Violet acariciou o rosto adormecido de Hyacinth, distraída. A menina estava prestes a completar um mês. Um mês difícil, que havia passado devagar... Mas havia passado. Após o nascimento dela e dos primeiros dias, cansativos e dolorosos sem Edmund ao seu lado, a vida começava a encontrar seu rumo. Já era possível ouvir o riso das crianças mais novas brincando do lado de fora. Os meninos mais velhos andavam mais quietos do que o normal, mas aos poucos, encontravam seu cotidiano de gracejos e implicâncias. Menos Anthony.

Ainda era difícil para ela ver o filho ocupar o lugar do pai à mesa ou sentar-se atrás da escrivaninha dele. Como se sentisse que isso a incomodava, ele evitava fazer as refeições a mesma hora que eles. Também procurava trabalhar em horários que a mãe ainda estivesse em seu quarto, bem cedo pela manhã ou tarde da noite. Adotara uma rotina quieta e calada. Era carinhoso e atencioso com os irmãos, mas estava diferente do que era, como se não soubesse muito bem qual era o seu lugar ou o seu papel na vida deles. E agora que Violet estava conseguindo submergir do pesadelo que tivera início há quase dois meses é que estava vendo, com clareza, o quanto ele precisava dela. E o quanto ela havia errado com ele, que parecia, cada vez mais, um navio se afastando do porto.

Subitamente, o som de tiros resgatou-a de seus pensamentos. O que estava acontecendo, pelo amor de Deus?

Desceu correndo até o quintal, para deparar-se com Colin praticando tiro com um trio de garrafas velhas.

— Colin Bridgerton! — ralhou. — Não se atreva a apertar esse gatilho novamente.

Colin abaixou a arma, com uma expressão entre travessa e culpada nos olhos verdes.

— Eu estava praticando.

— Sozinho?...

— Com quem mais eu faria isso? Eu ia começar a aprender a atirar nesse verão, mas...

Ele não conseguiu terminar a frase, que provavelmente terminaria em “mas papai morreu antes”.

Violet estendeu a mão.

— Entregue essa arma.

— Mas, mãe...

— Agora. Antes que mate alguém.

Colin obedeceu. Violet espantou-se com o peso. Anthony era capaz de erguê-la e mirar como se ela fosse mais leve do que uma pluma. E faltava muito pouco para Benedict igualar o desempenho do irmão. Seus filhos estavam se tornando homens feitos com muita rapidez. Mais do que ela desejava, porque eles pareciam escorrer por seus dedos como areia.

— Como pegou essa arma?

Violet sabia que Edmund e, por herança, Anthony, era bastante cuidadoso com as armas da casa. Ficavam bem trancadas no escritório e ninguém mais sabia onde ficavam as chaves. Com exceção de Colin, é claro, que, como um duende, parecia capaz de esgueirar-se para dentro de qualquer lugar e fazer desaparecer qualquer coisa.

—Eu descobri onde Anthony guarda as chaves.

— Onde estão seus irmãos, por falar nisso?

— Benedict foi para o lago.

—E Anthony?

— Foi para a casa da tia Billie.

Violet não conseguiu esconder sua surpresa.

— O que ele foi fazer lá?

Colin deu de ombros, despreocupado.

— Não faço ideia. Ele saiu cedo. Posso continuar praticando?

— Nem pensar.

— Como posso ser um cavalheiro desse jeito?

— Prática de tiro, só na companhia do seu... — por um momento, a palavra “pai” flutuou em seus lábios. Mas Violet corrigiu-se a tempo: — ...irmão. Se Anthony não estiver junto, esqueça.

— Anthony não tem feito outra coisa a não ser trabalhar.

— Ele precisa aprender muitas coisas novas antes de ingressar em Oxford — defendeu Violet.

— Ele ainda irá para Oxford?

— É claro que sim! Ele precisa completar a educação dele. E ir para algum lugar onde possa ser como qualquer outro rapaz de dezoito anos. E não mude de assunto. A partir de hoje, prática de tiro, só com seu irmão ao lado!

