por que insistia em conversar com a garçonete. Talvez fosse a necessidade de tirar sua cabeça de Octavia, ou talvez ele apenas tivesse gostado do cabelo colorido.

Murphy, Raven, Emori e Miller suspiraram em uníssono, acostumados com os flertes do Capitão.

Clarke, por outro lado, parecia prestes a enfiar seu bloquinho de anotações goela abaixo do homem alto que insistiu em irritá-la.

“Talvez você devesse escolher roupas melhores para tentar se misturar, pirata.” Ela sussurrou a última palavra com ferocidade, apontando discretamente para os brincos nas orelhas dele e a tatuagem na base do pescoço que não estava completamente coberta pelo casaco, fazendo Bellamy arquear as sobrancelhas surpreso e soltar um sorriso de escárnio.

Aponta então para a placa na porta do estabelecimento, escrito com evidência PROIBIDA A ENTRADA DE PIRATAS.

“Você também não parece se misturar muito bem, princesa.” Disse ele, fazendo parecer um insulto, quando na verdade, no fundo, o que quis dizer era um elogio. “E pirata é um termo um pouco pejorativo. Eu prefiro transportador de cargas ocultas.”

Ela pareceu ponderar a resposta, franzindo os lábios finos de maneira adorável.

“Certo...Agora o pedido.”

Sentindo-se revigorado, Bellamy a observou interessado, e os dois trocaram um olhar evidente. Ele esperava que ela fizesse um escândalo e os expulsasse do restaurante, mas não parecia muito preocupada com a presença deles ali. Os olhos azuis misturados com cinza de Clarke pareciam curiosos nos castanhos escuros de Bellamy.

“Três chuvas de cometa e dois x-cosmos, por favor.” Ele disse finalmente, e ela pareceu se sobressaltar, quase derrubando o bloco de anotações.

“Clarke.” Uma mulher de aparência cansada e irritada apareceu ao lado da garota. “Pare de paquerar os clientes e anote os pedidos.” Acenou para a tripulação com a cabeça e seguiu pelo estabelecimento, não parecendo se importar com o revirar de olhos da loira.

“Com licença.” Clarke murmurou, um pouco corada. “Já trago a comida de vocês.” E vai em direção ao balcão que divide o bar com a cozinha, entregando os pedidos a um garoto asiático de olhos bondosos.

Bellamy está ocupado demais observando a garota bonita, e só tira os olhos dela quando Miller cutuca seu braço.

“Bellamy!” ele disse, e encarou o amigo sério. “O cozinheiro.”

“Sim, o que tem ele?”

“É ele. Monty.”

Monty sorria com algo que Clarke falava, brincando com uma faca em sua mão enquanto um garoto de óculos grandes na cabeça fazia uma expressão emburrada. A esperança pareceu crescer no peito de Bellamy e ele respirou fundo, encarando sua tripulação na mesa. Observavam o Capitão com expectativa, esperando ordens.

“Vamos esperar o fim do expediente.” Diz ele. “Então conversamos com ele.”

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Clarke estava exausta e apreensiva. Não havia dormido direito na noite passada, pensando em tudo o que havia combinado com os meninos e os detalhes do que deveriam fazer. Naquele dia, depois que sua mãe fechasse o The Dropship, ela, Monty e Jasper sairíam pelos fundos de mochilas feitas, rumo à estação interespacial a fim de encontrar uma nave que a levasse para o mais perto do Cinturão de Apollo possível. Já havia escrito uma carta de instruções à mãe, e arranjado um local seguro com um amigo da família. Wells ficou feliz em ajudar, embora tivesse expressado veemente sua preocupação com a aventura de Clarke.

Assim, após passar o dia inteiro irrequieta e ansiosa, a última coisa que precisava eram clientes extremamente arrogantes, atraentes e piratas enchendo sua paciência. O homem de cabelos cacheados que caíam nos olhos, alto e forte, voz grossa e olhar duro havia chamado sua atenção desde que pisou no restaurante.

