O conto esquecido.

Não confie em alguém com olhos hipnotizantes.


O dia estava ensolarado e um pouco quente, mas a brisa fresca não me deixava sentir calor.

Eu e Helena conversávamos enquanto a menina me levava para algum lugar que eu desconhecia. Ou melhor: eu a seguia para algum lugar.

—Então eu estou em Flórea? –Perguntei tentando entender um pouco do que estava acontecendo.

—Exatamente.

—E esse reino é dividido em cinco ilhas?

—Sim. Flórea do norte, Flórea do sul, Flórea do oeste, Flórea do leste e Flórea do centro.

Quanta criatividade, pensei comigo mesma.

—Ok, e em qual dessas Flóreas eu estou?

—Flórea central. –Helena respondeu fazendo um gesto estranho com as mãos.

Franzi a testa.

—Não era Flórea do centro?

—Flórea do centro e Flórea central são a mesma coisa. –Ela respondeu revirando os olhos.

—Ata. Quem nasce aqui é o que? Floreiro?

—Claro que não!

—Flóreos e Flóreas? Florienses? –Continuei tentando adivinhar, impedindo que ela respondesse. -Floreses?

— Meu Deus! Não!

Falávamos uma em cima da outra, numa confusão de palavras.

—Flores?

— Será que você pode me deixar falar? –Me calei percebendo que estava sendo irritante.- Obrigada. Quem nasce aqui é Floriano ou Floriana.

Aquiesci.

—Mas, tipo, se você nasce em Flórea do norte, então você é Norte-Floriano?

—Isso. –Helena disse sem paciência.

Um silêncio se instalou entre nós por alguns minutos. Senti-me um pouco irritada com aquilo. Eu queria conversar!

—Me diga mais um pouco sobre esse reino. –Tentei puxar assunto.

—Você não é daqui, não? Por acaso foi enviada por algum reino rival?

—O que? Não! Só por que eu não sou daqui não significa que eu seja uma maníaca.

—Sei... –Falou desconfiada.

—Fala sério! Eu já disse que não sou uma garota do mal querendo provocar uma guerra!

—Então por que não me disse seu nome? Por que não me disse de onde é?

—Talvez porque eu tenha acabado de te conhecer?! –Respondi. Helena revirou os olhos e acelerou o passo. Provavelmente a intenção dela era fugir de mim. Claro que eu não ia desistir da minha “guia”. –É sério isso? Você vai me deixar sozinha em um lugar que eu não conheço? –Perguntei acelerando o passo. Mesmo assim Helena continuou mais adiantada. –Se quer tanto saber meu nome então tudo bem. –Parei, cansada de correr atrás daquela menina idiota. Todos olhavam para nós duas quando eu gritei bem alto em resposta. –Me chamo Líria Catarina!

Helena se virou para mim. Ela usava o capuz vermelho em sua cabeça novamente e eu instantaneamente me lembrei da chapeuzinho vermelho do conto. Ela suspirou e disse:

—Tudo bem estrangeira, pode vir comigo.

Eu corri até ela e continuei a falar:

—Você é sempre assim?

—Assim como?

—Desconfiada, irritante, estressada...

—Não. –Me cortou. – E você? É sempre falante assim?

—Na verdade não.

—Hm.

Ela fez uma grande pausa antes de continuar.

— Seu nome é estranho sabia?

—Todo mundo diz isso. –Falei rindo um pouco. –Quantos anos você tem?

—Dez.

Olhei para ela incrédula. Como assim dez anos? Ela agia como uma garota de pelo menos a minha idade!

—Sério?

—Claro que é sério! E você?

—Eu o que?

—Sua idade, estrangeira.

—Treze e eu prefiro que me chame por um apelido ou pelo meu nome, por favor.

—Certo. Qual é seu apelido?

—Ninguém nunca me chamou por um apelido, então isso significa que pode inventar um para mim. -Imediatamente lembrei-me de como Irmã Joana me chamava e me corrigi.- Quer dizer, já me chamaram de flor e de querida, mas era apenas modo de falar, eu acho.

—Seu apelido pode ser “estrangeira”?

—Não.

—Poxa. –Falou rindo, após fingir estar triste. – Que tal “Lilly”?

—É meio previsível, mas eu gostei. -Falei inflando o peito e endireitando a postura.- Vou te chamar de Leninha.

