O menino do outro lado da cerca

Conheci meu amigo Bruno num dia em que estava sentado perto da grande cerca, com as pernas cruzadas e olhando para o chão. Ouvi um barulho estranho e percebi que alguém se aproximava. Não era outro soldado e sim um menino, aparentemente da minha idade, um pouco mais alto que eu e obviamente mais gordo. Ele não usava roupas listradas como as minhas, e nem como as que os soldados costumavam usar. Era uma camisa normal e uma bermuda. Ele também não usava uma braçadeira com uma estrela como eu. Usava sapatos ao contrário de mim. Ele me disse “olá”, ao que eu respondi. Como me disse mais tarde ele se chamava Bruno, e disse a ele que me chamava Shmuel.

Começamos a conversar e descobri que Bruno nasceu no mesmo dia do mesmo mês e mesmo ano que eu, portanto tínhamos a mesma idade. Ele começou a me falar sobre sua antiga casa em Berlim e sobre como gostava de explorar. Eu nunca tinha explorado. Eu não podia sair dali, e não achava uma boa ideia que ele viesse par meu lado. Bruno combinou comigo que viria ali me ver todos os dias para conversarmos. Cumprindo com sua palavra Bruno começou a vir todos os dias, no mesmo horário sem atrasos, após suas aulas. Contou que havia se mudado para cá porque o Fúria tinha grandes planos para o pai dele. Que uma vez o Fúria foi jantar em sua casa, com sua mulher Eva, uma semana antes da mudança. Que pai dele tinha um escritório em que era Proibido Entrar em Todos os Momentos Sem Exceção. E que seu pai era comandante. Nunca entendi como Bruno podia ser um menino tão gentil enquanto seu pai era bruto e agressivo.

Ele me falou sobre a avó, mãe de seu pai, que apresentava peças de teatro com ele e sua irmã, Gretel acho, todos os natais. Sobre Gretel que tinha três amigas que o importunavam, e de sua obsessão por arrumar suas bonecas nas prateleiras. Sobre Pavel, seu servente, que era “assim como você”. Sobre como ele o ajudou quando caiu do balanço. Sobre sua empregada Maria e sobre seus amigos, Karl, Martin e Daniel, que ele considerava seus melhores amigos para a vida toda. Sobre as bancas de legumes e frutas que ficavam pelas ruas e sobre as pessoas que conversavam e riam. Sobre os cinco andares de sua antiga casa, e não três como a atual, e que ele escorregava pelo corrimão.

Contei sobre mim também. Sobre a minha casa, onde morava com minha mãe, meu pai e meu irmão, Josef, em cima da loja onde meu pai fazia seus relógios e consertava outros. Sobre a minha mãe, que era professora, e sabia falar italiano, inglês, polonês, alemão e até francês. Sobre como cheguei ali, quando fomos enfurnados em onze pessoas, dentro de um único quatro. Sobre o trem e sobre o campo. A melhor coisa nas visitas de Bruno, além de sua companhia é claro, é que ele sempre trazia comida. Não era muito, mas era melhor do que nada, com certeza melhor do que a comida que eu recebia. Certa vez, fui à casa de Bruno. Foi o tenente Khotler quem me levou lá dizendo que tinha um trabalho para mim. Eu deveria lustrar as taças que seriam usadas no jantar de aniversário de seu pai. Naquele dia Bruno me deu um pouco de galinha. Ele queria mostrar seu quarto, mas eu não ousaria sair daquela cadeira. Quando o tenente nos viu conversando, ele negou que me conhecia, e tivemos uma “conversa” sobre roubo pouco depois. Fiquei uma semana sem vê-lo, mas depois voltamos a nos falar.

Meu avô e meu pai sumiram. Nunca mais vi os dois. Passei dias procurando por eles. Certa vez conheci um menino chamado Giosué, que veio para cá com o pai e a mãe. Ele tinha mais ou menos a mesma idade que eu e Bruno tínhamos. Ele não era da Polônia como eu e nem de Berlim como Bruno, e sim da Itália. Disse que sua mãe ficara em casa e que eles foram trazidos por soldados assim como eu. Que não gostava de banho e às vezes passava os dias escondido no beliche de seu quarto. Acho que ele era meio maluco porque falava sobre um jogo, do qual estava participando, e que no fim, quando marcasse mil pontos, levaria um tanque de verdade para casa. Não comentei sobre ele com Bruno.