A pequena conversa – ela não sabia exatamente se aquilo foi uma conversa ou apenas flerte – só havia piorado a situação, fazendo-a olhar para a mesa onde ele se encontrava de maneira curiosa. Ele havia adiado o pedido, alegando não estar com tanta fome no momento, pedindo a ela que segurasse o quanto possível a comida.

A solicitação a fez ficar inquieta, e por cima de tudo, desconfiada. O que uma tripulação de piratas fazia disfarçada naquela área? Se sua mãe descobrisse...

Uma risada vinda da mesa do dito cujo a despertou de seu transe, que consistia em encarar a tampa do balcão do bar, e a fez olhar na direção do dono, que, para a sua surpresa, vinha do Capitão Rabugento.

Seus dentes eram brancos e retos, e ele jogava a cabeça para trás ao rir, fazendo com que seu pescoço ficasse mais amostra. Antes que pudesse se dar conta, ela se dirigiu à mesa, bloquinho em mãos.

“Adiar a comida não é tão engraçado quanto parece.” Declarou ao encostar o quadril na mesa, arqueando uma sobrancelha. Eu não acredito que estou flertando com um pirata.

Ele pareceu surpreso e então embaraçado, coçando a nuca e sorrindo um pouco de lado. Se a pele dele não fosse naquele tom bronzeado, ela poderia jurar que ele estava corando.

“Seu pedido? Estamos prestes a fechar.”

Clarke percebeu uma troca de olhares entre o Capitão e o homem de touca sentado ao seu lado.

“Certo. Pode trazer agora, obrigado.” Ele respondeu com um aceno de cabeça, parecendo apreensivo. Clarke não se mexeu. De repente ela teve uma ideia muito perigosa, mas que podia dar certo. “Posso te ajudar, princesa?”

“Na verdade, pode.” Disse com o coração acelerado. Isso era uma má ideia. “Está precisando de membros na sua tripulação?”

O homem olhou à sua volta, com medo de alguém ter escutado. Raven, Murphy, Emori e Miller se mexeram em suas cadeiras, se preparando para correr. O Capitão fez um gesto com as mãos para acalmá-los.

“Por acaso tenho cara de taxo nave?" Respondeu finalmente, tão baixo que Clarke teve que se aproximar para escutá-lo melhor. “Não somos a porra de um navio de passeios.”

Ela sabia que deveria ficar com medo, mas tudo o que sentiu ao ver o olhar ameaçador e pretensioso dele foi irritação.

“Eu posso te pagar.” Ela disse, levantando o queixo. O resto da tripulação a encarou como se ela fosse maluca.

“O que a faz tão desesperada a ponto de precisar da carona de um corsário? Está escondendo algo?”

“Não estamos todos?”

Os dois se observaram, ponderando. Clarke fitou os olhos castanhos do Capitão, desafiadora, e notiu um leve brilho de divertimento por trás da expressão dura.

“Capitão, não está realmente considerando isso?” Raven disse, encarando a cena com desaprovação.

Bellamy estava prestes a responder algo quando foi interrompido por um Jasper afobado.

“Clarke! Nós temos um problema.” Exclamou, parecendo sem ar. “Na verdade dois problemas.”

Clarke franziu o cenho. Percebeu uma movimentação. Da porta do restaurante, Abby parecia estar prestes a desmaiar, fechando a porta e a trancando atrás de si com as mãos tremendo.

“O que-” Em sua visão periférica, ela viu a mãe caminhar em sua direção, e a tripulação de piratas se levantou, todos apreensivos. Bellamy correu para a janela mais próxima e abriu uma fresta da janela.

“Monty desapareceu.” Jasper falou, desesperado. “Eu procurei por todos os lugares, mas não vi nem vestígio dele.”

“Como- como assim Monty sumiu?” Clarke disse, e sua mãe aperta seu braço, sussurrando, Clarke, vamos embora agora.

Um dos piratas, o homem negro de touca, levantou de supetão e correu em direção a cozinha.

Clarke se desvencilhou de Abby.

