O lobo a levou

Capítulo 5 - O escape



Chapeuzinho Vermelho era uma garota que vivia em um vilarejo no meio da floresta, cercado de árvores. Ela era uma boa menina, muito gentil e doce. Recebeu o apelido "Chapeuzinho Vermelho" porque usava uma capa de veludo vermelho que sua avó fez quando a menina tornou-se mocinha.
Um dia de inverno, recebeu um pedido de sua mãe, para que levasse comida e doces para a sua vovó que estava doente e morava em uma vila do outro lado da floresta. A boa menina levou uma cesta de torta e bebida quente, junto com remédios para sua vovó. Sua mãe mandou que ela não pegasse atalhos ou não falasse com estranhos. A menina concordou.
Porém, no meio de seu caminho, ela se encontrou com um lobo de pelo marrom, que perguntou aonde ela ia. Com inocência, a garota respondeu que iria para a casa da vovó, levar comida e remédios. O lobo que não era bobo, disse para que ela seguisse outro caminho. A menina concordou e seguiu um "atalho" com um canteiro cheio de flores que ela colheu para levar a sua avó.
A menina seguiu a trilha e chegou à vila quando o Sol do meio-dia repousava no céu, indo diretamente para a casa de sua vovó. Ela deu três batidas na porta.
- Entre meu bem, a porta está encostada.
Chapeuzinho estranhou a voz da vovó, estava rouca e muito mais...masculina. A menina abriu a porta, vendo sua vovó sentada na cadeira de balanço sentada em frente da lareira, usando uma camisola. Chapeuzinho se aproximou, desconfiada. A vovó parecia mais alta e musculosa, ainda que todas as luzes da casa, inclusive a lareira, estavam apagadas, gerando uma pequena penumbra no ambiente. A menina se aproximou, ajoelhando-se e segurando uma das mãos da avó.
- Vovó! Que mãos grandes você tem!
- São para te abraçar melhor, meu bem.
- E que olhos grandes você tem!
- São para te ver melhor, querida.
Olhos azuis gélidos encaravam a menina, ela estranhou aquele brilho. Algo não estava certo. Aquela não era sua avó.
- E... que orelhas grandes.
- Para escutar sua doce voz melhor.
A menina então se apoiou com os cotovelos nos joelhos da avó, encarando melhor sua face.
- E que boca grande é essa!
A "avó" riu, a gigante figura pulando em cima da menina e a pressionando contra o chão. A pobre menina era prensada contra o piso por patas peludas e com unhas afiadas, enquanto à sua frente, presas roçavam em suas bochechas rosadas.
- E para te devorar melhor, meu bem!
Aquilo não era sua avó, e sim um enorme lobo. O ambiente ao redor de Branca mudava, o chão cobertor de sangue fresco e muitas marcas surgindo nas paredes, junto à gritos. A menina começou a chorar desesperadamente, gritando por socorro, mas era em vão, não havia mais ninguém ali. Só a cabana e eles. O lobo se aproximou, chegando bem pertinho dela.
- Por que confiou em mim?
Foi o que o lobo perguntou sussurrando, antes de abrir a enorme boca e a menina só ter tempo de ver as enormes presas fechando-se ao seu redor, sendo devorada.

Branca levantou assustada na cama com um solavanco. Seu corpo suava e seu coração batia de uma maneira descontrolada. O sonho que tivera a assustou, uma história que parecia demais com sua situação atual, era, de certa forma, perturbador.
Há cerca de três dias, Branca encontrou a casa de sua avó revirada e bagunçada, sem nenhum sinal da boa velhinha. Ela chorava desesperada, enquanto muitos moradores da vila a acalmavam. Os vizinhos de sua avó disseram que realmente, haviam escutados barulhos vindo da casa da avó, mas não estranharam ou pensaram que não fosse nada. As marcas de garras, patas e sangue era o que mais impressionava à todos, já que nenhum lobo havia entrado do vilarejo. Todos concluíram que Olga, como era o nome da avó de Branca, havia esquecido a porta da cozinha aberta quando saiu para colocar suas roupas no varal, e como a porta dos fundos dela dava para uma parte da floresta, algum lobo teria entrado. Mas aquilo não fazia sentido, como Olga teria sumido?
Branca tinha vontade de xingar os moradores ou chamá-los de imbecis, nada ou nenhuma daquelas suposições fazia sentido para ela. Agora com dias passando da tragédia, Branca encontrava-se na sua cama, como estava desde que voltou da vila. Ela não comia ou bebia direito, só levanta-se para usar o banheiro e -raramente- comer um pãozinho guardado na estante. Seus pais, principalmente sua mãe, que era filha de Olga, haviam ficado preocupados com a notícia do desaparecimento, rumores rondavam pelo vilarejo e o que mais dizia era "Foi a Fera" ou "A Fera a levou", fazendo Branca se conter em não pegar um balde de água fria e jogar na cabeça dos que sussurravam aquilo quando passavam perto de sua casa.
