O homem invisível

A morte, suas cores e cadáveres judaicos.


Caro leitor, deve lhe informar de que a partir de agora, infelizmente, não poderei mais ocultar os fatos, não poderei mais contar apenas a parte boa da história, pois afinal, não há parte boa. Sou obrigada contar o que acontece ao nosso carregador de sonhos, mesmo que isso, sinceramente, me doa. Sinto-lhe dizer que não posso fazer absolutamente nada para mudar tudo que aconteceu naqueles anos cor da morte, sou apenas uma criatura observadora, que silenciosamente analisa; completamente incrédula, até que ponto um ser humano é capaz de ir apenas pelo poder e até mesmo, pela raiva que o domina.

Com toda a certeza, você tem uma trilha sonora em sua vida, não é mesmo? Uma música especifica para cada caso, para cada acontecimento... Bom, nosso homem invisível também tem uma trilha sonora, principalmente nesse momento, em que está trancafiado em um local onde não tem nem ao menos como sentar-se para descansar as pernas, um local escuro e praticamente sem ar, se não fosse pelos minúsculos furos feitos na pequena porta de ferro pela qual foi forçado a entrar. Porém, com toda a convicção do mundo, lhe confirmo que a trilha sonora de nosso homem invisível não é nem de longe igual a sua. A trilha sonora de um judeu em campo de concentração se resume a gritos, choros, ou até mesmo ao silêncio da morte. Não muito longe do local em que nosso carregador de sonhos está trancafiado, uma verdadeira fornalha humana está sendo ligada e acabando lentamente com centenas de judeus de uma única vez, prisioneiros iludidos que chegaram a aquele local pensando que iriam tomar um simples banho.

Uma fumaça ainda mais negra do que a que já paira naturalmente sobre o local, se espalha por tudo, entrando diretamente ao “quartinho” de Max Vandenburg. Ele reconhece aquele cheiro, qualquer um reconheceria. Fecha os olhos automaticamente, tentando não pensar no que estava acontecendo, mas temos que combinar de que sempre que tentamos não pensar em algo, é quando pensamos mais diretamente. Um misto de raiva e tristeza se apodera de seu corpo, até seu último ligamento. Não consegue entender o porquê tudo aquilo está acontecendo, sente seu sangue ferver com a ideia de tamanha injustiça que está ocorrendo contra sua família, seu povo. Se sente poderoso o suficiente para lutar novamente contra o amado Führer, arrancar lentamente cada fio de seu bigode milimetricamente aparado é muito pouco para tudo que ele causou a Max Vandenburg. Caro leitor, a raiva é um sentimento que nos corrompe, nos possui e nunca mais nos liberta, nos consome, e é exatamente isso que está fazendo com nosso homem invisível. Novamente, um judeu solitário e um idolatrado ditador traçam sua guerra. Adolf Hitler ri na cara do judeu que inutilmente tenta lutar. Max sente uma pontada forte em sua barriga e sabe que aquilo é resultado não só da fome, mas um sinal de seu corpo que provavelmente não agüentará por muito tempo. Abre seus olhos e se contrai, a dor o invade, juntamente com a raiva e sua profunda melancolia. Se sente como um pássaro trancafiado, com toda a liberdade tomada, e percebe que não há nada mais injusto que isso nesse mundo.

Seu rosto arde, as feridas abertas sangram ininterruptamente, é tentado com a ideia de desistir, sua maior vontade torna-se pedir para que os idolatrados soldados acabem logo com seu sofrimento com apenas um tiro da poderosa arma nazista. A lembrança de sua família, de sua mãe que foi obrigado a abandonar o tortura. Pensa em tudo que viveu, na vida que parecia tão bela, tão pacifica... Caro leitor, tenho um pequeno comentário sobre isso. A paz é o maior desejo da humanidade, isso é um fato, é o meu maior desejo também, apesar de minha extrema ironia, não pense que não tenho sentimentos. A paz existe sim, mas infelizmente lhe digo que está muito longe de ser conquistada completamente, com êxito. Enquanto houver dinheiro, poder, ganância e pessoas como Adolf Hitler e seus escudeiros, a paz jamais reinara por completo sobre nós.

Depois de mais uma viagem filosófica de minha parte, voltaremos para o nosso homem invisível, que se vê torturado, tanto fisicamente, trancafiado em um cubículo desumano, quanto psicologicamente. As lembranças de sua família deram lugar a uma lembrança ainda mais, digamos, melancólica e torturante, essa lembrança leva o nome de Liesel Meminger, a pequena garota loira, a única coisa que faz nosso pequeno e frágil homem invisível ter esperança sobre o mundo. Recorda-se das vezes em que eles conversavam no porão onde se escondia como um rato, nas descrições que ela sempre lhe dava sobre como o tempo estava, já que nosso judeu jamais podia subir para ver a luz do dia, para ele, tudo sempre foi noite. As lembranças vão mais além, lembra-se do amor que ela tinha pela leitura, e por livros, assim como ele, o que fazia-o alimentar tal esperança dentro de si. Lembranças da despedida, de ver seus olhos inocentes marejados de lágrimas pedindo para que ficasse, lembranças até mesmo das vezes em que se juntavam e ficavam horas caçoando de Führer . Sentiu o nó preso em sua garganta, se desprender em um choro, um choro guardado a muito tempo. As lágrimas lavavam seu rosto, passavam sobre suas feridas, causando um ardor enorme, mas nosso homem invisível já havia passado por dores muito piores, fique convicto disso. A raiva passa momentaneamente, a melancolia extrema o possui, o devora. O desejo maior, torna-se o de reencontrar Liesel e lhe agradecer por ter sido sua irmã, a agradecer por ter sido sua esperança por todo esse tempo. Mas ele sente que isso não é mais possível, a convicção de que não sairá vivo do parque nazista da morte é algo extremamente forte dentro de si. Em meio às lágrimas, a inconsciência o embala, e ele pende para o lado, deixando todas as suas dores o invadirem uma vez mais, antes de cair em um sono tortuoso. Mesmo em pé, o cansaço de seu corpo fala mais alto.