“Clarke, por favor...” implorou sua mãe, mas a loira já estava na janela ao lado do Capitão, vendo o que estava causando tanto rebuliço. Duas naves do Conselho aterrissaram ao final do deque, seus motores quase silenciosos devido à alta tecnologia. Clarke encarou o moreno, que parecia branco como um fantasma, e sentiu raiva. Sabia que o motivo principal da vinda do Conselho ao restaurante era ela, mas por um pequeno segundo ela quis acreditar o contrário.

Fervendo em frustração, empurrou com força o peito dele.

“Ei, o que...” Bellamy exclama, surpreso, estabelecendo o equilíbrio. Clarke sentiu uma pontada de orgulho. Por mais que fosse baixa, era uma mulher forte.

“Você os trouxe até aqui!” exclamou, o empurrando mais uma vez. Porém, Bellamy já estava preparado, e absorveu o impacto das mãos de Clarke com o peito, assumindo uma postura que seria ameaçadora e defensiva, não fosse pela ruga de preocupação entre seus olhos. “Você e essa tripulação de PIRATAS!”

“Piratas?!” Jasper e Abby exclamaram ao mesmo tempo, o primeiro com entusiasmo e a segunda com horror. Mas Clarke continuou, como se não tivesse sido interrompida.

“Esse seu ar de superioridade e arrogância, ah... Eu deveria ter visto a encrenca!”

“Ei, eu e minha tripulação não temos nada a ver com isso!” Bellamy disse, ofendido, apontando um dedo para Clarke. Os dois se aproximavam cada vez mais, a tensão palpável, e Clarke jurava que podia contar as sardas contidas no rosto dele. “Pelo menos eu acho...” Ele completou, olhando de soslaio para Murphy, que dá de ombros.

“Saia já do meu restaurante!” Clarke exclamou, tentando o empurrar porta afora, mas não tem força o suficiente. Bellamy segurou seus pulsos para se defender. Seus rostos ficaram tão próximos que ela sentiu o hálito dele em seu rosto - ele havia bebido café.“Saia já antes que explodam o lugar!”

“Ei,pare com isso, princesa! Eu não tenho nada a ver com isso-”

“NÃO ME CHAME DE PRINCESA, PORRA!”

A essa altura, os poucos clientes restantes corriam desesperados porta afora, prevendo a confusão com a presença dos piratas e do Conselho. Abby olhava para Clarke, o terror em seus olhos, e segurou o braço da filha, afastando-a de Bellamy, que parecia pronto para esganá-la.

“Filha, por favor, só dessa vez me escute! Vamos embora daqui já!”

A loira encarou a mãe, receosa. Abby não imaginava o que estava por vir. Ela pensava que o Conselho estava atrás dos piratas, e não do mapa que estava sob o assoalho de seu quarto, escondendo o perigoso caminho que sua vida estava prestes a tomar. Segurou as mãos de sua mãe forte e fitou seus olhos, tão diferentes do seu, castanhos no azul. Tentou expressar o quanto sentia, e ao mesmo tempo pediu compreensão. A culpa era de Clarke, como sempre.

“Desculpe, mãe.” disse , com um nó na garganta. Por sua visão periférica percebeu o Capitão dos piratas sacar sua arma a laser, apontando-a para a porta. “Eu precisei fazer isso.”

“Clarke, do que está falando?! O que você fez?” Abby a interrogou, lágrimas desesperadas ameaçando derramar por seu rosto. A trança feita no início do dia estava em frangalhos, os fios escapando por todos os lados, e por um segundo ela pareceu tão, tão jovem. Jovem e com medo.

A porta se abriu subitamente, o barulho fazendo Clarke pular. Segurou a mão de Abby mais forte ainda. Sua mãe estava paralisada ao seu lado, como se não acreditasse que aquilo estava acontecendo.

Kane entrou pela porta, seu uniforme branco refletindo as luzes amareladas do recinto, destacando-se da pior forma possível. Dois guardas o acompanharam, apontando seus blasters.

Clarke percebeu que quase toda tripulação de piratas não se encontrava mais ali, restando apenas o Capitão e a garota de braço mecânico. Notou também, com grande desespero, que Jasper havia desaparecido. Sentiu seu coração querer escapar de sua boca, mas manteve-se firme, com o corpo em frente ao da mãe em uma tentativa imperfeita de protegê-la.