Branca tocou em sua testa, lembrando das palavras que o lobo disse em seu sonho.


Por que confiou em mim?

O lobo de seu sonho era o mesmo lobo que Branca conhecia, a cor dos olhos e do pelo, a voz...tudo era igual. Branca abraçou a si mesma ao estremecer, ela nunca deveria ter confiado naquele maldito lobo ou ido pelo outro caminho. Sentia um enorme peso nas costas, sentia que aquilo tudo era culpa dela. Tudo ao seu redor não fazia sentido para ela desde que pisou naquela floresta. Mas realmente...por que confiou no lobo?
Burra, burra. Branca pensou consigo mesma. Agora a vovó pode estar morta e a culpa é sua.
Desviou o olhar quando notou o ranger de passos subindo a escada, o topo da cabeça de sua mãe apareceu, sendo seguido por uma expressão cautelosa e gentil. Branca suspirou, sorrindo fracamente.
- Você precisa comer alguma coisa. - A mãe disse. - Você já está aí há dias, meu bem.
- Não quero comer nada. - Branca respondeu, puxando os cobertores até o pescoço e virando-se na cama.
A mãe não escutou e subiu o andar, sentando-se na cama da menina e acariciando seus cabelos que ela já não penteava há dias. A pele de Branca parecia ressecada e com algumas olheiras debaixo dos olhos castanhos escuros, ela não estava se cuidando direito e aquilo parecia pesar tanto na sua aparência quando em seu psicológico, ela estava com uma aparência mais fantasmagórica do que bela. Os dedos da mãos arrumavam e penteavam os fios, tentando confortar a mais nova. Elas ficaram assim por algum tempo, enquanto Branca lutava em não adormecer e ter pesadelos novamente. Mas não teve muitas opções, as pálpebras começaram a pesar e ela sentiu o mundo ficar ficar cada vez mais leve, até estar acompanhada de imagens e pensamentos sem nexo que começavam a se formar em um sonho. Ela adormeceu quieta, com uma respiração leve e ainda recebendo carinho. No andar de baixo, a madeira estava na lareira, enquanto do lado de fora flocos de neve caíam do céu cinzento. Era uma tarde fria de inverno, e Branca não sentia vontade de sair ou fazer nada, apenas dormir, como fizera nos últimos três dias.



A chuva caía do lado de fora, dando uma camada psicológica perfeita para o ambiente. Passou-se uma semana e nenhum sinal da avó de Branca, nem mesmo quando os moradores da vila saíram para tentar buscar ela. Com isso, para a infelicidade da neta, todos concluíam que Olga estava morta. Naquela manhã fria, Branca estava usando um xale preto por cima de um simples vestido cinza de lã, com botões de mesma cor. Ela estava sentada em uma cadeira no canto da cozinha, enquanto em sua casa muitos moradores entravam e ofereciam flores e velas para seus pais, uma tradição nos vilarejos da região, quando alguém da família ou um amigo falecia. Branca sempre esteve presente junto à seus pais nos velórios nas casas de outras pessoas, mas aquela era a primeira vez que isso acontecia em sua casa, era uma sensação de vazio, junto à uma febre de incapacidade e uma paralisia tanto em seu físico quanto o mental. Uma senhora com aproximadamente setenta anos aproximou-se e ofereceu à ela uma rosa amarela, Branca forçou um fraco sorriso em retribuição e pegou delicadamente a flor, recebendo um beijo na testa em conforto. A senhora era a esposa de um vendedor de sapatos que Branca conhecia desde pequena, tinham cinco filhos e todos moravam no mesmo vilarejo, trabalhando junto ao pai. Eram uma boa família.
Branca cheirou brevemente a flor e então deixou-a descansando em seu colo, erguendo a cabeça e suspirando. Ao fundo, Arthur e Desmond estavam usando roupas cinzentas e com os olhares distantes. O mais velho notou que ela o encarava e acenou tristemente, dando uma cotovela em Desmond, os dois se aproximaram dela.
- Meus pêsames... - Arthur a entregou uma margarida.
