Caro Watson,

Apesar de nossos esforços, fomos incapazes de evitar o início da guerra. Não consigo deixar de pensar que meu irmão Mycroft, se ainda estivesse vivo, teria antevisto que o assassinato de Francisco Ferdinando traria as consequências que trouxe, e assim teria alertado a Coroa para tomar as providências adequadas a fim de impedir a insurgência da Alemanha e seus aliados. No entanto, o assunto foi posto em minhas humildes mãos, e minha idade avançada deixou escapar detalhes imprescindíveis. Não, Watson, não se trata de orgulho ferido, mas de algo concreto e factível: eu não fui capaz de ver o perigo em sua totalidade, e por causa disso o mundo pagará caro. Mesmo assim, isso não seria o suficiente para lhe enviar uma carta deste tipo. O ponto, caro Watson, é que eu já vi isso acontecer antes, em escala menor. Por inexperiência e excesso de confiança, meu mundo foi ameaçado e eu não pude fazer nada. Estou escrevendo porque é muito provável que esta seja minha última chance de fazer os devidos esclarecimentos. Fui convocado para uma das nossas linhas de inteligência no Continente, e devo partir o mais rápido possível, sem data de retorno.

Não pensei que um dia seria obrigado a escrever estas linhas. De minha parte, eu poderia deixar este mundo e levar essa história comigo, sem que ninguém mais dela soubesse. Mas conforme os anos passam e eu vou percebendo quão pouco é o tempo que me resta, urge ainda mais a necessidade de iluminar a meu melhor amigo aquela que, penso eu, seja a sua maior dúvida a respeito de mim. Sim, Watson, chegou a hora de revelar meu segredo mais íntimo, tal como o motivo de nunca ter mencionado este assunto em momento algum de nossa parceria. Caro Watson, esta é a história de Molly Hooper.

Deve se lembrar de Victor Trevor, que mencionei como sendo um dos raros amigos que tive em meu período acadêmico, e responsável pelo primeiro caso com que trabalhei diretamente. Durante os dois anos que nos conhecemos, ele também foi responsável por me apresentar a uma jovem estudante de medicina, com quem eu precisei me consultar sobre ferimentos causados *post-mortem* em uma pesquisa particular que fazia na época. Victor lembrava dela como uma proeminente pesquisadora de anatomia forense, ativa no laboratório de análise de St. Bart`s. Até este instante, minha relação com mulheres era praticamente nula, embora houvesse uma ou outra que despertasse minha curiosidade adolescente, mesmo que não passasse disso. Com Molly, aconteceu algo diferente. Em uma tarde aprazível de primavera, Victor me levou até a saída do campus, onde deveríamos nos encontrar com sua amiga, ao fim de nossas aulas matutinas. Eu precisava do parecer de alguém entendido no assunto mencionado, e nenhum professor aceitou me ver, então planejava mostrar-lhe algumas imagens de cortes e hematomas em cadáveres, para ver se ela conseguiria identificar quais foram causados por mim no necrotério do hospital e quais foram feitos antes das respectivas mortes. Chegamos na frente do portão e fumamos enquanto esperávamos. Em poucos minutos, Victor anunciou que Molly estava vindo.

Sabe melhor do que ninguém que eu não sou dado a poesias, Watson, e cada vez mais sinto sua falta na hora de fazer descrições do tipo. Mas acredito que estarei sendo minimamente justo ao confessar que a simples visão dela, destacada pelo fraco sol da tarde, com um tímido sorriso que destacava seus olhos vivazes e curiosos, e emoldurada pelos discretos cabelos cor de cobre escuro, trouxe para dentro de mim uma paz de espírito como nunca mais senti de novo até hoje. Com a segurança de uma dama, mas ainda com a delicadeza de uma menina, cumprimentou-nos a ambos e manifestou interesse na explicação que Victor havia feito sobre meu experimento. Sua voz doce e melodiosa me deixou momentaneamente aéreo, mas consegui voltar a mim e parecer tão sério quanto possível na explanação do meu pedido. Ao examinar as fotografias, ela passou por uma transformação quase completa: sua expressão tornou-se séria e compenetrada, como se apenas ela existisse com seus próprios pensamentos. De alguma forma, essa imagem tornava-a ainda mais atraente. Tenho quase certeza de que Victor percebeu as mudanças que eu mesmo sofria naquele instante, mas teve a bondade de nunca manifestar qualquer reação ou comentário. Por fim, Molly apresentou os resultados de sua análise com uma eloquência admirável e uma certeza que não admitia contestação. Se já não fosse o suficiente tudo o que eu já vira antes, essa demonstração de sapiência fez com que eu me sentisse ainda mais encantado por aquela jovem. De aproximadamente 25 imagens, errou apenas duas, uma marca impressionante.