—Eu não disse que você podia me chamar por um apelido. –Olhei para ela como quem diz “Para de palhaçada.” E ela levantou as mãos em sinal de rendição.–Tudo bem, já parei.

—Vem cá, para onde eu estou te seguindo?

Eu tinha até me esquecido que não sabia para onde ela estava indo. Já estávamos na floresta novamente, só por isso que percebi que ainda não a havia feito essa pergunta.

—Para a casa de uma amiga. Poderemos passar a noite lá.

—Você vai para algum lugar depois disso?

—Eu estou indo para o litoral. Ouvi dizer que é mais fácil conseguir comida lá.

—Essa não seria a função dos seus pais? Por falar nisso, também não seria a função deles te dar um lugar para dormir?

Provavelmente eu não deveria ter perguntado isso, pois imediatamente Helena parou de andar. Seu olhar pareceu perdido e, apenas depois de um certo tempo, ela me respondeu:

—Não quero falar sobre isso.

—Certo. Do que quer falar então?

—Flórea é o maior reino do planeta e é dividido em cinco ilhas, ou sub-reinos. Cada sub-reino tem um rei e, ou, uma rainha. Flórea do norte é o maior sub-reino, governado pelo rei Samuel. Flórea do sul é o segundo maior sub-reino, governado pela rainha Teresa. Flórea do centro, ou Flórea central, é o terceiro maior sub-reino, governado pelo rei Alfredo e pela rainha Clara. O quarto maior sub-reino é Flórea do leste, governada pela rainha Eva. O quinto maior sub-reino, o menor de todos, é Flórea do oeste, governado pelo rei Jacob e pela rainha Camélia. –Ela me bombardeou com várias informações do reino, como se tivesse decorado aquilo de algum livro. Preciso dizer que eu não entendi nada? Acho que não.

—Por que começou a falar isso do nada?

—É sobre isso que eu quero falar. Você não queria saber mais sobre esse reino? –Antes que eu pudesse responder ela completou. -Estou te contando, ué!

—Tudo bem. Pode continuar, se quiser.

—Apesar de Flórea do norte ser o maior sub-reino, o mais rico é Flórea do sul.

—Hm.

—O rei do norte, a rainha do leste e a rainha do sul nunca se casaram nem tiveram filhos, quer dizer, a rainha do sul até teve um filho e quase se casou com o rei do norte, mas isso é outra história. Continuando, a rainha Eva, que governa o leste, tem apenas dezessete anos e busca um marido.

—Só dezessete?

—Ela é filha bastarda da rainha.

Disse como se fosse óbvio.

—Tá, e daí?

—E daí que quando o Rei e o príncipe, o irmão mais velho dela, foram assassinados ela teve que assumir o trono.

—E porque a mãe dela não assumiu?

—Ela não quis. Mais alguma pergunta?

—Falta quanto tempo para chegarmos à casa da sua amiga?

Nós já tínhamos voltado a andar a um bom tempo e eu não via a tal casa em canto algum.

—Uma meia hora.

—Que droga. Não tem um atalho?

—Não. Não um que eu conheça. –Ela respondeu e eu tive uma enorme vontade de pegar o livro dos contos e perguntar a ele se existia algum atalho, mas achei melhor não fazer isso, mesmo que eu estivesse muito cansada.

—Então, sei lá, me diz alguma coisa sobre aqui, Flórea central.

—Bom, somos conhecidos por nossas festas e por sermos muito simpáticos.

—Só?

—O que mais você queria? Aqui não tem nada de interessante!

Ouvi o canto dos pássaros, que já estava me irritando.

—Por que na floresta tem uma placa dizendo: “Bem-vindo ao reino de Flórea!” e não: “Bem-vindo ao sub-reino de Flórea do centro!”?

—Porque Flórea do centro foi a primeira ilha a ser descoberta, então antes aqui era só Flórea.

—Mas por que as cinco ilhas fazem parte do mesmo reino se cada uma tem até seu próprio rei?

—Bom, foi o mesmo rei que descobriu as cinco ilhas e ele quis assim. Mas cada uma delas tem uma função específica. Como por exemplo: Flórea do norte é um sub-reino rico em minérios. A ilha mais fria é Flórea do sul, lá quase sempre está nevando, portanto os melhores agasalhos e vestidos vem de lá. A maioria dos alimentos vem das fazendas de Flórea do leste. As flores e plantas mais bonitas vem daqui, de Flórea central, assim como alguns outros alimentos. E as melhores armas para guerra e tudo o mais, são fabricados em Flórea do oeste.