Branca pegou a flor e colocou junto à rosa, colocando-as em repouso na cadeira quando se levantou. Ela limpou a barra do vestido e suspirou, encarando os amigos. Tinha certeza que sua aparência estava deplorável e mais caída do que nunca, a pele ressecada por não ter bebido ou comido direito, os cabelos que ela foi forçada a pentear só naquele dia e os lábios ressecados, além de olheiras pelo choro. Branca foi cercada pelos braços de Arthur, a palma das mãos repousando em suas costas e o queixo descansando no ombro dela. Os olhos da garota arderam, mas ela se conteve em não derramar mais nenhuma lágrima. Retribuiu o abraço, envolvendo Arthur em seus braços por alguns segundos, quando o mesmo se afastou.
- Eu conheci a Senhora Olga nas poucas vezes em que ela esteve no vilarejo. - O ruivo disse, tristemente. - Mas sei que era uma ótima pessoa.
Branca apenas concordou com a cabeça, fazendo esforço para esboçar o melhor sorriso que conseguia. Desmond não entregou flores, mas uma vela branca acessa que foi colocada junto as outras, sobre a mesa, e um abraço em Branca. Em um pequeno canto da cabana, ela notou Tom, pai de Desmond, encostado em uma parede e olhando tristemente para baixo. A grande barba loira que não era feita há muito tempo cobrindo a maior parte da sua face, enquanto pequenas cicatrizes marcavam suas pálpebras e testa. Tanto o pai quando o filho não gostavam de velórios desde o incidente da Fera há três anos atrás, quando visitaram as casas dos quatro homens que foram capturados pela Fera, desaparecendo na floresta. Branca agora pensava que era capaz de sentir um pouco mais a dor deles e ter mais empatia.
As marcas de garras e sangue na casa de sua avó ainda a assombravam, as marcas combinavam perfeitamente com patas de lobos. Eram um pouco parecidas com as cicatrizes de Desmond e Tom. Branca sentiu uma enorme repulsa subir em sua garganta e uma febra de raiva dominar seus sentidos. A imagem de uma pessoa de olhos azuis claros a encarando fazia-a querer gritar de raiva, ela apertou os punhos com força, o rosto fervendo em ódio. Ela estava furiosa como nunca esteve em toda sua vida. Estava com raiva da pessoa que ela, certamente, mais odiava agora. Se não estivesse acontecendo o velório de sua avó naquele exato momento, não sabia qual seria sua reação, mas em respeito a todos, conteve-se em ficar sentada no canto sem dizer nada, apenas apertando a barra do vestido, com todos os pensamentos bagunçados em sua mente.
Passaram-se horas e as últimas pessoas que restavam ali saíram da cabana, o velório havia terminado e agora os pais de Branca observavam quietos a mesa, com flores e velas em recordação à velhinha. O pai de Branca confortou sua mãe quando a mesma começou a choramingar.
A menina desviou o olhar para um baú aberto, observando sua linda capa vermelha que ela havia a guardado ali desde o dia que chegou desesperada em seu vilarejo, procurando seus pais após ter voltando da casa da avó. Ela não se lembrava muito do que aconteceu, correu sem rumo pela floresta, tropeçando diversas vezes e com a vista embaçada, só com o barulho do choro e do vento. Sua avó havia sumido ou talvez estivesse morta e ela não sabia o que fazer, só correr e procurar por ajuda, com joelhos ralados e a face coberta de lágrimas. Depois do dia do lago ou do velório, aquele certamente foi um dos piores dias da vida de Branca.
A tarde fria de nuvens cinzentas caiu sem aviso, as velas apagadas haviam sido retiradas e as flores colocadas em vasos. Os pais de Branca já estavam deitados na cama, cochilando. Desde o inicio da manhã não conseguiam dormir e haviam passado parte do dia em pé, recebendo pessoas e sua casa no velório, eles estavam exaustos. Branca estava deitada sobre sua cama, sem conseguir fechar os olhos ou descansar. Ela desceu as escadas, retirando o xale preto e trocando-o por sua capa vermelha, sobre o vestido de lã cinza. Abriu a porta de sua casa, observando os lados. As ruas do vilarejo estavam vazias, todos estavam dentro de suas casas, com as luzes acessas e já preparando o jantar. O céu escurecia a cada segundo, anunciando que a noite chegava. Branca fechou a porta sem fazer som e vagou pelas ruas, entrando em um beco entre duas cabanas, com diversos barris empilhado de lado e amarrados, até uma altura elevada. Branca havia passado boa parte de sua infância explorando aquele vilarejo, ela sabia de um lugar em que a parte superior do muro fora mal construída com a madeira, sendo um pouco mais baixa e apodrecida.