Então um ano depois ele me disse que iria embora. Voltaria para Berlim com sua mãe e Gretel. Ele foi para lá meses antes, quando sua avó morreu. Queríamos nos despedir e ele teve uma ideia. Combinamos que no dia seguinte ele viria até nosso local de encontro, pegaria comigo roupas listradas iguais as minhas e entraria por debaixo da cerca. Assim fizemos. Senti vontade de abraça-lo e agradecer por tudo que fizera, mas não o fiz. Procuramos por meu pai durante uma hora e meia e então começou a chover. Chovia muito forte e ele queria voltar para casa. Concordei, mas quando tentamos ir em direção à cerca fomos barrados por uma multidão que marchava ao comando de soldados. Ficamos exprimidos no meio daquele monte de gente até nos depararmos com uma escadaria. Subimos e fomos parar numa grande sala. Aquilo não parecia bom, pois eu me lembrava que quando as pessoas entravam ali, eu nunca mais as via sair. As luzes se apagaram e as portas foram trancadas. Senti medo, terror. Todos respiraram fundo. Fechei os olhos, ia começar a chorar. Bruno apertou minha mão e disse que eu era seu melhor amigo. Quando eu ia responder aconteceu uma coisa:

Um berro foi ouvido do lado de fora. Era um homem. Eu conhecia aquela voz. Ao ouvi-la Bruno sobressaltou-se. “Pai!”, ele começou a gritar, “Pai! Me tira daqui!”. O homem começou a esmurrar a porta e deu um comando a um soldado para que a abrisse. Ele berrava “Bruno! Meu filho, você está ai?”. Bruno começou a empurrar as pessoas a sua frente, tentando sair. Em momento algum ele soltou minha mão. Continuamos empurrando e cotovelando até ver a luz que vinha de fora da sala. Parado na frente do portão entre aberto estava o comandante, pai de Bruno. Ao vê-lo ele soltou minha mão e correu até o pai, que o abraçou. Ambos começaram chorar. Então senti que alguém me puxava. Era um soldado me forçando a entrar. Me agarrei ao portão e comecei a berrar. “Bruno!”, gritei. Ele se virou e seu pai ficou sério. Deu um comando que fez com que me soltassem. Bruno correu até mim e inesperadamente me abraçou. Também o abracei. Comecei a chorar. Seu pai nos olhava atordoado, não, horrorizado. Bruno me soltou e seguiu o pai até um local coberto. Sem fazer perguntas os segui.

Chegando numa outra sala o comandante começou a gritar. Berrou e bronqueou o filho até cansar. Depois o abraçou novamente esquecendo que eu estava ali. Quando notou mina presença soltou o filho. E perguntou como eu sabia seu nome, e pra primeiro e conversa, como fora parar ali. E Bruno contou. Permaneci mudo. Então ele disse: “Entenda Bruno: vocês jamais deveriam ter se conhecido, você nunca deveria ter entrado aqui!”. Bruno disse que entendia. Então o comandante me olhou. Baixei a cabeça. Ele foi até um soldado e deu a ele algumas instruções. Veio até mim e disse para que não me preocupasse. Então chamou seu filho, dizendo que deveriam sair dali imediatamente. Antes de ir Bruno parou na minha frente. Me abraçou e repetiu: “Você é meu melhor amigo, da vida toda.” “Para mim também”, eu disse. Então ele foi embora.

Continuei ali no campo durante vários meses, até que em meio ao completo caos, chegaram os norte americanos. Eles libertaram os prisioneiros que tinham sobrevivido ao campo e nos mandou para casa. De todos os milhares de judeus que foram para lá comigo nem metade chegou a sair. Soube que Giosué também saíra do campo, mas apenas com sua mãe. E quanto a Bruno, ao completar vinte anos resolvi que iria procurá-lo. Não sei bem meus motivos, mas creio que foi pelo fato de ele ser meu único amigo. E não foi difícil: numa biblioteca de Berlim encontrei uma manchete, num jornal antigo que falava sobre meu amigo. Bruno estava num trem voltando para sua cidade quando foi detido por soldados americanos. Eles mataram os nazistas que ali estavam além de civis que os acompanhavam. E Bruno foi um deles. Fiz uma lápide simbólica em sua homenagem e nela estava escrito: "Bruno, meu melhor amigo pra vida toda".

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.