A escuridão toma conta do ambiente, um quarto de piso amadeirado em um amarelo suave, paredes azul fosco, cama de casal de lençol vermelho acetinado, fronhas da mesma cor, penteadeira branca com os pertences de mamãe: brincos, pulseiras, maquiagem, escova de cabelo. Há também um guarda-roupa de solteiro marrom claro, sem detalhes, no teto e um lustre que mamãe diz que é de cristal; divisória para a cozinha com geladeira preta, fogão cor cinza, armário da mesma cor da geladeira, pia para lavar louça e máquina de lavar; divisória par a sala de estar com sofá grande na cor azul-celeste, televisão 62 polegadas na parede, aparelho DVD sobre a mesa de centro, no centro da mesa e um vaso com flor artificial para enfeitar.

Eu? Estou na janela, na parte de dentro, observando o amanhecer com seus matizes de azul, laranja fosco, rosa e roxo suave.

Mamãe está dormindo, mas noto que ela levanta e vem até a janela, onde estou e pára. Sim, mamãe acorda cedo, ela é advogada, vai enfrentar um caso importante hoje, espero sinceramente que ela ganhe a causa.

Não entendo nada das leis dos humanos, só quero que mamãe seja feliz, se isso a fizer feliz estarei feliz também.

— Bom dia, Amarilis. — ela me diz, morrendo de sono e com hálito felino.

Sério, já sentiram o hálito de um gato? Imagine um bichano que toma banho toda hora, todos os dias lambendo suas partes íntimas, seja no cio ou quando fazem suas necessidades, que gostoso que é.

Assim é o hálito da mamãe de manhã. Bom dia, mamãe! Ela não me ouve, porém eu fui educada, claro.

Ela se afasta para se limpar. Diferente dos gatos, mamãe é discreta e não se lambe, ela toma banho, escova os dentes e se arruma para ir trabalhar. Alguns minutos depois, ela sai do banheiro, devidamente banhada. Adoro o cheiro dela, é gostoso, ela usa essência de flores vermelhas e por mais que a essência tenha química, o cheiro é gostoso, só não sei se limpa.

Não demora muito para que ela me dê de beber, amo quando ela faz isso, é tão gostoso beber água, nem imaginas o quanto. Depois ela se afasta, levando o irrigador de alça consigo, preparando o seu desjejum, o qual cheira bastante. Se pudesse comer faria companhia a ela, certamente.

O Sol termina de despontar no horizonte, começando a acordar a cidade de Ametist, em Lírio da Esperança. Recebo os raios solares com tremenda felicidade, sentindo a água escorrer por meu corpo, meu rosto ainda molhado do recente banho matinal. Amo o Sol, ele é um divisor de águas na minha vida, me faz companhia durante o dia, entretanto prefiro os raios solares matutinos, são mais carinhosas que os vespertinos.

Mamãe termina de tomar café, ajeita a própria bagunça e vai se arrumar. Ficando pronta em alguns minutos, veio até mim, acariciou meu rosto e disse:

— Até mais, Amarilis.

Até, mamãe. Ela não me ouve novamente, sentirei saudades dela, como sinto todas as vezes que ela vai trabalhar, ela volta e abre minimamente a janela, deixando os raios solares tocarem meu rosto, fazendo-me sentir viva.

Mamãe foi embora, sei disso, porque ouço a porta bater atrás de mim, a cidade de Ametist começa a acordar, os carros começam a andar nas ruas, alguns obedecendo os sinais de trânsito, outros não. A solidão me abraça, enquanto aprecio a vista, saboreando o gosto do vento a soprar minha franja, havendo a presença de formigas a andar sobre o prédio onde estou.

Xô! Vai embora, formiguinha, mamãe não te convidou não. Só não xispo a formiga daqui, pelo fato de que se o fizer, espalharei água do meu banhinho e isso não quero, pronto.

A bendita formiga vem até mim, sobe pelo meu vestido marrom e encontra a anágua do meu vestido, subindo por meu corpo até minha mão direita. Sinto sua mordida em minha mão. Dor. Dói muito! A mordida é forte e sinto-a levar uma parte de minha mão embora. Choro.

Minha mão direita, agora com um buraco abaixo da palma, com a esquerda normal. Lamento. Daqui a pouco uma colônia vai querer me comer, não tenho açúcar, só para te lembrar dona formiga.

Não sei o que as formigas têm contra mim, elas saem de suas casas para se alimentar de moças recatadas como eu. Se fosse para acasalar tudo bem, mas não é, cara.

Acho que quando o Pai criou as moças silenciosas como eu, criou a formiga para ser vegetariana, porque meu Deus, que tortura danada! A abençoada formiguinha ( para não dizer outra coisa), levou parte da minha mão nas costas, nas costas, essa formiga além de esfomeada é pedreira.

Aí tu me perguntas: por que formiga pedreira, Amarilis? Porque amadinhos, essa formiga esfomeada passa o dia trabalhando, come e ainda leva parte da mão nas costas como se fosse uma saca de cimento, sabes?