Ela subiu no barril mais alto e apoiou-se, em outro empilhado, tateando o muro e notando uma parte mais fraca e podre. Branca abaixou-se apenas para pegar uma pedra solta do chão e subir novamente no barril, dessa vez batendo com força a pedra contra a madeira até a parte superior arrancar e cair, revelando um pequena fresta entre o muro que Branca podia atravessar com facilidade. Observou o lado de fora, uma queda pequena, mas que podia machucar se não tivesse cuidado. Apoiou-se entre os barris e o muro, até atravessar parte da fresta e jogar-se para o lado de fora e aterrissar na neve. Ela respirou fundo, não havia se machucado ou quebrado nenhum osso, mas as palmas das mãos estavam assadas, junto aos joelhos. Branca levantou-se e observou o muro. Ela soube sair, mas agora não fazia ideia de como entraria novamente, nem sequer pensou naquilo. Mas não era hora de já chorar pelo leite derramado, precisava fazer o que queria, mesmo que sua razão luta-se contra a mente impulsiva e alertando do perigo.
Branca entrou na floresta, sem se preocupar com o vento batendo contra seu rosto ou os pássaros agitados, ela pisava duramente contra a neve, determinada.
Perigo, perigo! Gritavam as árvores e sons de animais. Fuja depressa daqui, menina!


Ela não escutava, Branca estava totalmente submersa em sua própria dor e ignorava qualquer aviso da floresta, mesmo que seu coração acelerado também tentasse impedir aquela tola criança. Caminhou por muitos minutos, o céu mais cinzento e com o tom da noite à cada passo que ela dava. Mesmo sem rumo, ela chegou à uma clareira sem flores, apenas com a grama coberta pela neve e sem árvores, exibindo um céu aberto tempestuoso. Branca sentiu seus dentes rangerem e os olhos queimarem.
- Apareça! - Ela gritou, os pulmões e a garganta ardendo. - Eu sei que está aí!
Não demorou muito e um grande e musculoso lobo surgiu entre os pinheiros, caminhando na direção dela. Branca apavorou-se com as orbes azuis, com um brilho pálido a encarando de cima a baixo. Quando o animal estava próximo o suficiente, ela puxou a faquinha de cozinha que sempre esteve ali. As iris azuis dilatando por segundos, em surpresa. Mas em poucos minutos as pupilas aumentaram, um leve susto, mas ele já esperava aquilo. Branca não o compreendia, não o compreendia e nem ela sabia porque queria. A raiva estava confundindo toda sua mente.
- Você matou ela. - Branca rosnou ao vento. - Me fez seguir outro caminho e chegou à casa dela pelo outro. Você me enganou!
Uma rajada de vento bateu e lá estava ele, o jovem rapaz de cabelos castanhos-avermelhados a encarando friamente, tanto quanto o inverno. Os olhos frios e azuis gélidos combinavam com a personalidade que ele transparecia, alguém indiferente, despreocupado. Branca não gostava daquilo, não gostava da maneira como ele a olhava, sempre observando tudo, sempre parecendo saber de tudo e sem dizer nada. Ela não gostava dele.
Naquela ocasião, o rapaz usava uma capa branca de couro, sem capuz, apenas com uma gola que se estendia até seu pescoço e cobria parte do queixo. O aquecia sobre uma camisa preta de mangas longas e um pouco amarrotada. O rapaz aproximou-se dela, mas Branca estendeu ainda mais a faca, sentindo suas mãos tremerem em nervosismo.
- Está com medo de mim.
- É óbvio que estou! - Ela esbravejou. - Como posso não sentir medo de alguém que matou pessoas na minha frente? Que matou homens e minha avó?
O rapaz-lobo piscou, não compreendendo as palavras dela.
- Eu não matei sua avó.
- As suas patas, as marcas das suas garras estavam nas paredes e chão. As mesmas marcas que você deixou nos homens naquele dia são as mesmas que estavam na casa da vovó.
Branca sentiu o choro entalado em sua garganta, ela se segurava para não se quebrar diante dele. Estava apavorada, estava com medo, mas se recusava a deixar sua imagem cair perante a ele. Mesmo até o último segundo de sua vida, queria se manter firme. Não importava se ele a matasse ali e agora.
As sobrancelhas dele se franziram, o traço dos lábios quase cobertos pela gola se contorceram. Um borrão branco atirou-se contra Branca. Naquela situação ela esperava tudo, menos que ele se jogasse contra ela e a derrubasse na neve, segurando firmemente seus ombros. A faca foi jogada para longe, cravando-se na neve e se perdendo na ventania. Branca sentiu a neve gelada contra suas costas, a capa úmida derretida e seus ombros espremidos contra a clavícula, abriu os olhos lentamente, com olhos azuis a observando. Joelhos prendiam sua capa no chão, a impossibilitando de se mover. O rapaz se aproximou, Branca sentia seu hálito quente contra as bochechas dela.