Kane contemplou Clarke, quase divertido, com um certo brilho no olhar. Ele se portava como alguém prestes a conseguir uma grande promoção no trabalho, orgulhoso de si. Tamanha era sua euforia ao fitar Clarke e Abby, que demorou alguns segundos para notar os piratas que apontavam armas para ele e seus guardas.

“Ora, ora…” Disse o chefe da guarda, surpreso. “Pelo visto temos companhia… Piratas, Clarke? Eu sabia que seu restaurantes era mal frequentado, mas não esperava por isso.”

Os piratas apontavam suas respectivas armas para eles - o Capitão, um blaster de aparência gasta, mas funcional e a garota, seu próprio braço mecânico, que continha nele embutida uma mira de laser.

“Diga logo o que quer, Kane. Já passamos do horário de fechar.” Clarke disse. Ela tentou elaborar um plano de fuga, mas sua mente só pensava em uma coisa: proteger sua mãe. Lembrou da pistola escondida sob o balcão do bar, mas o movimento era arriscado demais. Para chegar até lá, ela teria que andar pelo menos três metros sem chamar a atenção, e os guardas observavam cada movimento.

Kane riu de forma sarcástica.

“Destemida como seu pai… Mas tem um defeito. Muito grosseira.” Enquanto ele falava, caminhava lentamente em direção às duas mulheres, que recuaram até esbarrar em uma mesa. Ironicamente, a mesa que os piratas estavam sentados. Novamente, Kane havia a encurralado, e dessa vez não havia testemunhas o suficiente para impedi-lo de obter o que queria.

“Agora.” Disse o membro do Conselho, olhando de soslaio para os piratas, que mantinham suas posições sem mexer um músculo. “Imaginem minha felicidade ao vir coletar um prêmio, e ganhar um brinde! Capitão Bellamy Blake, não sabe o prazer que será finalmente capturar você e sua tripulação de merda.”

Clarke ficou surpresa ao ouvir o nome. Então esse era o famoso Bellamy Blake? O cara que havia matado o pai de seu melhor amigo e um dos piratas mais procurados pelo Conselho, comendo em seu restaurante. Que coincidência infeliz.

“Não terá prazer nenhum para você essa noite, Kane.” Respondeu o Capitão, sua voz grossa e poderosa reverberando pelo ambiente tenso e silencioso. Ele poderia ser arrogante e grosseiro, mas sua voz era compatível com a de um grande comandante. “Não conseguiu me capturar tantas vezes… Não será a primeira.”

Kane cerrou os olhos, irritado. Com uma calma quase ponderada, ele sacou seu blaster e mirou em meio aos olhos de Clarke. O sangue dela congelou.

“Não!” Abby gritou, desesperada, entrando na frente da filha. “Faça o que tem que fazer, mas deixe minha filha em paz. Já não fez o suficiente para nossa família?!”

“Jake fez isso com sua família, Abby, não eu. Seu marido teve ideias mirabolantes demais, não pensou nas consequências. Mais uma coisa que Clarke puxou dele.”

“Deixe ela ir.” Clarke diz, sua voz fria. “Eu faço o que quiser, só a deixe ir.”

“Vamos fazer o seguinte, Griffin.” Ele puxou sua mãe com força pelo braço, prendendo-a pelo pescoço e apontando a arma na sua cabeça. Clarke gritou, desesperada. “Você pega o que eu quero, e eu não mato a sua mãe.”

Ela sentiu toda coragem esvair de seu corpo. Pensou em Monty e Jasper, que estavam desaparecidos, e os outros piratas. Será que algum deles viria a seu resgate? Talvez a tripulação de Blake viesse salvar seu Capitão. Pensou então na arma que seu pai mantinha escondido no quarto dela. Talvez conseguisse enganar Kane o suficiente para pegá-la e atirar nele.

“O que está esperando, Griffin?! PEGUE A PORRA DO MAPA AGORA!” O capitão da guarda finalmente perdeu sua paciência. Sua mão livre apertou o pescoço de Abby, que gritou de dor.