—Nossa. –Falei sem muita empolgação.

Senti-me em uma aula de história.

Helena continuou tagarelando até que, finalmente, pude avistar uma casa.

Durante todo aquele caminho eu tinha imaginado uma enorme casa branca rodeada por um jardim de flores.

Bom, a casa não era grande, nem branca e nem rodeada por um jardim de flores. Na verdade era assustadora.

—Lilly, você não vem? –Helena estava um pouco a frente me olhando desafiadoramente.

—Eu não entro aí nem que me paguem. –Respondi olhando para aquela casa sombria.

—Para de palhaçada, estrangeira! –Ela falou revirando os olhos e me puxando pelo pulso.

Nessa hora algo estranho aconteceu, algo que quase sempre acontecia quando as pessoas se aproximavam demais.

Cenas surgiram á minha frente, mas eu não conseguia entender o que estava acontecendo nelas, eu nunca conseguia.

Porém, quando as vozes começaram a falar, eu entendi perfeitamente o filme que eu assistia

A menina correu por entre as chamas dançantes.... –Elas sussurravam ao mesmo tempo em que eu via um pequeno vulto vermelho correr pelo fogo á minha frente. -... “Corra!”, a mulher gritou desesperada... –Somente naquele instante é que eu percebi que as vozes não estavam gritando como costumavam fazer.

—Lilly? Tudo bem com você? –Quando ouvi a voz doce de Helena tudo desapareceu e eu pude vê-la me fitando.

—Sim, sim, estou ótima. –Menti.

—Vamos logo, então.

Assim que entramos naquela casa assustadora percebi que o lugar era uma enorme propaganda enganosa. Pois, mesmo sendo tudo bem rústico, era bem aconchegante.

Entramos pela cozinha - Helena me disse que ali era uma espécie de pensão e que não tinha sala. – e uma senhora de cabelos brancos curtos e desgrenhados veio em nossa direção.

—Helena! Minha joaninha! Sua vida de aventureira anda muito difícil? –A senhora perguntou em um tom animado. Ela sorria e, apesar dos fios branquíssimos, não aparentava ter mais que cinquenta anos.

—Você não faz ideia! –Helena respondeu, enquanto eu observava as duas com uma cara de quem não está entendendo nada.

—E quem é a sua amiga? –Eu sabia que a pergunta era para Helena, mas a mulher disse isso olhando no fundo dos meus olhos.

—Esta é Líria, ela é estrangeira. Veio de outro reino. –Leninha respondeu bocejando.

Acho que alguém, além de mim, está cansada.

—Ela veio de bem mais longe. –A senhora sussurrou olhando para mim.

Preciso dizer que quase tive um faniquito? Com certeza não!

—Eu vou para algum quarto, tudo bem? –Helena perguntou, acho que ela também achou aquilo estranho.

—Primeiro quarto á esquerda, querida. Não precisa me pagar nada. –A mulher disse para Helena, mas, novamente, olhava para mim como se eu fosse a coisa mais fascinante que ela já viu. –Nunca vi alguém como você. –Ela mudou de assunto quando minha guia desapareceu no corredor escuro que ficava á minha direta da cozinha.

O fato de ela dizer aquilo com certo fascínio me assustou.

—O que? O que isso significa?

—Sua alma tem um brilho dourado, como se você tivesse roubado um pouco da luz do sol.

—Por acaso você é uma espécie de vidente hippie ou algo do tipo? –Perguntei sem entender o que estava acontecendo.

Meu Deus, minha vida está muito confusa!

—Não, não, não! –Respondeu entre gargalhadas. –Eu sou uma bruxa.

Meu sangue gelou, não, congelou. Bruxas não costumam ser boazinhas.

—Mas vo-você é u-uma bru-bruxa do bem, não é? –Perguntei gaguejando.

—Claro menina! Acha que se eu fosse malevolamente malévola você ainda estaria viva? Claro que não!

Engoli em seco.

—Acho que eu vou dormir. –Falei ao sair apressada para o quarto onde Helena estava, deixando a senhora esquisita gargalhando sozinha.