- Diga o que quiser ou achar de mim. - Ele murmurou baixinho, quase sem fazer som. - Mas eu não matei sua avó.
Um doce e suave cheiro de madeira queimada inalava do jovem, junto à um perfume doce, mas forte. As palavras dele chiavam em seu ouvido e faziam cócegas, causando arrepios em sua nuca. Branca nunca havia ficado tão perto de uma pessoa assim, especificamente de um homem. A sensação era diferente de quando um de seus amigos homens no vilarejo a tocavam ou abraçavam, era algo mais formigante, mais sensível. Ela se aliviou quando ele afrouxou o toque em seus ombros, deixando-os de apertar contra os ossos da clavícula que já doíam. Branca notou algo piscar naqueles olhos, um crescer de arrependimento nas pupilas dilatadas e as pálpebras semicerradas. Ele não era nenhum brutamontes, isso Branca sempre notou. Mas naquele momento, ele parecia ter se arrependido de a tocar, quase como se ela fosse a coisa mais frágil do mundo. O toque diminuiu, mas ele não retirou os joelhos da capa da garota.
A luz do luar, agora preenchendo o céu, dava uma cor à mais naquela pele clara como pêssego. Agora tão perto, Branca notava que aqueles olhos azuis, claros, tinham um leve tom acinzentando ao redor da pupila, misturando-se com aquela cor tão gelada e fria de emoções.
— Hoje foi o funeral dela, ela morreu! - Ela disse, o hálito quente destacando-se no frio. - Não tente mentir para mim, eu sei que foi você!
O rapaz não respondeu. Uma das mãos se estendeu e afastou umas das mechas de cabelo de Branca, que atrapalhavam sua visão. As mãos eram quentes e a pele macia, os dedos longos e com um toque estranho, diferente. Mas era agradável diante daquele frio. O rosto dele estava somente a mais ou menos vinte centímetros longe dela. Mas era o suficiente para ela estudar cada traço daquele rosto. Lembrou-se de seu sonho, de uma forma assustadora, algumas partes estavam se encaixando na realidade.
- Por que tem olhos tão grandes? - Perguntou, quase em um suspiro.
Ele se aproximou, os olhos vidrados nos dela.
- São para enxergar melhor.
- Por que tem uma audição tão boa?
- Para escutar melhor.
Branca engoliu em seco, observando o abrir e fechar dos lábios, revelando dentes brancos como mármore e com os caninos um pouco mais afiados que o normal. Franziu o cenho, e um pouco hesitante, quase com medo, ergueu o dedo indicador e tocou o lábio inferior dele, quase como se fosse a coisa mais frágil do mundo. Lábios ressecados diante daquele frio, mas muito macios. Os olhos azuis exibiram um brilho de surpresa, mas logo se acalmaram. Era como uma tempestade no mar, que ora acalmava e ora pestanejava. Era lindo, mas um pouco assustador. Branca sentiu um arrepio pelo corpo, junto ao tremor de seus lábios, mal conseguindo falar.
- E por que tem presas tão grandes?
- São para te devorar.
Branca assustou-se com o movimento brusco dele saindo de cima dela, por um segundo, a resposta a assustou a tal ponto de achar que ele realmente a devoraria, ali e agora, como fora em seu sonho. Mas o coração se acalmou quando notou que estava inteira e o rapaz em pé ao seu lado, a olhando como se fosse uma idiota. Ele suspirou com o nariz e deu de ombros, enfiando as mãos no casaco e aconchegando as bochechas entre a gola, ocultando parte de sua face.
Branca o olhou perplexa. Um uivo muito alto soou ao alto, de uma montanha não muito longe deles. Uma tempestade de neve estava começando, fazendo flocos voarem para todos os lados e o vento cortar a sua pele, mas Branca conseguia enxergar o rapaz franzir o cenho, irritado. Branca sabia que ele conseguia os entender, sabia que aqueles lobos eram como ele. Sabia que estavam juntos. Com dificuldade, ela se ergueu e tentou caminhar até ele, um pouco desengonçada e perdida pela neve a cegando. Ela agarrou um tecido de forma brusca, só então notando que era a manga do capuz do jovem, agora e encarando com interesse, de uma maneira até que incomodado, mas ainda não mudava o brilho de curiosidade que surgiu em seus olhos.
- Se você diz que não foi você, então algum desses lobos. - Branca pausou, ofegante pelo frio. - Algum desses lobos foi o que matou a minha avó?
- Não tenho certeza.