Nosso judeu tem um sono sem sonhos, seu cérebro está cansado demais para conseguir reproduzir algo. Tudo parece bem, mas apenas parece, pois enquanto nosso homem invisível dormia, milhares de corpos são retirados de dentro das imensas fornalhas humanas; crianças, mulheres e idosos mortos apenas pelo fato de não servirem muito para o trabalho escravo e nazista. O carregador de sonhos teve seu sono interrompido por inúmeros sons de tiro, gritos. Logo após o silêncio da morte reina novamente.

Ouviu barulhos na pequena porta que o trancafiava naquele local e sentiu todos os seus órgãos, músculos e ligamentos se contraírem, sabia que só o tirariam dali para fazer coisa muito pior.

– Acho bom você sair antes que eu tenha que atirar no meio de seus miolos imundos, judeuzinho imprestável. – a voz da própria morte gritava do outro lado. Max sabia que não havia alternativa. Com muita dor, se viu na obrigação de sair daquele local, que pior que fosse, era o único lugar seguro do parque nazista. Um soco atingiu sua face, levando-o ao chão por sua fraqueza. Um chute em sua caixa torácica fez minúsculas gotículas de sangue voarem para fora. – Bom dia, como passou a noite? Temos que combinar de que já passou da hora de acordar, não é mesmo? Já estou trabalhando faz tanto tempo. – o soldado ria olhando para Max jogado ao chão. Segurava um fuzil em suas mãos, provavelmente o causador dos ruídos que acordaram nosso homem invisível. – Então, você vai se levantar ou vou ser obrigado a acabar com sua vida de merda aqui mesmo?

Nosso carregador de sonhos não consegue falar uma única palavra, o medo o deixa completamente mudo, mas ele sabe que não pode deixar que isso transpareça de maneira alguma. Dificilmente, sentindo cada milímetro de seu corpo protestar em dores absurdas, ele se levanta e começa a caminhar, suas pernas não agüentam de tanta dor, mas ele sussurra para si mesmo que não pode desistir, não em um momento como esse.

Suas pernas doem, sua maior vontade é pedir para que aquele soldado o mate se é isso que quer, pois sabe que uma hora ou outra eles iram conseguir, o idolatrado Führer enfim irá vencer. Sente a ponta do fuzil nazista encostar em sua nuca enquanto caminha e isso faz seu coração bater ainda mais forte, se isso é possível.

O céu continua cinza, ainda mais cinza que o normal, um negro constante, é dia, mas até mesmo o céu protesta contra a guerra. A bandeira nazista dança em todos os lugares com seu vermelho cor de sangue. Caro leitor, lhe digo que essa é a verdadeira combinação mortal, o céu e a bandeira, o negro e o vermelho, vermelho de todos os sangues derramados injustamente, negro de luto, ambos compunham a cor da guerra, a verdadeira cor da morte.

Max observa tudo e a dor aumenta e invade ainda mais seu ser. Há um espaço que pode ser considerado um pátio do terror onde centenas de mortos vivos circulam, ambos igualmente vestidos como nosso homem invisível. Um muro a sua frente chama sua atenção, um muro cinza, que contrasta perfeitamente com o negro do céu cor de morte. Aquele muro chama sua atenção pelo simples fato de que há centenas de pessoas caídas a sua frente, completamente sem vida. O sangue judeu escorre pelo chão daquela espécie de pátio e sua cor vermelha contrasta com o vermelho das bandeiras que dançam no alto, tudo está em uma perfeita harmonia mortal.

– Vejo que já avistou o que terá que fazer. – o soldado ri atrás do judeu. – O seu trabalho é muito simples, terá apenas que pegar aqueles corpos caídos ali e colocá-los naquele buraco, ali à frente. – ele apontou para um lugar distante com seu fuzil. – E se parar alguma vez antes de terminar, vai acabar como eles, judeu imprestável.

Seu estômago se revirou, sentiu uma pontada em sua cabeça, era demais para um judeu ter que recolher o corpo de sua própria população. Sentiu seu coração parar de bater por um segundo e quase pediu para que fosse fuzilado assim como antes. Mas, se lembrou de toda sua jornada até chegar a aquele local, se fosse para morrer, morreria tentando salvar o mundo das atrocidades daquele Führer fajutamente heróico.

Um cano de fuzil apontou em sua cabeça e se sentiu obrigado a começar o trabalho desumano. O homem invisível cambaleava em direção ao monte de cadáveres judeus. O cheiro da morte paira para sempre naquele local, até nos dias atuais. Uma pequena garotinha foi o primeiro cadáver que Max pegou para carregar, vendo-a, a fraqueza o dominou e ele teve que encontrar forças até mesmo onde nunca imaginou ter para se manter de pé e não chorar em frente ao herói nazista que ainda apontava uma arma para sua cabeça. Fechou os olhos, sugou todo o ar a sua volta, o verdadeiro cheiro da morte invadiu suas narinas. A dor o dominou, não apenas a dor física, acima de tudo a dor psicológica era praticamente insuportável. Ao ver aquela pequena e inocente criatura sem vida, nosso pequeno homem invisível sentiu sua esperança indo embora junto com cada gota de sangue que escorria daquele corpo sem vida. Em sua mente, apenas um nome veio, o nome de uma garotinha que considerava como sua irmã caçula, Liesel Meminger.