Assim que entrei no quarto reparei que, mesmo sendo simples, ele era encantador. Havia duas -uma na direita e a outra na esquerda- camas, entre elas – e um pouco abaixo de uma janela- um pequeno criado mudo com um jarro que continha algumas rosas amarelas, de frente para as camas tinha um enorme guarda-roupa e - em um pequeno espaço entre a cama da esquerda e o guarda-roupa – um espelho. Todos os móveis eram rústicos e de madeira escura e as cortinas e os lençóis eram extremamente brancos.

Helena dormia na cama da direita, portanto me dirigi á cama da esquerda. Eu ia tentar dormir um pouco, contudo minhas dúvidas infinitas resolveram não permitir.

Por que as vozes pareciam mais controladas aqui? E por que eu consegui entender as imagens borradas desta vez? Por que eu não tinha encontrado nenhum caminho para voltar para o “meu mundo” se segui exatamente a trilha para onde a seta havia indicado? Por que as pessoas daqui pareciam viver como no século XIX?

Aquelas dúvidas pareciam fazer minha mente flutuar de um jeito bem desagradável.

Peguei o livro e fiz todas aquelas perguntas de uma só vez. A única resposta que obtive foi:

“Vá para o litoral e embarque no navio que estiver ancorado.”

Eu não via como isso poderia ser uma resposta para as minhas dúvidas, muitos menos o que tinha a ver com o fato de todos viverem como no século XIX, mas decidi que era o que eu ia fazer. Que outra opção eu tinha senão obedecer aquele livro?

Eu sabia que, por causa daquelas malditas perguntas, não ia dormir tão cedo então decidi conversar com o livro, por mais irritante que ele seja.

“Vou fazer isso. Você tem algum nome?”

“Sim.”

“Qual?”

“O livro dos contos. Você é o que? Cega?”

“Nossa. Deve ser estranho ter nome de título de livro.”- Respondi, ignorando as duas últimas perguntas dele. Uma resposta genial dessas merece até um prêmio...

“Pode me deixar em paz agora?”

“Não. Primeiro me diga como gostaria de se chamar.”

“Estou feliz com o meu nome. Agora será que você já pode ir?”

“Então tá, mas a partir desse momento vou te chamar de Cidicleytom.”

Antes que ele me respondesse fechei-o e me virei para o lado da parede para dormir.

❀✿❀

Eu e Helena acabamos dormindo até a hora do jantar e, se a dona bruxa não tivesse nos acordado, teríamos dormido até a manhã seguinte.

—Eu me esqueci de lhe dizer, Líria, que meu nome é Borboleta. – A dona da pensão -Vulgo bruxa.- disse enquanto nós jantávamos.

—Isso é nome? –Perguntei logo depois de me engasgar com o suco de beterraba.

—Claro! Se preferir pode me chamar de Bobbie.

—Tá... –Respondi achando aquela senhora muito estranha.

Quem se chama Borboleta? Veja só!

—Líria é um nome muito bonito, sabia? Combina com você.

—Obrigada Bobbie. –Agradeci, achando engraçado chama-la desse jeito.

—É por causa desse lírio na palma da sua mão? –Perguntou.

Olhei para o perfeito desenho de um lírio amarelado que eu tinha na palma da mão esquerda desde sempre. Eu nunca entendi como eu nasci com aquilo. Parecia mais uma tatuagem que uma marca de nascença.

—Eu não sei, mas acho que sim.

Depois da minha resposta tudo o que ouvimos foi o barulho dos talheres batendo nos pratos.

—A Lilly me disse que quer embarcar em um navio pirata. –Helena falou cortando o silêncio.

Eu já tinha contado para Helena sobre os meus planos, mas não imaginei que ela iria contar para a dona da casa. Quer dizer, a dona Bobbie não precisava saber que eu ia embarcar em um navio.

—Você sabe se tem algum ancorado aqui?

—Ouvi dizer que o Banana Carlos está passando por esses lados.–Bobbie respondeu.

Eu pude ver que ela tinha achado estranho eu querer embarcar em um navio. É bom eu esclarecer que essa história de piratas foi uma empolgação da Leninha e que, não, eu não quero viajar com piratas porcos e insensíveis.

Logo após o jantar eu e Helena voltamos para aquele mesmo quarto. Ainda era cedo, então decidi bater um papo com o Cidicleytom.

“Olha, eu queria saber como embarcar em um navio vai me levar de volta para o meu mundo.”

“Apenas faça exatamente o que eu mandar e você vai saber.”