Começamos a nos ver, os três, com uma frequência maior depois disso. Victor passou a ser uma companhia menos presente, ao passo que eu e Molly já estávamos um pouco mais próximos. No início, falávamos unicamente de trabalho e estudos, e em pouco tempo compartilhei alguns sonhos e projeções que fazia para o futuro. Mencionei por alto o auxílio que prestei a Victor quando da morte de seu pai e das palavras deste me encorajando a me tornar um detetive por profissão. Molly pareceu se impressionar mais com isso do que com qualquer outro tópico. Ela pediu que eu a ensinasse a praticar seu próprio olho para a detecção de detalhes, e preciso admitir - não por exibicionismo ou por admiração - que ela possuía um talento próprio. Foi, por assim dizer, minha primeira aluna, e sei que teria se desenvolvido muito bem em investigações de campo se sua admiração pessoal não fosse pela química de laboratório.

Tornou-se comum sairmos do campus juntos para tomar café em uma praça próxima, e ela exercitava seu olhar com alguns clientes à nossa volta. Em uma ocasião, conversávamos normalmente quando ela se interrompeu e passou a acompanhar com o canto dos olhos uma jovem de vestido sóbrio esmeralda e óculos escuros de armação grossa que sentou-se próxima de nós. Alguns segundos de observação e Molly se levantou, fazendo sinal para que eu permanecesse onde estava, e foi até ela. Observei com precaução enquanto as duas conversavam, mas confesso que não percebi nada que pudesse ter chamado a atenção de minha companheira. De repente, Molly fez um sinal discreto e a jovem levantou os óculos por um segundo. Ela não notou que eu estava olhando. Por trás das lentes estavam dois olhos vermelhos e inchados de chorar - e o esquerdo inchado devido a um golpe. Com o tempo, eu aprenderia a notar essas coisas em detalhes ainda menores, mas naquela tarde apenas Molly fora capaz de ver. Depois de alguns minutos, Molly deu à jovem um cartão, apertou com firmeza suas duas mãos como que passando confiança e voltou para a nossa mesa. A garota foi embora, na direção onde eu sabia que ficava o prédio principal da Scotland Yard. Molly disse que o cartão que lhe dera indicava o Inspetor Marcus Kenrith, que ocasionalmente aparecia no St. Bart`s para pedir e acompanhar perícias e autópsias. Senti-me orgulhoso dela, Watson. Não por ter aprendido e aplicado meu método mellhor do que eu mesmo, mas por ter entendido o quanto essa habilidade poderia ajudar em sua própria profissão para fazer justiça e ajudar as pessoas. Ninguém faz milagres melhor do que um anjo, e era assim que eu via Molly Hooper.

