O retorno de Pennywise

Mike Hanlon é surpreendido


O sol finalmente apareceu após uma manhã inteira de chuva em Derry. Por toda as ruas podiam-se ver pessoas com guardas chuvas nas mãos e com capaz de chuva no corpo. Chovera o suficiente para formar uma pequena correnteza entre algumas ruas, as quais as crianças aproveitavam para brincar, pouco se importando se ficariam doente ou não.

O pequeno David de onze anos olhava para as nuvens se abrindo, deixando feixes de luz surgirem na rua de sua escola, algo que lhe dava uma boa sensação. Sentia vontade de sair correndo pelas ruas de Derry, assim como faziam quando estava com seu grupo de amigos. Contudo, todos eles já haviam ido embora e ele estava preso com sua irmã Hannah, no portão da escola, à espera de que seu pai viesse buscá-lo. Era comum que se vissem naquela situação pelo menos duas vezes por semana, com atrasos de 15 a 30 minutos por parte de seus pais. Haviam se passado quase vinte naquela sexta-feira. Ao lado seu lado, Hannah andava de um lado para o outro na calçada, ao ponto que começava a irritá-lo. Porém, ele sabia que seria muito pior se ele a impedisse; provavelmente começaria a tagarelar até dar a hora, como ela sempre fazia.

Naquele dia, David estava mais impaciente do que o normal. Esquecera de trazer um lance para o intervalo e estava morrendo de fome. Além do mais, Hannah passou boa parte do tempo falando mal da colega de sala que ela odiava, uma história que ele já havia ouvido um milhão de vezes, todas elas contra a sua vontade. Estava com sorte; Se estivesse chovendo forte como estava antes, ele não teria outra escolha a não ser esperar como sempre fazia. Hoje, a sorte parecia estar a seu favor e ele poderia caminhar em paz.

David, Hannah e seus pais moravam a pouco mais de 1km da escola, ou seja, poderia muito bem caminhar, caso fosse preciso. Contudo, o pai das crianças, Mike, insistia que eles fossem trazidos e buscados de carro todos os dias. David achava o pai um tanto quanto paranoico, sempre parecendo que o pior viesse a acontecer. Não era incomum que exagerasse ou se estressasse por nada. Todavia, nos onze anos de existência de David nunca lhe havia acontecido nada demais. Sua dizia que era algum trauma relacionado a infância, mas nunca chegou a explicar em detalhes o que aconteceu. Ele tampouco perguntava a respeito.

Ele olha para a sua irmã mais uma vez, que agora estava abraçada a um poste.

—Que tal uma aposta? - disse David.

—Qual? - falou Hannah.

—Aposto que vou chegar em casa primeiro que você e o papai. Ele deve chegar aqui em quinze minutos e eu sei que até lá eu vou estar muito bem em casa.

—Em quinze minutos? Preguiçoso do que jeito que é? Quero só ver.

—Aposto cinco dólares que consigo. Fechado?

—Fechado! - disse ela estendendo o dedo mindinho e entrelaçando ao dele. - Vai lá, Forrest.

—Você espere aí dentro. Fica aí conversando com o porteiro. Papai não deve demorar.

A verdade é que David sequer se importava para a aposta. Na verdade, ele só queria ficar sozinho e se livrar de Hannah. Mesmo que perdesse, achava que cinco dólares era um preço pequeno para se pagar por aquele momento de liberdade. Seu pai não gostaria nada de vê-lo andando sozinho pelas ruas, mas ele pouco se importava. Já estava crescido, já sabia se virar sozinho e , apesar de não ser grande o suficiente para ser dono do próprio nariz, achava que podia ao menos caminhar sozinho para casa, mesmo que sem permissão. Saiu da escola muito satisfeito, ainda com o guarda-chuva em mãos, já que não cabia na mochila. Sequer precisava correr, ao invés foi caminhando, balançando o guarda-chuva para frente e para trás. Conhecia as ruas de Derry com a palma da mão, afinal ele nasceu e foi criado ali. Chegou até mesmo a achar que podia andar de olhos vendados, tamanha a familiaridade que tinha com o lugar.