“Está bem, mas é para eu ir para onde depois? Ou eu vou direto para o meu mundo de um jeito muito louco por meio desse navio?”

“Vá e procure o capitão gancho.”

“Capitão gancho? Como o do Peter Pan?”

“Isso aí.”

“Eu estou achando isso tudo muito estranho Cidicleytom.”

“Não me chame assim. Isso parece uma bruxaria, não um nome.”

“Você está ofendendo os Cidicleytoms do mundo.”

“Provavelmente nem existe alguém com esse nome.”

“Se eu fosse você não duvidava.”

“Vai fazer algo de útil e me deixa em paz!”

“Não tem nada de útil para eu fazer. Você não se cansa de ser irritante assim?”

Não obtive resposta.

Livro idiota. Custa me responder? Essa não é a função dele?

Guardei Cidicleytom na bolsa cafona – Quer dizer, mochila – e resolvi puxar assunto com a Leninha, que estava ocupadíssima olhando para o teto do quarto.

—Hey, você vai comigo para o navio? –Eu sei que foi uma pergunta meio idiota, mas eu sou péssima para puxar assunto.

—Talvez, se for o Banana Carlos provavelmente sim.

—O que tem de tão especial nesse navio para você querer embarcar nele?

—É um navio pirata. –Disse como se fosse óbvio.

—E daí?

—Piratas são legais.

—Piratas são porcos, rudes e ainda roubam as pessoas.

—É por isso que eles são legais. –Helena respondeu e a única coisa que eu consegui fazer foi revirar os olhos. –Além de que o Banana Carlos é muito famoso e é a primeira vez que ele passa por aqui.

—Você não pode ser normal.

—Boba. –Ela falou me dando língua.

—Bom, se vamos entrar nesse navio acho melhor irmos logo...

—Por quê?

—Porque sim.

—Porque sim não é uma resposta muito convincente, sabia?

—Essa Bobbie me dá medo. –Sussurrei.

Ela gargalhou por alguns minutos. Continuei com a mesma cara de palerma de antes.

—Sério? –Ela perguntou.

—Por que eu diria isso de brincadeira?

—Sei lá. –Deu de ombros. –Não precisa ter medo dela. Bobbie é esquisita, mas é uma pessoa legal. Você logo irá notar.

—Isso significa que vamos ficar aqui?

—Não por muito tempo. Podemos partir amanhã de tarde, ou depois.

Revirei os olhos e me joguei em minha cama. Não entendia por que queria tanto sair dali. Era estranho pensar desse modo. Se eu voltasse estaria de volta ás ruas, mas se ficasse poderia permanecer com Bobbie, ou com Helena. Porém isso não era uma certeza. Tudo estava tão confuso...

❀✿❀

Olhei-me no espelho e ajeitei o cabelo assim que me levantei pela manhã. Meus fios castanhos eram indomáveis, sempre cheios de frizz e sem qualquer vontade de me obedecerem e ficarem apresentáveis. Eu ainda usava aquele mesmo vestido lilás e estava me sentindo uma porca por ainda não ter tomado um banho decente.

Saí do quarto e fui para a cozinha, onde Helena estava sentada balançando seu pés para frente e para trás na enorme mesa que ficava no centro do lugar. Dona Borboleta estava cozinhando algo ao mesmo tempo em que conversava com a menina.

—Oi Lilly! Bom dia! –Helena gritou quando notou que eu estava ali. –A Bobbie preparou um banho para você. Sugiro que seja rápida, pois ainda temos um bom caminho até o litoral.

—Então iremos hoje mesmo?

—Sim. Bobbie conversou comigo e disse que, se quisermos mesmo embarcar no Banana Carlos, temos que chegar lá o mais rápido possível.

—Certo. Onde fica o banheiro?

—Vem que eu te levo. –Ela falou ao passar por mim saltitando.

Só então reparei que estava usando um vestido diferente. Este também era branco, mas estava mais limpo e a barra da saia era rendada. Também reparei que ela usava botas que se pareciam com meu par de all stars.

Não demorei muito no banho, já que queria entrar naquela droga de navio, encontrar o tal do capitão gancho e ir para casa. Eu só queria desaparecer de Flórea. O único problema era que eu não fazia a mínima ideia de como, exatamente, eu faria aquilo tudo.