Um dia, ela apareceu no campus e disse que tinha sido promovida a chefe de operações no laboratório de análises químicas do St. Bart`s, com permissão especial para acompanhar as autópsias do legista no necrotério. Com isso criou-se uma vaga no mesmo laboratório, e Molly indicou meu nome, mesmo eu sendo de outra área, devido ao meu interesse prático pelo estudo da anatomia e química. A verdade é que, para trabalhar com Molly, eu teria aceitado até a vida circense. Quando comecei no serviço, era ainda um observador, mas Molly me permitia fazer experiências próprias compartilhando resutlados com ela. No meu terceiro ou quarto dia recebemos a visita do Inspetor Kenrith, pedindo análise sobre um corpo não identificado que estava na mesa do legista. Este foi nosso primeiro caso juntos, um pintor de paredes encontrado em um beco, com indícios de latrocínio. Eu e Molly trabalhamos nele por algumas horas e juntos concluímos que o homem fora atingido por um espelho de corpo inteiro e derrubado de uma janela. Com essa informação passada ao Inspetor Kenrith, a Scotland Yard conseguiu localizar o apartamento de onde a vítima tinha sido jogada, e dentro dele os restos do espelho que servira de arma. Esse primeiro resultado positivo nos animou e começamos a demonstrar mais empenho juntos.

Tinhamos um turno estipulado, mas era comum atravessarmos noites inteiras trabalhando. Não raro eu precisava velá-la durante serões em que acabava sendo vencida pelo sono. Talvez lhe soe estranho, Watson, mas eu sabia ser zeloso nessa época. Meu primeiro presente para Molly foi um travesseiro exclusivamente para o trabalho. Talvez o objeto mais contrastante dentro daquele lugar, mas era dela e isso era o que importava. Conforme o tempo passava, criávamos uma cumplicidade e uma intimidade como até então eu nunca havia tido, e foi com certeza o melhor período da minha vida. Eu não poderia mais negar o quanto Molly Hooper mexia comigo.

Até que aconteceu algo que eu julgava impossível: ela me abandonou.

Como deixei claro no início desta missiva, eu não estava em plena capacidade de visualizar os elementos que me diriam o que estava para acontecer, e graças a isso sofri a minha primeira derrota, a pior de todas. Já se completavam quatro meses do início de minha parceria com Molly. O Inspetor Kenrith estava satisfeito com os resultados que conseguíamos, e a taxa de homicídios solucionados cresceu consideravelmente. Nunca íamos a campo, éramos considerados "verdes" neste sentido, mas éramos capazes de orientar qualquer equipe que estivesse em contato com as cenas de crime. Molly recebia todos os créditos, pois era a chefe daquela sala, mas não eram imerecidos, pois muito de meu próprio sucesso era diretamente devido a ela. Minha afeição e admiração tanto por sua beleza quanto por seu intelecto e habilidades me faziam procurá-la diariamente, mesmo quando eu não tinha escala a cumprir no laboratório ou no necrotério. Estava hipnotizado por Molly. Todo o meu mundo era Molly. Tudo o que eu fazia era por Molly.

E ela correspondia, Watson! Nunca me senti tão feliz como no dia em que finalmente confirmei que meus sentimentos por Molly Hooper eram sabidos e correspondidos. Nunca, porém, tive a chance de dizer-lhe de fato o que sentia. Planejei pedir sua mão em uma certa noite, depois do fim de seu turno, quando a esperava nas escadarias do St. Bart`s embaixo de uma fraca chuva que começara a cair. Ela estava particularmente linda nessa noite, Watson, mesmo que lutasse para se esconder sob uma capa cinza que a protegia da água. Eu estava mais nervoso do que de costume. Trazia um pequeno buquê de rosas escondido às minhas costas, uma dica dada pelo Victor. Demorei muito para conseguir começar uma frase, apenas para ser interrompido por um homem que se aproximou lentamente de nós sem que percebêssemos. Ele perguntou se ela era Molly Hooper, analista do hospital que trabalhava para a polícia. Timidamente, ela respondeu que sim, ocasionalmente fazia análises para a Scotland Yard. O homem tirou um revólver do bolso externo do paletó e disse "isso é pelo meu irmão", terminando a frase com três tiros certeiros no peito e no ombro de Molly. Tudo isso demorou pouco menos de um minuto, mas em minha memória sempre parece mais. Entrei em choque durante alguns segundos, e só despertei quando um dos seguranças do hospital me chacoalhou. No chão, Molly sangrava ofegante, e o homem que atirou estava morto perto dos meus pés, o buquê que caíra da minha mão um pouco mais longe. Soube depois que um segurança chegou a ver o revólver sendo levantado, mas infelizmente só conseguiu reagir alguns segundos depois. Um único tiro na cabeça, e aquele homem já não era mais uma ameaça, mesmo que já fosse tarde demais para qualquer coisa.