“Ok!” Clarke exclamou. “Eu vou pegar, por favor, só não machuque ela.” Ela apontou para a escada a aproximadamente seis metros à sua direita. “É por ali.”

Kane soltou Abby, empurrando-a em direção à filha, que a pegou nos braços, cambaleante. Apontou o blaster para as duas.

“Ande logo, não tenho a noite inteira.”

Clarke deu uma última olhada para Blake e sua companheira, que não tiravam os olhos dos guardas por nada. Parte dela ficou aliviada pela presença do pirata naquele momento. Segurando a mão de Abby com força, as duas subiram as escadas, Kane em seu encalço e a mira da arma sob suas cabeças.

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Monty não esperava ver seu ex-namorado tão cedo.

Ele trabalhava na The Dropship justamente por ser um local pouco acessível e pouco conhecido. Era perfeito para levar uma vida quieta, sem dramas e preocupações. Sem o Conselho tentando matá-lo. Dezoito meses trabalhando com Clarke e Abby, e nunca foi reconhecido! Mas não, Nathan Miller tinha que aparecer com toda sua glória e gorro na cabeça, pronto para acabar com seu disfarce e com o resto de dignidade que lhe restava.

Para falar a verdade, Monty não estava com medo de ser descoberto - afinal, Miller era um pirata, era a última pessoa que teria contato com alguém do Conselho. Além disso, tinha plena certeza que ele não o entregaria. Ele estava envergonhado.

Geralmente Monty ficava na cozinha, e não prestava muita atenção nos clientes do restaurante. Já havia queimado comida o suficiente por ser distraído e não queria levar broncas de Abby e ser despedido. Então foi realmente inoportuno quando ouviu uma risada alta, que lhe chamou a atenção - uma voz forte, robusta - e levantou os olhos. Viu Clarke flertando com o dono da risada (algo que já não era típico de ser ver) e, ao lado do moreno alto de riso estrondoso, ninguém mais, ninguém menos que seu ex. Sua primeira reação foi abaixar-se para não ser visto.

O que diabos ele estava fazendo ali? De todos os lugares da galáxia, sua tripulação tinha que escolher justo esse restaurante para fazer um lanchinho? Será que Miller havia visto Monty? E se ele já o viu e não quis falar com ele?

A mente do garoto asiático deu voltas. Se Miller estava ali, devia ser alguma coincidência. Do jeito que as coisas terminaram entre os dois, era mais do que compreensível ele não querer procurá-lo (e nem deveria, para sua própria segurança).

Vendo que todos os pedidos estavam prontos e o expediente estava perto de terminar, Monty fez a coisa que, para ele, parecia mais sensata: Fugiu.

Aproveitou que Jasper havia ido ao banheiro e se esgueirou pelo balcão da cozinha, abaixado para que ninguém conseguisse vê-lo. Com cuidado, abriu a porta e se dirigiu cautelosamente para a escada,que ficava a menos de dois metros de distância. Por sorte, ninguém estava prestando muita atenção nele - Clarke e o homem pareciam estar tendo uma discussão, e os olhos dos poucos clientes restantes estavam neles.

Se escondeu no “sótão” do restaurante. Como o Dropship era uma antiga nave, havia cômodos em lugares não convencionais, e esse ficava justamente em cima da porta dos fundos do restaurante - um espaço apertado que parecia um dormitório, com uma espécie de escotilha que dava pra ver do lado de fora. Monty sempre ia ali quando se sentia sufocado. A paisagem era, de uma maneira estranha, confortante. O precipício que vinha poucos metros depois da antiga nave, por incrível que pareça, sempre permaneceu intacto. O escuro abismal combinado às estrelas e nebulosas do céu eram uma visão tão bonita, tão solitária.

Monty suspirou, mirando a escotilha, inquieto. A aventura que seguiria com seus amigos atrás de Jake Griffin parecia perigosa demais, e Miller aparecer ali um dia antes de sua fuga não o trazia sinal de boa sorte. E se Monty o colocasse em perigo mais uma vez?

“Por que é sempre tão difícil te encontrar?” Uma voz falou, o tirando de seus devaneios. Nathan Miller.