Os ombros dela tremeram, sentindo seus olhos arderem. Branca suspirou profundamente, engolindo a sensação de choro. Se recusava a chorar na frente dele, especialmente e unicamente dele. Obrigou-se a elevar a cabeça e o encarar.
- E me garante que nenhum deles, incluindo você, seja A Fera?
Mesmo em sua forma humana, Branca teve certeza de que, mesmo por segundos, ele havia mostrado suas presas à ela. Não em um rosnado, não em uma ameaça. Mas em alerta. Isso foi o suficiente para ela soltar a manga dele e dar passos para trás. Mal podia acreditar que havia feito àquela pergunta, em um tom tão alto e claro, encarando-o nos olhos. Sentiu que cometeu um deslize. O número de uivos aumentavam em número e som, com mais lobos e ficando cada vez mais agitados. O rapaz não disse uma palavra, apenas a encarava por cima dos ombros. Cada vez mais que os uivos aumentavam, o seu cenho franzia mais. Ele levou à mão a testa e cerrou os dentes, nervoso.
- Calem a boca.
O que eram apenas uivos para Branca, eram inúmeras vozes ecoando na mente do rapaz, sem um minuto ou segundo de paz. Raiva. Angústia. Medo. Repreensão. Aviso. Todas soavam em diferentes tons e emoções. Sem que ele pudesse calá-las. Era como uma enorme multidão, com inúmeras pessoas falando ao mesmo tempo. O que para Branca era a incompreensão, para ele era a irritação. Não conseguiu controlar sua raiva. Em poucos segundos, um enorme lobo estava à frente de Branca, dando um estrondoso e alto rugindo, franzindo o focinho e exibindo todas as presas da boca. Os uivos se calaram no mesmo segundo, dando lugar apenas ao som do vento e do farfalhar das árvores.
Branca levou a mão à boca, sufocando um pequeno gritinho que emergiu pela garganta. Os ombros tremiam, mas não pelo frio. Aquele lobo tão grande, tão musculoso, tinha capacidade suficiente para estraçalhar uma senhora como sua avó, no início de seus setenta anos. Era idêntico ao lobo do seu pesadelo, da cor do pelo até a cor dos olhos. Era assustador como sonhos ou pesadelos refletiam em uma dura realidade, serviam até de avisos algumas vezes. Branca tentou procurar com o olhar pela pequena faca de cozinha que trouxera, mas já estava soterrada e perdida na neve, agora com essa tempestade, nunca a encontraria. Também ficou desesperada em pensar como voltaria para o vilarejo ou passaria pelo muro. Não era justo. Por que ela precisava passar por tanta desgraça? Por que teve que encontrar o maldito lobo? Por que sua vida teve aquela mudança que ela nunca pediu, por que justo ela?
Branca ajoelhou-se na neve, levando as mãos ao rosto e não contendo as lágrimas que caíam. O lobo se aproximou dela, as patas fortes esmagando a neve com facilidade. A camada de pelo do animal permitia que não sentisse frio, ele não parecia nem um pouco afetado por aquela tempestade de neve. O focinho gelado roçou nas costas da mão dela, a jovem o encarou, ainda com as lágrimas borrando sua visão. Branca não compreendeu bem, mas ao olhar novamente para aqueles olhos, que, antes eram assustadores e frios, agora conseguia encontrar uma profunda onda de consolo e afeição, aquele simples olhar era mais quente que um abraço de um velho amigo, mais amoroso que um beijo entre amantes e mais profundo que a saudade. Dentro dela, algo atingiu bem fundo em seu peito, e por segundos, as emoções pareciam se acalmar, Branca não sabia o porque, mas agora sentia que conseguia até respirar com mais calma e pensar melhor.


- Mas por mil raios...quem é você?
Pouco a pouco, Branca finalmente conseguia notar aquela metamorfose. As patas eram substituídas por mãos e pés, as costas se curvavam em uma corcunda até ficarem eretas novamente, em uma coluna humana. O focinho se transformava em boca e nariz, e aqueles olhos azuis, redondos como bolas de gude, se achatavam e transformavam-se em olhos azuis afiados, mas ainda um pouco grandes e muito belos. Era como um livro que Branca leu há muito tempo na casa de sua avó, onde uma fera voltava a sua forma humana, se transformando em um homem. Era espantoso.
- Sou Killian.
Ele disse calmamente, fazendo-a gravar o nome em sua mente. Killian.
O jovem, agora que ela sabia que se chamava Killian, levantou-se e observou o céu por alguns minutos, ele respirou profundamente, enchendo os pulmões daquele ar frio.
- Eles estão vindo!
Branca assustou-se, levantando bruscamente na neve e o seguindo com o olhar.
— Eles quem?
- A alcateia.