Tomei meu banho calmamente, sem me preocupar com o tempo que passaria ali. Eu me sentia imunda e não sairia daquela banheira até que tivesse certeza de que tinha me livrado de toda aquela sujeira floriana.

—Estou pronta. –Avisei assim que adentrei a cozinha novamente.

—Então vamos. –Helena respondeu descendo da mesa.

Pelo visto ela gosta de sentar em mesas, será que é legal?

—Helena, querida, será que poderia me dar um minuto para falar com Líria? –Bobbie perguntou limpando as mãos em um pano de prato.

Helena olhou-a desconfiada, mas assentiu e saiu do cômodo.

—O que quer falar comigo? –Quis saber.

—Ouça a si mesma, menina. Você é especial e sabe disso.

—O que? O que está dizendo?

—Tome cuidado. Você chama atenção demais.

O que ela estava querendo dizer? Eu nunca me sentira tão confusa!

—Não estou entendendo.

—Não sei como conseguiu vir, mas você conseguiu. A jornada será longa, contudo não desista. Mantenha-se firme e faça o que julgar necessário. Sempre que precisar de ajuda, eu estarei aqui.

—Bobbie, isso é algum texto que você está citando? Não entendi uma palavra do que disse!

Ela sorriu e colocou as mãos em meu rosto.

—Apenas guarde essas palavras: tome cuidado. Seja discreta, não chame atenção.

—OK... –Respondi com a testa franzida.

Suas palavras permaneceram em minha mente. Tome cuidado. A mesma coisa que a menina do pesadelo me disse. Isso não podia ser só coincidência. Engoli em seco.

❀✿❀

—Calma, meninas! Ninguém vai sair daqui sem comida! –Dona Bobbie gritou quando eu e Helena já estávamos na porta.

Ela nos entregou duas trouxas cheias de comida.

—Bobbie, não precisava. O litoral nem fica tão longe daqui! –Helena mentiu e eu supus que o olhar severo que Bobbie lhe dirigiu era um sinal de que ela não havia gostado daquilo.

—Adeus dona Bobbie! –Falei.

—Isso não é um adeus, e sim, um até logo! –Ela gritou enquanto eu e Leninha nos afastávamos.

—Quanto tempo até o litoral? –Perguntei após alguns minutos de caminhada.

Dona Bobbie tinha me presenteado com uma capa bege, parecido com a de Leninha, só que mais longa.

—A floresta pode ser bem fria de noite. –Ela dissera ao me entregar-me o presente.

Creio que tenha sido apenas uma desculpa. E eu não poderia ter recusado, a capa era tão quentinha e macia que eu me perguntava como tinha conseguido viver sem uma daquelas até hoje.

—Se formos andando e não perdermos muito tempo, em algumas semanas.

Engoli em seco.

—Semanas?

Helena virou-se e me fitou com estranheza.

—Sim. Não temos cavalos, nem uma carruagem, portanto teremos que ir a pé, e isso leva muito mais tempo.

Engoli em seco novamente.

—Quantas se...

Minha frase foi interrompida por uma menina de beleza estonteante que se aproximou de nós duas. Ela tinha fios de ouro levemente ondulados, olhos azuis como safiras e a pele tão branca quanto as nuvens do céu. Por ser tão branca suas bochechas eram bem vermelhas e isso me dava vontade apertar aquele rostinho rechonchudo.

—Boa tarde, as senhoritas tem algum dinheiro que possam me doar? Meu pai está desempregado e eu tenho mais treze irmãos. Precisamos muito de ajuda. Por favor.

Senti uma coceirinha familiar em meus ouvidos e logo minhas “amiguinhas” resolveram fofocar:

—Ela só sabia chorar...-Começaram.

Naquele exato momento olhei para a menina. Ela parecia ser tão triste! Não tinha reparado antes, mas a loirinha tinha olheiras gigantes e, enquanto Helena dizia que não tínhamos dinheiro, ela insistia com a voz fraca e levemente rouca de quem já havia chorado durante toda a noite.

— Por que seu pai havia feito aquilo? O mundo era tão cruel...

A menina tinha seu olhar voltado para mim e dizia alguma coisa que eu não estava ouvindo por estar concentrada demais nas imagens ao meu redor.

O que era aquilo? Havia uma criança brincando alegremente e, de repente, ela era puxada violentamente para algum lugar. Seus gritos assustadores ecoavam em minha mente. Assustei-me e pisquei os olhos algumas vezes até aquilo tudo sumir.