Ele parecia diferente - mais velho. Estava mais forte e sua barba estava maior. Os olhos castanhos, porém, permaneciam com o mesmo aspecto leal e digno.

“Hã...Oi.” Monty disse, envergonhado. O moreno havia ficado ainda mais atraente ao longo dos anos, coisa que ele achava ser impossível. “O que faz aqui?”

Miller caminhou lentamente, como se estivesse testando o terreno. Ao ver que Monty não fez objeções, sentou-se de frente a ele, mirando o abismo.

“Cozinheiro, huh?” Disse o pirata. “Um pouco diferente da sua profissão original.”

Monty riu, constrangido. Realmente, existia uma diferença enorme entre hackear computadores e fritar batatas.

“Como sabia que eu estava aqui?”

“Lembra da corrente que eu te dei?” Miller perguntou, já sabendo a resposta. Claro que Monty lembrava. A corrente de metal, gelada, pressionava seu pescoço sempre que se movia.

Monty o encarou, o cenho franzido. Mas haviam se passado anos que tinha lhe dado aquela corrente.

“Por que só agora?” Monty sentiu uma pontada de decepção.

Miller abaixou a cabeça, parecendo envergonhado. A mão direita segurou o colar que ainda estava em volta do seu pescoço.

“Você foi bem claro sobre nós… Eu só queria saber que estava vivo. O rastreador no seu colar conta seus sinais vitais também. Ver que estava seguro e que seu coração continuava batendo era o suficiente.”

O coração de Monty quebrou-se. A culpa era dele, claro. Não deveria ter terminado de maneira tão dura com Miller. Mas imaginou que, se o machucasse o suficiente para que mantivesse a distância, ele estaria seguro.

E então tudo mudou.

Um grito feminino cortou a conversa, fazendo os dois paralisarem. A voz de Abby soando desesperada ao longe despertou Monty das memórias dolorosas e levantou de supetão.

“O que está acontecendo?!”

“Eu não sei, só vi uma comoção lá embaixo e o garoto de óculos disse que você havia desaparecido…”

“O mapa.” Monty sussurrou, e saiu correndo porta afora, Miller logo atrás. Correu em direção ao quarto de Clarke, mas esbarrou em alguém no meio do corredor.

Um homem de cabelos escuros e nariz grande o olhou feio, fazendo-o cambalear para trás, vacilante. Logo atrás do homem, uma mulher bonita de traços latinos e rabo de cavalo o encarava e levantava uma arma, apontando para sua cabeça.

“Ei, ei! Ele está comigo!” Miller gritou, entrando na frente de Monty. A mulher logo abaixa a arma.

“Então esse é o seu cara do computador?” Murphy zombou, como se a visão de Monty encolhido atrás de Miller o divertisse. “Fofo.”

“Não temos tempo para gracinhas, Murphy.” Disse Raven, olhando sob seu ombro em direção a escada. “O Conselho está aqui. Não sei se Kane estava atrás do Capitão, mas a coisa vai ficar feia.”

O tom de urgência da mulher faz Monty perceber o tamanho da encrenca. Se o Conselho sabia que o mapa estava no restaurante, Clarke estava em perigo. Jasper poderia ter se escondido, já que estava no banheiro, o que os dava uma vantagem.

“Eu sei de uma saída.”

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Uma dezena de degraus para subir e alguns poucos metros. Esse era o curto percurso que Clarke e Abby tinham que fazer com uma arma apontada para suas cabeças.

A mão da mãe apertava a sua com tanta força que a loira já não tinha circulação. O metal das escadas, soldados porcamente à parede da antiga nave, pareciam mais frios do que lembrava ao segurá-los. Kane respirava calmamente atrás dela, mas a atmosfera era de impaciência - a antecipação em pôr as mãos no mapa era palpável.

Nesse pequeno espaço de tempo que percorreu pelo corredor até seu quarto, Clarke rezou para os céus, torcendo para que seu plano funcionasse. Talvez o Capitão Blake conseguisse se livrar dos guardas com facilidade, mas ela não queria apoiar sua vida num talvez. Tinha que fazer algo para salvar sua mãe e evitar que o mapa caísse nas mãos do Conselho. Se a lenda fosse realmente verdadeira, e o planeta tivesse um tesouro, não gostaria nem de imaginar o que Mt. Weather iria fazer com ele.