Não demorou muito para novos uivos surgirem no ar, aquilo fez Branca se tremer e entrar em desespero. Sem a faca e perdida naquela tempestade de neve, ela seria o prato principal para o jantar dos lobos. Ela olhou para todos os lados, o coração acelerado. Não sabia onde estava, não sabia para onde correr. Estava com tanto medo que sentia que morrer ali e agora seria a opção menos desesperadora.
Um par de mãos quentes segurou firmemente sua mão, fazendo-a olhar atentamente para Killian. Ele apenas sussurrou perto dela, em um tom firme.
- Segure-se firme.
Não compreendeu ou teve tempo de questionar, em poucos segundos um enorme lobo a empurrou e jogou-a sobre seu lombo. Logo o vento cortava o rosto de Branca e agitava sua capa ao vento, ela estava sendo carregada sobre um lobo, que corria mais que a égua da outra noite. A paisagem passava totalmente borrada para Branca, enquanto os uivos ao longe diminuíam, marcando que eles se afastavam da alcateia. Ela se debruçou sobre as costas do animal, abafando gritinhos que surgiam em sua garganta e tentando desviar de galhos que acertavam seu rosto na correria. Segurou com força nas costas dele, sentindo puxar alguns pelos para que não caísse.
Nos primeiros minutos, Branca estava assustada e sem entender bem o que acontecia, mas quanto mais se acostumava à ele, apoiou o rosto contra suas costas, conseguindo escutar o bater acelerado do coração dele, junto a uma respiração pesada e cansada. Branca não sabia o que era certo e errado agora, não sabia se podia ou não confia nele, mas de uma coisa ela tinha certeza; naquele instante, ele apenas estava a protegendo.
Uma hora descobriria quem foi o responsável por levar sua avó -talvez até a matado-, mas agora, estava mais preocupada em abaixar o rosto para desviar do vento cortante e de galhos, enquanto o animal corria entre diversos pinheiros e estradas de neve. Os uivos ficaram muito, muito ao longe, até sumirem de vez.
Minutos, longos minutos, passarem-se até o lobo cravar as patas na neve, totalmente ofegante e com o peito se contraindo e aumentando, conforme o diafragma descia e as costelas subiam. Estava cansado, Branca imaginava que se fosse ela que tivesse corrido todo aquele caminho, teria desmaiado na metade. Desceu do animal quando entendeu que haviam chegado à seu destino final. Estavam sobre uma colina de pedras, um pouco distantes do vilarejo de Branca, podendo ser observado à frente deles.
- Eu não lembro do trajeto ser tão longo assim. - Branca respondeu, perplexa.
- Tive que fazer um caminho mais longo, contornar a floresta. - Killian respondeu, já em sua forma humana.
- Por quê?
Ele franziu o cenho, recuperando seu fôlego e a observando.
- Para despistar os lobos, claro. Se fizesse o caminho direto e mais curto, eles teriam nos encontrado com facilidade. Eu apenas os despistei.


Branca concordou levemente com a cabeça, pensando que eles não teriam chances com uma alcateia inteira, caso os lobos os encontrassem. A atmosfera parecia menos densa ali, como uma tempestade que ia embora apenas para dar lugar a paz, pouco a pouco, o céu limpo revelava muitas estrelas.
Branca admirou-o por segundos, até voltar sua atenção ao rapaz atrás dela.
- Obrigada.
- Pelo o quê?
- Por ter me salvado... de novo.
Branca sentiu-se ridícula, aquela devia ser a segunda ou terceira vez ele a salvava, depois do carroceiro e o lobo cinzento na floresta outro dia. Parecia uma criança que toda hora era tirada de uma enrascada por um adulto. Era estúpido.
Sentindo os ombros tremerem de frio e ainda abalada, Branca assustou-se facilmente com o toque do jovem, colocando a palma da mão sobre o topo da cabeça dela, afagando-a.
- Quando entramos em um novo ambiente, é a mesma coisa que um homem entrar em um campo de guerra, um mundo cruel e escuro que pouco a pouco, ele aprender a sobreviver.
- Você sobreviveu a algum novo ambiente?
- Eu apenas me acostumei com a minha vida.
Ele retirou a mão da cabeça dela, afastando-se para trás com um ar de indiferença.
Branca sentiu um leve arrepio subir pela espinha, mesmo não compreendendo ao certo o que ele dizia. Ela olhou para seu vilarejo, observando que um grande aglomerado de luzes de casas estavam acessas e algumas pessoas nas ruas, carregando o que pareciam lamparinas e tochas. Engoliu em seco. Haviam descoberto sua fuga? Ou haviam visto o buraco no muro na madeira velha? Céus, ela mal podia esperar para que aquele dia chegasse ao fim.