De uma maneira geral, as pessoas eram estranhas. Não falavam com ninguém a não ser que a pessoa falasse primeiro e ainda assim, falavam sempre com desconfiança, a não que fossem amigos ou parentes. Os dias eram quase sempre chuvosos ou cinzas e alguns dias havia muito neblina de manhã cedo nos arredores da cidade. Os adultos eram quase sempre alienados ao que acontecia a sua volta, em especial às crianças, o que as dava uma liberdade maior do que a maioria delas teria se morassem outro lugar. Era comum que se pudesse vê-las andando em grupos grandes, as vezes a pé, as vezes de bicicleta ou patins. Andavam em grupos do mesmo sexo, se misturando em raras exceções. Os adolescentes, por sua vez, andavam de carro, que era quase sempre do pai de um dos garotos, geralmente o mais rico.

David cresceu nesse ambiente e estava mais do que acostumado a ele. Então, sequer questionava-se sobre a estranheza da cidade em que vivia. Seus habitantes não falavam sobre o assunto, mas Derry escondia segredos obscuros em seus séculos de existência. Os mais velhos ainda se lembravam das estranhezas que costumavam acontecer. As crianças, por exemplo, viviam sumindo misteriosamente. Muitas vezes chegou-se a cogitar a ideia de um serial killer, mas nenhuma evidência concreta jamais foi encontrada. David teve sorte que muitas dessas bizarrices já não aconteciam mais com a mesma frequência como antes.

Estava a apenas duas quadras de casa quando algo chamou a sua atenção. Era uma voz masculina, um pouco esganiçada. O mais estranho é que por um segundo, parecia que a voz estava dentro da sua cabeça, falando em sua mente.

“Oi, David. Por que tanta pressa? Por que não para um pouco e brinca comigo?”

—Quem está aí? Onde você está? - ele respondeu.

“Venha me encontrar. Eu irei ajudá-lo, com algumas dicas. Está frio.”

—Por que acha que quero encontrar você? Nem te conheço.

“Ora, não seja tão sério, David. Tudo não passa de uma brincadeira. Você não gosta de jogos?”

—Gosto, mas eu não tenho tempo. Devia ir...

“Está frio, David. Você não está nem tentando”.

A criança não sabia dizer o que era, mas havia algo de chamativo em sua voz, na maneira com que falava. Tinha um tom de voz, calmo e pacato, salve nos momentos em que lhe chamava atenção. Ele não sabia o porquê, mas pegou desejando encontrá-lo. Virou-se, encarando a rua vazia, voltando alguns passados.

“Está menos frio agora. Isso, continue. Frio, um pouco menos frio, um pouco menos, um pouco menos, menos, QUENTE!”

Estava quase na esquina da rua onde estivera andando. Por mais que caminhasse, David não viu nenhum sinal de qualquer alma vida.

“Aqui embaixo, David”.

Percebeu que a correnteza ia direto para um bueiro que estava bem próximo de si. Caminhou vagarosamente até a rua, olhando para a escuridão que havia dentro do bueiro. De lá, duas luzes surgiram, brilhantes como estrelas. Logo, percebeu que se tratavam de olhos. Olhos grandes e animalescos, chegando ao ponto de ser cartunesco. Ainda assim, eram belos, hipnotizantes. Uma vez em contato com eles, era difícil desviar o olhar. Em seguida, foi a vez do seu sorriso se revelar. Ele não podia ver com precisão, mas eram dentes fortes e afiados, perfeitos para rasgar carne humana. Uma forma se tornou nítida. Não a forma de um monstro, mas sim a de um... Palhaço?

—Finalmente me achou, David. Por que demorou tanto? - disse a coisa dando uma risada.

—O que um palhaço faz em um lugar como esse? Se perdeu do seu circo é? - debochou David.

— Meu circo todo está aqui embaixo, David. Se você vier poderá brincar com todos nós.

—Eu...não sou muito fã de circo. Ou de palhaços.

—Há mais do que isso aqui embaixo. Aqui, há tudo que uma criança poderia querer, Músicas, danças, brincadeiras, brinquedos, montanhas-russas, algodão doce. E o melhor de tudo: nenhum pai para te importunar.

—Eu... não vou entrar aí!

—Não vai entrar por que tem medo? Ou por que o seu papai não deixa?

—Eu não tenho medo de nada! E meu pai não tem nada a ver com isso!

—Então entre, David. Prove que eu estou errado. Prove para o seu pai que já é um homem crescido.

—Você não vai me enganar!

