O homem do leme

Capítulo Único




A casa de um pirata é o mar.

— Capitão?

Sparrow ergueu a cabeça e voltou os olhos cansados para Mr. Gibbs. O último membro de sua tripulação. A essa altura, estavam todos mortos, os outros. Perdidos no mar ou no tempo.

— Quer descansar, Capitão? — Gibbs perguntou novamente, certo de que Sparrow não o havia ouvido de primeira. Havia anos que sua audição não era mais a mesma, desde a explosão em Tortuga.

Jack observou o rosto de seu marinheiro fiel por um segundo, quase como se não o reconhecesse. As rugas se espalhavam por sua testa e desciam dos cantos de seus olhos. Mas eles, os olhos, permaneciam os mesmos. O mesmo tom esverdeado que refletia o mar, e a mesma luz. Sparrow sorriu.

— Não, eu estou muito bem, Mr. Gibbs. Vá você.

Gibbs não se moveu, hesitante. Jack parecia mais frágil nos últimos dias. Não lhe agradava a ideia de deixá-lo sozinho no convés àquela hora da noite. O mar estava calmo, era verdade, mas se havia uma coisa que aquele velho pirata havia aprendido era que não se podia confiar numa bonança.

Sozinho na noite

Um barco ruma para onde vai.

Uma luz no escuro brilha a direito

Ofusca as demais

— Isso é uma ordem, Mr. Gibbs. — Jack acrescentou, usando o tom que chamava de “voz do capitão”.

— Nesse caso, boa noite, Capitão. Chame se precisar.

— Desde quando eu preciso de ajuda para navegar o meu navio?

Gibbs não retrucou. Batendo uma continência um pouco lenta demais, ele se retirou, deixando Sparrow sozinho em sua velha cadeira no convés.

Jack pegou a garrafa de rum no chão ao seu lado e tomou um gole direto do gargalo, como era seu costume. A bebida desceu rascante por sua garganta, aquecendo-o de dentro para fora. A noite estava fria. As estrelas no alto pareciam pequenos pontos de gelo.

Sparrow tomou outro gole antes de se levantar com um resmungo dolorido. As juntas lhe doíam. Ele tentou esticar os braços no alto da cabeça, mas mal conseguiu elevá-los à metade da altura antes que as costas reclamassem. Fingindo para si mesmo que nada tinha acontecido, ele pousou a garrafa agora vazia na cadeira e se dirigiu ao leme.

Pôr as mãos no leme sempre o fazia se sentir melhor. Ele acariciou a madeira com carinho, com a reverência que nenhuma de suas muitas amantes jamais conheceu. Ali, ele era o Capitão Jack Sparrow. E aquele era seu Pérola Negra, o grande amor de sua vida. Por ele, ele havia singrado os Sete Mares. Ele havia sangrado os Sete Mares. E faria tudo de novo. Ah! Ele faria...

Por um momento, ele se permitiu fazer algo que não fazia com frequência: recordar. Sparrow não era o tipo de homem que pensava no passado. Na verdade, ele não entendia muito bem o conceito. Pensar no passado não parecia fazer sentido para quem vivia o presente com toda a intensidade. Mas naquele momento, ele se deixou navegar nas lembranças.

Ele ainda se lembrava de quando a negociação com Davy Jones havia lhe garantido a posse do Pérola. Jamais esqueceria a sensação de pisar naquele convés, pôr aquele chapéu na cabeça e segurar aquele leme. Capitão Jack Sparrow do Pérola Negra.

É claro, houve o problema com o motim. Mas ele não se deteve nesses detalhes por muito tempo. Não importava. O Pérola sempre voltava para ele, e ele para o Pérola. Inseparáveis, eles eram. Capitão e navio, um só ser. Fidelidade absoluta, um casamento eterno. O único matrimônio que lhe interessava, aliás.

Mas ela era linda, Elizabeth. Perigosamente tentadora. E houve Angélica também, a seu modo ainda mais sedutora que Elizabeth, e certamente mais perigosa. Havia outras mulheres, inúmeras, cujos nomes ele não recordava mais, nem mesmo depois de todos os tapas na cara, metade dos quais ele não tinha certeza de que havia merecido. De todo modo, não seriam elas, nenhuma delas, a amarrá-lo.

Afinal, nem mesmo a morte havia conseguido tal feito. Ele a havia enganado diversas versas, e mesmo quando ela o fisgou, ele conseguiu retornar. Não, nem mesmo a morte poderia mudá-lo. Não o Capitão Jack Sparrow. Esse, já diziam as lendas, era indomável, imutável, inalterável.

E mais que uma onda, mais que uma maré

Tentaram prendê-lo impor-lhe uma fé

Mas, vogando à vontade, rompendo a saudade

Vai quem já nada teme, vai o homem do leme

Ele sorriu levemente, sacudindo a cabeça para espantar as memórias, e olhou para o alto. Quando respirou, vapor saiu de sua boca. O frio fazia mal a seus ossos. Tudo doía. Ele fingiu não perceber, sacudindo os ombros e afastando os cabelos esbranquiçados do rosto, sorrindo para si mesmo como se estivesse imensamente satisfeito.