— Mas a senhora proibiu que Anthony agisse como nosso pai! E foi papai que ensinou Anthony e Benedict a atirar.

— Eu não proibi que... Quer saber, Colin? Arranje alguma coisa melhor para fazer. E entregue na minha mão as chaves do armário das armas. Não é isso que fará de você um cavalheiro.

Colin suspirou, passando as chaves para a mãe, e tomou a direção do lago, disposto a atormentar Benedict. Nada como ter muitos irmãos para exercer essa prática.

Violet levou a arma até o armário e tornou a trancá-lo, guardando as chaves no bolso para entregá-la a Anthony, mais tarde. O que ele havia ido fazer na casa de Billie, afinal?

* * *

Billie abraçou o sobrinho com força e ficou surpresa quando ele retribuiu de forma calorosa. Como a maior parte dos homens, Anthony não era dado a demonstrar seu afeto de maneira efusiva.

— Como estão as coisas? — perguntou a ele, depois de beijá-lo na face. — E a irmãzinha?

A tensão que ele parecia carregar se desfez um pouco. Os cantos da boca chegaram a se erguer em um sorriso.

— Ela é mesmo linda como uma flor. Mas também, berra mais do que um bode selvagem apanhado em uma armadilha de urso.

— É das valentes.

— Muito. Uma força da natureza.

— E sua mãe?

O rosto dele ganhou uma sombra.

— Ela está bem. Tanto quanto poderia estar depois de tudo que aconteceu. Hyacinth trouxe vida a ela.

— Mas...

— Mas, às vezes, parece que ela... Parece que, se ela pudesse, nunca mais olharia para mim. E eu... Eu não sei o que fiz de errado.

— Provavelmente nada. Deve ser muito duro para ela ver você ocupar o lugar do seu pai.

O olhar que Anthony lançou à tia foi tão dolorido que o coração dela chegou a se apertar.

— Eu não pedi por isso.

—Eu sei. E ela sabe também. Vai passar.

Anthony respirou fundo e assentiu. Billie tentou retomar a conversa em um tom mais leve:

— E então? A que devo a honra da visita?

— Tenho algumas dúvidas sobre contabilidade e administração. Será que tio George?...

— É claro! Ele terá prazer em ajudar. Venha comigo. Ficará para o almoço, não é?

— Com prazer. Não é todo dia que tenho a oportunidade de almoçar com minha tia favorita.

Billie abriu um sorriso matreiro.

— Não contarei isso para sua tia Georgiana.

— O que você acha que eu digo quando vou almoçar com ela?

— Que Deus proteja as mulheres que forem tolas o bastante para acreditar em você, Anthony Bridgerton!

A resposta foi o famoso sorriso de lado dos homens da família. Meio triste e cansado, é verdade. Mas ressurgindo das cinzas como uma fênix.

* * *

Violet deixou passar a primeira guerra de ervilhas desde que Edmund morrera. Sua atenção estava totalmente voltada para a cabeceira vazia da mesa.

— Quando Anthony está em casa, a senhora nunca olha nessa direção — comentou Daphne, com seu jeito franco. —Hoje, que ele não está em casa, a senhora não tira os olhos daí!

— Tenho uma revelação que irá chocá-la, Daphne: Anthony é meu filho. Estou preocupada com ele. Já passou da hora do jantar.

— Ele quase não tem comido junto com a gente — observou Eloise.

Mal a menina pronunciou essas palavras, a movimentação próxima ao portal que levava à sala de jantar indicou que Anthony estava em casa.

Violet suspirou de alívio ao vê-lo entrar.

— Que bom que você chegou, meu filho. Sente-se para jantar conosco.

Embora estivesse faminto (o almoço com Billie já ficara no passado há horas), Anthony não estava disposto a enfrentar uma refeição inteira (ou parte dela) como se fosse um elemento indesejado.