—Você está perdendo toda a diversão, David. Sua irmã e eu estamos nos divertindo a horas.

—David, David! Por que você demorou tanto? Venha aqui brincar comigo. Não precisa ter medo- disse Hannah.

—Hannah? É você mesma? Ficou doida? O que está fazendo aí? Saia daí agora mesmo! - gritou David.

—É muito alto pra mim. Não consigo sair sozinha. Me ajuda, David – disse Hannah. A essa altura o palhaço já havia desaparecido e dado lugar à escuridão. Dela, surgiu a mão de uma garotinha. - Me ajuda, David.

Ele não hesitou e estendeu sua mão esquerda para puxá-la para cima. No instante em que seus dedos se fecharam ao redor da mão de Hannah, em um piscar de olhos, David foi puxado com toda a força para dentro do bueiro. Agora, a única coisa que o impedia de ser jogado no abismo que havia lá embaixo era o seu guarda-chuva. David o segurava com o máximo de força que a sua mão esquerda permitia. A mão do palhaço escorregou por um instante e o garoto conseguiu se soltar, porém não por muito tempo. Em sua perna esquerda, onde deveria estar a mão de Hannah agora havia a mão branca do palhaço, que ameaçava despedaça-lo com seus dentes no primeiro momento em que cedesse.

A dois quarteirões de distância, Mike saía com seu carro para buscar seus filhos na escola. Ele não sabia o que, mas sentia que havia alguma coisa de errada desde o primeiro momento em que botou os pés para fora de casa. Tal pressentimento apenas se concretizou quando ele estava dirigindo e ouvindo gritos de uma criança. Soube no mesmo momento que era David.

—Socorro! Socorro! - gritava a criança.

—David! Não! - gritou Mike.

O rapaz agarrou o guarda-chuva do filho com todas as forças, porém o que quer que estivesse puxando tinha pelo menos três vezes mais forte.

—Aconteça o que acontecer não solte o guarda-chuva, filho!

—POR QUE EU SOLTARIA, PAI? - gritou de volta. O seu desespero era nítido. A água da chuva caía em seu rosto, gélida e suja, mas não era nada se comparada a situação em que se encontrava.

Por um instante, Mike achou que seria sugado para dentro do bueiro junto com seu filho e talvez assim tivesse sido, se ele fosse alguns anos mais velho e se o buraco fosse maior. O velho Mike, por sorte, ainda conservava algumas de suas forças de sua juventude e daria tudo de si para salvar seu filho. Usou todas as forças que ainda lhe restavam e que nem lembrava que ainda tinha e puxou o seu filho até que a cabeça estivesse a mostra mais uma vez.

—Puxa, pai. PUXA! - gritou David.

De repente, o corpo do menino saiu para fora por completo, com exceção do tênis do garoto, que se perdeu no meio da confusão, sendo levado por Pennywise.

—David, meu filho! O que foi que aconteceu? Quem estava te puxando?

—Era um palhaço... Eu sei que é loucura, mas eu juro que um palhaço estava lá embaixo tentando me puxar. Eu jamais teria ido, mas ouvi a voz da Hannah...

—Onde está a sua irmã?!

—Está na escola, esperando você ir buscá-la.

Não trocaram mais nenhuma palavra e entraram correndo no carro. Quando estava indo embora, Mike olhou para o bueiro e viu apenas a escuridão. Ele tinha sorte de ter conseguido tirar o filho de lá com vida. Uma sorte que o pequeno George Denbrought não teve.

Em seguida, foram atrás de Hannah na escola. A coitada nem teve tempo de fazer perguntas quando foi arrastada para dentro do carro, encontrando o irmão e o pai em um estado grande de perturbação.

—O que aconteceu? Por que ninguém fala nada? - perguntou a pequena.

Mike, dirigiu calado, fechado dentro da sua própria mente, alheio em suas preocupações. Não conseguia acreditar que era Pennywise quem estava por trás daquilo tudo. Não era possível. Afinal, ele havia morrido, ou deveria ter morrido, a alguns anos atrás, em um ritual definitivo. Mas não havia outra explicação plausível para o que acabara de acontecer. Seu filho afirmava com todas as palavras que viu um palhaço e que ele tentou matá-lo.