Olhou para trás brevemente, observando Kane. Sua expressão era sôfrega, como se não pudesse esperar mais para colocar suas mãos no mapa, os olhos fixos em Clarke com antecipação.

“O que está olhando?!” Gritou, empurrando as duas para dentro do aposento. “Ande logo!”

O quarto não era muito grande, com apenas uma cama de solteiro encostada na parede direita, um armário do lado oposto e uma grande janela de vidro que cobria quase toda a extensão da parede oposta à porta. O tamanho era ideal para uma instalação antiga de uma nave espacial - cabiam mais de três pessoas em pé no cômodo, sem muito aperto.

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Clarke hesitou. Kane estava de frente para ela e sua mãe, ainda apontando a arma. Abby segurando forte a mãe da filha, parecia prestes a entrar em um colapso nervoso, seu corpo pequeno e magro tremendo e os olhos praticamente saltando da órbita.

“Pegue logo o mapa, Griffin, antes que eu perca a paciência e estoure a cabeça da sua mãezinha.”

A ameaça funcionou com êxito. Sem pensar muito, Clarke abriu a porta do armário, pronta para pegar a arma. Ao invés disso, segurou uma mão.

Tudo aconteceu muito rápido.

De dentro do guarda roupa, um homem alto e negro saiu, pulando em cima de Kane, os dois se engalfinhando no chão. A mão de Clarke, ela percebeu logo depois, segurava a de Monty.

“O mapa, rápido!” Disse o amigo, que logo saiu do armário, segurando a arma de Jake entre suas mãos e mirando no embaraçado de membros que era Kane e Miller no chão.

Clarke agachou no assoalho perto da janela, e abriu um pedaço do chão com um pouco de força, a placa de metal antiga desencaixando e revelando o pequeno objeto dourado. Segurou a orbe em sua mão tão forte que seus dedos doíam.

Os barulhos de luta ainda continuavam, percebeu, e Monty ainda segurava a arma, com medo de atirar e acertar a pessoa errada. O homem de gorro na cabeça - um dos piratas - conseguiu ficar por cima, imobilizando Kane, socando seu rosto com força. O blaster que Kane usava escorregou por suas mãos, tamanha força e quantidade de golpes que Miller proferia.

Clarke segurou a arma, apontando-a para o capitão da guarda, que jazia no chão ensanguentado. Seu uniforme, antes branco e imaculado, estava manchado de vermelho, como uma pintura abstrata violenta.

“Eu devia matá-lo, você sabe.” ela diz finalmente, ignorando o olhar apavorado que sua mãe lhe lançou.

Kane sorriu, os dentes antes brancos e reto, quebrados e sanguinolentos.

“Faça isso.” disse, respirando com dificuldade. “Vai ver que é mais parecida com seu pai do que imaginava.”

Ao fundo, ela ouviu tiros sendo disparados e gritos proferidos. O pirata de gorro correu porta afora, em direção ao barulho. Monty a encarou com os olhos preocupados.

“Clarke, nós temos que ir....”

Suas mãos tremiam, a arma parecia extremamente pesada. A mira estava certa - bem na cabeça - e parecia tão, tão fácil simplesmente apertar o gatilho.

“CLARKE, VAMOS!” Outra voz a chamou. Ela reconheceu Jasper, que está parado na porta e trazia três mochilas em suas mãos - aquelas que haviam arrumado um dia antes para embarcar na maior aventura de suas vidas.

Kane continuava encarando, dessa vez sem sorrir. Parecia quase amedrontado pela situação - alguns jovens e uma tripulação de piratas haviam estragado seu plano. Se não morresse ali, o Conselho trataria de fazê-lo. Pensou em apertar o gatilho. A raiva do Conselho e tudo que havia acontecido com seu pai queimou em seu peito, sua visão cega pelo rancor. Ela queria muito atirar, mas será que suas costas aguentariam o peso de tirar uma vida?