Ninguém merece isso não, sinceramente. A vida é assim, fazer o que, não é? Temos de nos conformar com o que nos acontece, não podemos reclamar de tudo de ruim que nos acontece, temos de agradecer a Ele por tudo de bom e ruim que nos acontece, não sejamos mal agradecidos.

No meu caso, não posso fazer nada para evitar ser comida, ou talvez eu possa, não pense que por eu ser uma flor que vive em locais fechados sou indefesa. Meu espírito sai de meu corpo e voo até a formiga, dando um peteleco nela, fazendo-a cair de lado e o pedaço da minha mão do outro lado.

Rio internamente, mas vejo-a levantar-se e pegar a folha, seguindo em frente, sem olhar para trás, na verdade meu corpo é de uma flor e meu espírito de uma fada. Estou vivendo como uma flor, porque infelizmente me desencantei do mundo das fadas, aí a rainha das fadas me concedeu essa dádiva e cá estou eu.

Não acho ruim a vida que levo, acho muito bom, eu era uma fada das flores e acabei morrendo no inverno; nós fadas não somos eternas, também morremos. Fui encontrada morta sobre minha cama e a rainha me concedeu a chance de reeencarnar, mas me ressuscitou como uma flor; estou com a mamãe desde que sou uma semente.

Mamãe era uma pessoa sozinha, sempre gostou da natureza, tanto é que ela é vegetaria, evita comer carne, só que ela já passou mal por causa disso, me preocupo com ela, embora não pareça. Mamãe a ficar no hospital umas duas ou três vezes por falta de

proteína no organismo, o que deixou meu coração quase a tocar o céu e apertar a mão do Altíssimo.

Suspiro. Amo muito minha mãe, chamo-a de mãe, porque ela sempre cuidou de mim. Até quando não queria colo, ela estava lá me dando amor e carinho, cresci viçosa e linda, como ela mesma diz.

Mamãe não tem ninguém para amar, pelo menos que eu tenha visto, talvez os homens que cruzaram o caminho dela não queiram compromisso sério, o que é bem triste. Talvez seja esse comportamento que ela chame de molecagem por parte dos homens, acredito que nem todos são iguais, afinal cada um merece o benefício da dúvida.

Não concordas? Não? Vai fazer companhia para a formiga pedreira então, vai. Deixe-me aqui com meus botões, se não trouxestes a linha e a agulha para fazer um bordado, pode retirar-se.

Nem tudo é o que parece, muitas pessoas reclamam da vida que levam, mas esquecem que quem as colocou no lugar que estão foram elas mesmas, ninguém mais. Claro que não pode-se comparar uma coisa a outra, como a miséria por exemplo.

Um miserável não escolhe ser miserável. Os representantes do país ao qual pertencem é que optam por deixar seu povo à míngua, como também escolhem dar do bom e do melhor à alta classe. Reclamam de direitos, todavia além de não saber quais são seus direitos, não têm noção de por onde começar a correr atrás deles.

Tudo o que lhes aborrece vira motivo de processo: mamãe chegou em casa reclamando uma vez que as pessoas são encrenqueiras, que elas processam outras pessoas apenas para implicar. Quando veem que a outra parte não liga mais, desistem da implicância e do processo, deixando os envolvidos sem entender nada.

Deves estar se perguntando o que sou, certo? Bem, isso não vem ao caso agora, tudo o que precisas saber é que não sou advogada como minha mãe, se fosse seria advogada ambientalista, pare defender as causas referentes à natureza.

Foi-se a época que haviam campos verdejantes, onde as flores reinavam sossegadas, o ar, puro, as árvores frutíferas em toda sua vastidão verde. Foi-se também, a paz dos seus moradores: os animais.

Às vezes, dá vontade de mandar alguns humanos tomar no meio do botão! Eu, hein? É cada absurdo que mamãe conta, que fico horrorizada, sério mesmo, nunca uma raça tão desunida quanto a humana.

Toda hora em guerra, matando pessoas, subjugando os semelhantes às suas vontades, humilhando. Ai! Dá não, desculpa, só tenho um lugar para mandar essas pessoas, sabes qual é? À baixa da égua.

Isso mesmo, mando essas pessoas para lá, com suas esquisitices e fetiches terríveis! Daqui a pouco vão usar o caule de uma rosa como objeto de lascívia (no caso das mulheres), como se romantismo não importasse nem um pouco!

Acredito que o romantismo é importante sim, o problema é a vergonha que toma conta das pessoas. Algumas pessoas mandam outras tomarem no botão, mas têm vergonha de declarar seu amor.

Outras falam que música ruim é legal, que a parceira é gostosa, mas não dizem eu te amo com a mesma facilidade que falam de suas conquistas, as quais, muitas vezes são inventadas só para impressionar a garota. Esse tipo de coisa me surpreende muito mesmo. Já que se ocupam em falar das pedras, deveriam dedicar um pouco de seu tempo falando das flores também.

Quem sabe assim seria bem melhor, a conversa renderia mais e o jogo de sedução seria infalível.