Não tinha outra escolha a não ser deixar a cidade o mais rápido possível. Assim que chegou ligou para a mulher, porém caiu na caixa de mensagens. Então, enviou uma mensagem para que ela retornasse a ligação o quanto anos, deixando claro a urgência da situação. Pediu a seus filhos que fizessem as malas, levando apenas o essencial e anunciou que a família faria algumas férias de última hora.

—No meio do ano? O que tá acontecendo com você, papai? - disse Hannah.

Porém, Mike não estava disposto a discutir seus planos. Estava prestes a ligar de novo para a mulher, quando David apareceu silenciosamente atrás dele. Estava quieto e parecia preocupado.

—Papai. Não me sinto bem.

David caiu no chão e seu corpo começou a se contorcer descontroladamente. Seus braços e pernas pareciam ter perdido o controle e já não respondiam mais a ele. Espumas começou a sair de sua boca e lágrimas começaram a brotar de seus olhos.

Mike olhava espantada para tudo aquilo, sem conseguir acreditar. Não fez tentativas de tentar socorrer seu filho por que sabia que aquela coisa no chão não era ele. Suas pernas e braços começaram a crescer, até terem o tamanho de um adulto, seu cabelo crespo deu lugar a uma cabeleira vermelha e seu tronco e crânio se expandiram anormalmente, até que a figura de Pennywise, o palhaço tomasse forma no chão da casa de Mike. Ficou imóvel e sequer piscava os olhos.

—Olá, Mike- disse o palhaço se levantando num sobressalto. Parecia ainda maior do que era nas lembranças de Mike, uma vez que sua cabeça quase batia no teto – Sentiu saudades?

—Você não é real. Isso é impossível. Eu vi você morrer com meus próprios olhos!

—Oh, Mike. Seu tolinho. Enquanto essa cidade existir, eu ainda continuarei a viver. Você não entende? Eu vivo em cada tijolo, em cada casa, em cada cidadão de Derry. Não pode me vencer nesse jogo e sabe disso.

—O que fez com meu filho?

—Seu filho? Oh, eu o levei para brincar no circo. Apenas isso. - disse Pennywise. A sua mão se materializou na mão de uma criança, na mão do pequeno David. A essa altura, seu corpo já deveria estar sendo carregado em direção ao rio.

—Seu filho da puta! Você matou o meu filho – disse Mike. Pegou rapidamente uma faca em uma das gavetas e o levou ao peitoral do palhaço, que desviou dele com a mesma facilidade como se brincasse com uma criança. Tentou de novo e de novo, mas o palhaço sequer o levava a sério. Quando perdeu a paciência, mordeu o braço onde estava a faca, rasgando sua carne. Poderia arrancar os seus membros ali mesmo, mas que graça haveria naquilo?

Mike correu para o andar de cima amedrontado. Encontrou Hannah na porta do seu quarto chorando, sem saber o que estava acontecendo na casa. Pegou ela no colo e se trancou no quarto.

—Rápido, se esconde em algum lugar, filha. Ali, no armário!

—Papai, estou com medo!

—Faça o que te disse, agora!

A menina obedeceu. Em poucos segundos o palhaço arrombou a porta, sem fazer muito esforço.

—O que você quer de mim?

—Chame seus amigos de volta para Derry. Eu e os perdedores temos muito o que conversar.

—Eu não falo com nenhum deles a anos. Não sei mais onde eles estão.

—Não sabe, é? Assim como provavelmente não sabe onde sua filha está, não é mesmo?

Em uma velocidade impressionante, Pennywise foi até o armário e puxou Hannah de dentre dele, agarrando seu pulso. Perto dele, a menina parecia uma boneca.

—Papai!

—O papai não pode salvar você, menina! - disse o palhaço. Ameaçou mordê-la várias vezes, assim como ele sempre fazia quando queria brincar.

—Por favor, eu faço o que você quiser, mas poupe a minha filha – implorou Mike.

—Reúna o seu grupo. Diga que estou ansioso para revê-los. Dessa vez, não vai sobrar ninguém para contar a histórias.

Em um piscar de olhos saiu correndo pelo corredor, levando consigo Hannah. Mike tentou ir atrás dele, mas não encontrou nenhum rastro quando desceu ao andar de baixo, como se tivesse desaparecido. Os gritos de Hannah que antes eram claros como o dia, agora não passavam de uma lembrança, ou melhor, um pesadelo, que ele iria carregar consigo para sempre.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.