“Princesa.” Uma voz grave a faz desviar o olhar de Kane. Capitão Blake, com a sobrancelha sangrando e a respiração ofegante, a observava com urgência. Uma breve sensação de alívio tomou seu peito. Se ele estava ali, os guardas deveriam ter sido dominados. “Sua carruagem a espera” diz sarcástico.

E então ela correu.

Seguindo os passos de Monty, Jasper, Blake e o resto de sua tripulação, com sua mãe em seu encalço, ela disparou pelo corredor até uma escada - o esconderijo de Monty.

Ao fundo, escutaram gritos - a voz de Kane provavelmente chamou os guardas que haviam ficado nas naves do Conselho. Um barulho diferente irrompeu pelo local, um ruído estridente de propulsores se aquecendo.

“Tem alguma coisa errada!” Blake gritou, parando na porta do sótão. Todos os outros continuaram a corrida, e apenas ela e o Capitão ficaram no corredor, atentos. “Não é um timbre comum para motores do Conselho. Parece mais…”

BOOM!

O chão tremeu aos pés de Clarke, a antiga nave e agora restaurante sacudindo sob seus pés, fazendo-a perder o equilíbrio. Sem pensar, apoiou-se na coisa mais próxima de si, percebendo, tarde demais, que essa coisa eram os braços do Capitão Blake - que, curiosamente, segurou sua cintura como se tentasse evitar que ela caísse.

“Estão bombardeando o lugar!” Miller gritou, abrindo a escotilha do sótão. A mulher de braço mecânico, com a ajuda do amigo, subiu pela clarabóia e pulou penhasco abaixo. “Vamos, rápido!”

O ruído iniciou novamente, indicando a chegada de outro bombardeio.

Clarke percebeu que continuava se sustentando em Bellamy e se desvencilhou, corando. Os braços do Capitão eram mais firmes do que ela imaginava.

Bellamy piscou, arteiro.

“Teremos tempo para isso depois, princesa.” Brincou ele, sorrindo, observando com interesse a mão de Clarke fechada em torno da orbe.

Quase todos já haviam pulado pela janela, sobrando apenas eles dois. Clarke olhou pela escotilha. Logo abaixo, à beira do penhasco, um navio à moda antiga, provavelmente dos anos 2400, estava “estacionado”. Em sua proa, a figura de um homem estava entalhada na madeira, com o sol brilhando acima de sua cabeça e um arco e flecha em mãos. No casco do navio dizia Apollo XX.

O Capitão Blake estendeu a mão em um gesto quase cordial - não fosse pela expressão de impaciência em seu rosto.

“Leve seu tempo, não se preocupe.” Exclamou ele com ironia. “Temos o dia inteiro!”

Ela segurou a mão dele - grande e calejada - e a usou como apoio para escalar a claraboia. O navio a esperava cerca de dois metros abaixo, uma espécie de prancha apoiada na parede externa do restaurante simulando um escorregador duvidoso.

Clarke deslizou até o navio, o vento frio da noite cortando sua pele como navalha, o Capitão Blake logo atrás.

A maioria das pessoas estava no convés, esperando ansiosamente. Abby parecia aliviada ao ver a filha, mas seu breve conforto foi interrompido por mais um barulho alto de explosão.

“Acionar escudos hipermétricos!” O Capitão gritou, correndo em direção ao que parecia a cabine de comandos. “Com toda força, preparar para decolar!”.

BOOM!

O navio deu um solavanco, subindo em direção às estrelas, bem a tempo de fugir dos estilhaços da explosão. Pedaços de nave voaram na direção do Apollo, mas os escudos os repeliram com facilidade.

Clarke observou a cena, atônita, com o coração na mão. As chamas agora engoliam o restaurante, devorando o que via por seu caminho. Por ter sido atingida em sua base, a antiga nave escorregou em direção ao penhasco sem fim. The Dropship derramava-se em labaredas e fragmentos de detonação e era engolido pelo grande abismo que era seu quintal.

Ao seu lado, sua mãe chorava silenciosamente, enquanto partiam para o espaço desconhecido, deixando para trás os restos do lugar que chamavam de lar.