—Não estou com muita fome.

— Como está Billie?

— Bem. Mandou uma carta para a senhora.

Levando a mão ao bolso do casaco, entregou-lhe uma carta com o selo dos Rokesby. Violet agradeceu e insistiu:

— Não quer mesmo nos acompanhar?

Anthony sacudiu a cabeça.

— Há mais ervilhas no chão do que na mesa. Pedirei para me servirem alguma coisa mais tarde. Boa noite!

Os irmãos retribuíram ao boa-noite, cada qual em uma hora.

Anthony foi para o escritório e deixou-se cair na cadeira atrás da escrivaninha. Depois de alguns minutos, começou a mexer nos papéis a sua frente, colocando em prática o que seu tio havia lhe explicado. Quase deu um salto de surpresa quando, pouco depois, sua mãe abriu a porta.

— Posso entrar?

— Claro — respondeu ele, saindo, por defesa, de trás da escrivaninha. Não queria sentir o desconforto da mãe em vê-lo sentado ali.

Por um momento, Violet olhou para o local com saudade, vendo Edmund em cada canto do ambiente. Era o cômodo da casa mais impregnado com sua lembrança, com exceção do quarto de dormir. Então, a onda de nostalgia passou, e ela conseguiu sentar-se e dizer, com a voz próxima do normal.

— Quero conversar com você.

O filho abriu os braços, como a indicar que era todo ouvidos.

— É sobre Colin — revelou a mãe.

— O que tem ele? — quis saber Anthony, alarmado. —Está doente? Parecia bem...

— Não há nada de errado com a saúde dele. O problema é que ele descobriu onde você guarda as chaves do armário de armas... Aliás, elas estão aqui comigo.

— Mas é mesmo um rato!...

— E, como se não bastasse, resolveu praticar tiro sozinho.

— A senhora ficaria muito aborrecida se eu o estrangulasse?

— Absolutamente. Inclusive, sobraria mais comida na despensa.

Anthony sorriu. Era a primeira brincadeira que trocavam desde que uma simples abelha havia mudado suas vidas.

—Gostaria que você o ensinasse a atirar — pediu Violet.

—Papai iria ensinar... Mas...

— Por favor. Antes que ele se machuque ou consiga ferir alguém.

Anthony suspirou.

— Farei isso. Mas pensei que a senhora havia dito que eu não deveria agir como um pai para eles...

— Não leve a sério o que andei falando ou fazendo nas últimas semanas. Hoje eu percebi o quanto vou precisar de você para terminar de criá-los.

— Mas dói me pedir isso, não é mesmo?

Violet bateu no sofá, fazendo sinal para que o filho sentasse ao seu lado. Ele obedeceu, o corpo meio retesado como o de um animal ferido que não deixa que ninguém encoste.

— Dói — admitiu a mãe. — Dói, sim, filho. Por diversas razões. Dói por vê-lo no lugar do seu pai. Dói por colocar nos seus ombros uma carga desse tamanho. Eu não queria fazer isso, Anthony. Mas a tarefa é grande demais. E há lugares que eu não consigo alcançar.

—Estou aqui para ajudar. Sempre estive. Estou pensando até em abrir mão da minha vaga em Oxford...

—Nem pensar! Você tem de terminar seus estudos. Há limites para essa ajuda. Afinal, você é irmão deles. Não o pai. Precisa cuidar, também, de sua própria vida.

— E como vou saber que ultrapassei os limites?

Violet deu um pequeno sorriso, apertando a mão dele.

—Você nunca soube muito bem. Mas, justamente por isso, vai conseguir dar cabo da tarefa. Seu amor por seus irmãos tem sido um dos maiores pilares que passaram a segurar essa família depois que seu pai... — com a mão livre, ela enxugou uma lágrima no canto do olho. — E eu quero que você saiba que eu o amo muito por isso.

Foi a vez de Anthony fazer de conta que havia poeira em seus olhos.