E uma vontade de rir, nasce do fundo do ser

E uma vontade de ir, correr o mundo e partir

A vida é sempre a perder

Depois de um tempo, porém, conforme o silêncio crescia e só a voz do mar falava, o sorriso desapareceu.

Jack apertou as mãos no leme com toda a força que lhe restava, que aliás não era muita. Ele não queria lembrar. De quem tinha sido a ideia de lembrar?

O grande Capitão Jack Sparrow estava sozinho.

No fundo do mar

Jazem os outros, os que lá ficaram;

Em dias cinzentos

Descanso eterno lá encontraram

Só o mar lhe falava, só o mar lhe ouvia. Aqueles que há tempos o ouviam e que durante tempos o ouviram já não estavam mais ali para isso. Nem sua tripulação traiçoeira, nem a linda Elizabeth, nem aqueles dois cujo nome ele nunca se lembrava. É claro, havia Gibbs. O bom e velho Mr. Gibbs. Sim, durante muito tempo, houve Mr. Gibbs.

Foi numa noite muito mais cinzenta, não foi? Jack não queria lembrar.

Eu não te dei autorização para ir, Mr. Gibbs.

— Mr. Gibbs! Compareça ao convés imediatamente!

Apenas o mar respondeu.

— Mr. Gibbs! O seu capitão ordena que compareça ao convés neste instante!

E mais que uma onda, mais que uma maré

Tentaram prendê-lo, impor-lhe uma fé

Mas, vogando à vontade, rompendo a saudade

Vai quem já nada teme, vai o homem do leme

— Maldito! Eu vou fazê-lo lavar esse convés de cima a baixo! — Sparrow empurrou o leme, afastando-se dele. — E o mastro também! — Acrescentou, erguendo o indicador para o céu.

Dando as costas para o leme, ele ajeitou o chapéu e riu de si para si.

— Desde quando eu preciso de ajuda para comandar o meu navio?

E uma vontade de rir, nasce do fundo do ser

E uma vontade de ir, correr o mundo e partir

A vida é sempre a perder

Devagar, ele andou até a popa do velho Pérola e se apoiou na amurada, olhando as águas escuras lá embaixo. O mar continuava, indefinidamente. Não importava quanto tempo passava ou quanta água passava. O mar continuava.

— Yo ho, yo ho, uma vida de pirata para mim... — Ele começou a cantarolar, mas logo se calou. Sua voz estava rouca e fraca. A garganta não dava mais para isso. Ele fechou os olhos e silenciosamente culpou o rum. Sim, com certeza, era tudo culpa do rum. Maldito néctar dos deuses!

Jack Sparrow sabia que aquela era sua última chance. Não havia mais ninguém disposto a ir até o fim do mundo por ele.

E então ele fez o que havia jurado nunca fazer. Uma jura silenciosa, feita apenas para si mesmo. A única promessa a que ele havia se mantido fiel durante toda a vida. E é claro, agora era sua obrigação descumpri-la. Piratas não mantêm promessas. Está no Código. Ou deveria estar.

Jack Sparrow quebrou sua promessa suprema: ele se arrependeu.

No último instante, o grande Capitão Sparrow se arrependeu. De ser sozinho. De ser o homem do Pérola. De não ter voltado atrás naquela vez. E na outra. E naquela outra também. De tê-la deixado na ilha. De tê-lo deixado morrer. De ter roubado e mentido. De ser.

No fundo horizonte

Sopra o murmúrio para onde vai

No fundo do tempo

Foge o futuro, é tarde demais

Mas agora é tarde demais.

Ele reabriu os olhos para encarar o horizonte distante. Talvez fosse impressão, mas ele achava que as águas estavam começando a dourar. Não, não era impressão. Ele é o Capitão Jack Sparrow. A única coisa que ele já entendeu foi o mar.

Mais uma vez, ele acariciou a madeira do Pérola.

— Ai! — Ele puxou a mão rapidamente, estreitando os olhos ao olhar para o dedo em que uma pequena farpa cravava as garras.

E sem explicação, Jack Sparrow pôs-se a rir. A rir alto, atirando a cabeça para trás.

E uma vontade de rir nasce do fundo do ser

E uma vontade de ir, correr o mundo e partir

A vida é sempre a perder

Quando a risada desapareceu, dando lugar a um sorriso de canto sarcástico, ele segurou com força na amurada mais uma vez, ignorando a pontada aguda no local em que a farpa ainda se agarrava a ele. Dando impulso de uma vez, sem se permitir hesitar, ele saltou. Bastava esperar a carona do Holandês Voador. E o homem do leme nada teme.

Jack Sparrow está em casa.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.