E então, ao olhar para o lado, me deparo com um homem mal encarado, escondido atrás de uma árvore. Franzi a testa. Ele tinha o cabelo cor de palha bem ondulado na altura dos ombros, era forte e... tinha acabado de reparar que eu estava olhando para ele. Devo admitir que seus olhos azuis eram bem bonitos, mas no exato momento em que vi a espada em suas mãos isso deixou de importar.

—Senhorita, está me ouvindo? –A menina perguntou, como um robô.

Virei-me bruscamente para Helena e disse:

—Temos que sair daqui.

Indiquei o homem que estava saindo detrás da árvore e, assim que ela viu, saímos correndo.

Homens pularam de cima das árvores, saíram de dentro de troncos tombados e brotaram do chão. Talvez eu tenha exagerado com a última frase, mas foi essa a impressão que eu tive quando percebi que estávamos cercadas.

—O que fazemos agora? –Sussurrei para helena enquanto o homem que eu tinha visto vinha em nossa direção.

—Eu não sei, não temos dinheiro, não acho que eles irão querer comida.

Engoli em seco. Estávamos no meio de uma roda de homens armados, sem qualquer chance de escape.

— Muito bem, senhoritas – O homem começou com sua voz grossa e forte. Deduzi que ele era o líder daquele bando de ladrões. - queremos todo o dinheiro que tiverem.

Os homens gritaram e ergueram suas armas como que apoiando o que seu líder tinha dito. O cara bonitão abriu um sorriso cruel.

—Não temos dinheiro. –Respondi tentando não demonstrar o medo que sentia.

Ele ficou sério.

—Se não nos der por bem, então pegaremos por mal. A escolha é toda sua, flor.

Tive vontade de vomitar. Como alguém pode pegar algo de outra pessoa assim?

—Eu já disse. Não temos dinheiro.

Os homens apontaram suas armas para nós e, com um sorriso no rosto, seu líder concluiu:

—Então, vamos ter que pegar por mal.

Ele desembainhou sua espada e partiu para cima de nós duas. Puxei Helena comigo enquanto corríamos, mas havia homens em todo lugar e todos estavam armados. Tentei pensar em alguma coisa enquanto desviava de diversos golpes e arrastava Helena comigo.

Então lembrei do que Bobbie tinha dito, “Ouça a si mesma.”. Será que ela estava falando para seguir minha intuição? Não custa tentar.

Um grandalhão partiu para cima de nós duas com uma faca minúscula, não iríamos ter grandes ferimentos se soubéssemos como tira-la de suas mãos. A não ser que ele nos desse um soco, porque com aquela mão gigante tenho certeza de que eu iria parar em Netuno se ele me batesse.

Enquanto ele fazia uma seninha ridícula tentando nos assustar me concentrei pensei.

O que eu faço? Como posso lutar contra esse caras enormes, fortes e armados?!

Se abaixe! – Uma vozinha gritou em minha cabeça. Obedeci e vi uma espada atingir em cheio o grandalhão que tentava nos atacar.

Isso é o que eu chamo de intuição feminina!

Para frente, esquerda, esquerda, direita, um passo para trás.

—Como você fez isso? –Helena gritou entre a algazarra de gritos de guerra e sons de espadas.

Os homens pareciam muito mais raivosos agora. Eu estava surpresa por eles não se chocarem uns com os outros, já que todos vinham em nossa direção.

—Não temos tempo para conversar agora!

Puxei-a para frente, tentando me lembrar da sequência que eu tinha pensado a um segundo atrás. Como era mesmo? Para frente, esquerda, esquerda, esquerda, um passo para trás?

Quando um homem surgiu cortando o ar, Helena gritou e nós corremos para a esquerda. Repentinamente outro homem, desta vez careca e usando tapa olho, veio em nossa direção, puxando Helena de mim bruscamente.

—Solte-a agora! –Ordenei dando soquinhos em seu braço, inutilmente.

Tenho ideias brilhantes, eu sei.

De supetão senti alguém me puxando por trás e pressionando algo com um cheiro forte contra o meu nariz. Aos poucos tudo começou a girar e todo o barulho, que começava a cessar, ia se distanciando, até que meu corpo amoleceu e tombou, permitindo-me ver aqueles olhos azuis profundos e cruéis antes que tudo desaparecesse e só restasse o silencioso e torturante vazio.

Continua...