Me ajoelhei ao lado de Molly e segurei sua cabeça, tentando mantê-la acordada enquanto traziam uma padiola de dentro do prédio. Uma enfermeira já tinha chegado ali e me ajudava a estancar o sangue. Eu meu desespero, só conseguia dizer "não me deixe", repetidas vezes. Com a mão fraca, ela me segurou e disse "eu nunca te abandonarei", em um fiapo de voz e um resto de sorriso. Rapidamente, me removeram dali e levaram Molly para dentro do hospital. Uma hora depois, veio a notícia de que ela não resistira aos ferimentos e morrera.

No fim, Molly Hooper me abandonou.

Na manhã seginte, Kenrith me confirmou que o assassinato de Molly foi uma retaliação a respeito de um homem que tinha sido preso por causa do testemunho dela em tribunal, o que deixou o irmão dele desnorteado. Viu em Molly o foco de sua raiva, e por isso concentrou sua vingança pessoal nela. Talvez eu também acabasse acometido por um senso de vingança, dado à minha juventude, mas mesmo isso era um esforço inútil uma vez que o sujeito já estava morto. Portanto, só restava a mim mesmo para culpar. Se eu estivesse em meu estado natural, eu teria percebido o passo hesitante, enquanto o assassino tentava comparar o rosto da garota à sua frente com aquele que vira no tribunal semanas antes. A protuberância no bolso indicando a presença do revólver. As feições de um rosto marcado por um objetivo hostil. Céus, Watson, eu teria visto alguma coisa!

Enfim, agora isso é dispensável.

Peço que me desculpe agora, Watson, mas quando você publicou minha situação com "a mulher", mostrou ao mudo uma impressão totalmente errada de como eu a via, baseado nas informações que tinha à mão na época. Não posso culpá-lo por isso, mas a verdade é que eu tive que rir de tamanha inocência de sua parte. O motivo de eu querer aquela foto era simplesmente poder estudar suas feições e me atentar para alguma situação de chantagem futura onde sua assinatura ficasse clara, a fim de que eu pudesse lhe devolver a derrota - dessa vez não como vingança, mas como um simples jogo de xadrez. É um prazer ser derrotado por alguém inteligente, e um prazer ainda maior derrotar alguém inteligente. Mas nenhuma mulher no mundo chegou aos pés de Molly Hooper. Ninguém chegou nem perto. Ela foi a primeira e a única em meu coração, e é assim que será lembrada depois que eu me for.

Todas as vezes que eu lhe falei sobre como o amor turva a mente eu falava a sério. Experimentei isso em primeira mão, a bênção e a maldição de ter verdadeiramente amado uma mulher. Nunca mais me arrisquei a algo do tipo. Não apenas seria um insulto à memória de Molly Hooper, mas também poderia causar estragos ainda maiores no meu próprio intelecto, o último grande dom de Deus que mantive comigo até o fim. Homens como eu não nasceram para o amor, Watson. E quando homens como eu tentam desafiar essa realidade - um egoísmo sem tamanho! - o preço se torna cada vez mais alto de se pagar. Ontem, foi Molly. O que será amanhã? Não estou disposto a descobrir.

Tempos difíceis estão vindo, velho amigo. Não é novidade para nós, mas ainda assim é imprevisível. Vou tratar de fazer aquilo que eu ainda puder, mas rezo para que dessa vez eu esteja devidamente preparado. Molly Hooper não se repetirá, Watson. O mundo não merece a dor que eu sofri naquela noite. E se não voltarmos a nos ver, velho amigo, espero que a lembrança que você tem de mim seja aquela que você construiu com suas palavras, e não aquilo que eu mesmo fiz de minha vida.

Seu sincero amigo,

Sherlock Holmes

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