Um pouco desajeitada, tentou descer as primeiras pedras, escorregando na superfície rochosa úmida e tentando se apoiar desesperadamente em outras rochas ou pequenos galhos presos e suspensos no ar. Levantou sua cabeça, notando que o rapaz a encarava distante, com as mãos enfiadas no bolso do capuz e com o canto do lábio apertado e levantado para o lado, exibindo um sorrisinho, junto ao cenho levantado em alegria. Ele deixou escapar um riso nasal e aquilo foi o suficiente para estressar Branca.
- Você vai ficar parado aí olhando ou vai fazer alguma coisa?
- Há dois minutos atrás você estava reclamando de ser resgatada.
- É diferente, seu...!
A sola das botas escorregou um pouco, fazendo Branca soltar um gritinho desesperado e segurar com forças nas rochas acima, tentando de uma forma fracassada escalar a colina. Se antes ela não conseguia descer, agora não conseguia subir novamente. Estava presa em uma ladeira escorregadia.
Observando aquela cena, Killian se aproximou e ajoelhou-se no topo, há centímetros acima de Branca.
- Se você pedir "por favor" quem sabe eu não...
- Nunca!
- Bom, tudo bem. - Ele deu de ombros e se levantou, caminhando novamente até as árvores. - Até mais!
Branca escutou os passos dele afastando-se sobre a neve e agitando os galhos dos pinheiros, a jovem sentiu seu coração disparar em desespero, tentando de uma forma apressada escalar as rochas e puxar os galhos. Branca só conseguiu enxergar o topo da cabeça castanha até ver o rapaz encostado em um dos troncos das árvores, com os braços cruzados e cabeça virada para o lado. O sorriso travesso ainda cravado nos lábios quando notou-a ali. Branca cerrou os dentes, frustrada e querendo levantar-se o mais rápido possível. Quando estava pronta para cravar as unhas na neve, sua bota escorregou em uma rocha e todo seu corpo deslizou colina abaixo. Por sorte Branca usava a capa que não a machucava tanto, mas sentia as inúmeras pedras roçando sua barriga. Ela cobriu o rosto com as mãos, dando gritinhos medrosos até sentir a bunda amortecer na terra molhada.
Levantou-se, observando as roupas estarem um trapo, sujas, amassadas e úmidas, mas por sorte sua pele não estava tão machucada, apenas com leves cortes e pequenas marcas de batida. Virou-se, olhando para o topo da colina onde Killian a observava parado na borda, com os olhos arregalados e a boca contorcida em preocupação. Mas quando a jovem levantou-se o encarando mal-humorada, a expressão se desfez para alívio e então indiferença.


- Não precisei da sua ajuda! - Branca respondeu.
A jovem apenas começou a caminhar para os muros do vilarejo, sem olhar para trás para checar se o rapaz-lobo ainda estava lá, mesmo que conseguisse sentir o olhar dele queimando suas costas, por um segundo, ela parou e olhou para trás. O jovem estava lá, agora como um lobo e observando de longe ir para o vilarejo. Branca encarou seus olhos.
- Eu ainda não confio totalmente em você ou que não levou minha avó embora. - Ela disse, rispidamente. - Eu voltarei.
Mesmo com a raiva daquele momento, ela não desistiria de ir atrás dele e descobrir quem desapareceu com sua avó. Por ela, Branca era capaz de ir até o fim do mundo. Ela não desistiria tão fácil, sabia que algo naquela história não cheirava bem.
Dito isso, voltou à caminhar em direção aos muros feitos de troncos de árvores, agora com mais luzes iluminando o vilarejo em seu interior. Apressou-se, sentindo que realmente já havia dando por sua falta.
Branca bateu com força nas portas do vilarejo que imediatamente foram abertas por diversos moradores a encarando espantados e assustados, usando camisolas, pijamas ou casacos de pele. O pai de Branca surgiu na multidão, com uma expressão assustada.
- Menina! - A expressão passou para raiva. - Aonde você se meteu à essa hora da noite? Sua mãe viu que não estava em casa, procuramos por toda parte por você!
- Fui andar pela floresta, pai!
Branca passou pela multidão, totalmente brava. Ela nem ligava para todos a encarando perplexos, com as roupas esfarrapadas e cara de que a qualquer minuto bateria em alguém. Ela marchava pelas ruas, sentindo uma leve dor pelos joelhos e sendo seguida pelo pai esbravejando e exigindo por explicações. Branca estava molhada, suja, machucada e totalmente irritada. Ela apenas queria sua cama naquele instante. Outro dia procuraria o maldito lobo.