O começo do fim

Capítulo 16 - Final


1° de agosto de 2015 – Dia 44 – 10h24min – POV Toni

Já faz três dias desde a minha saída da Resistência. Pensei muito pra onde deveria ir, queria ir a tantos lugares, mas decidi seguir para a área do pantanal. Caminhei durante horas por uma BR, sempre oculto pela vegetação, não se podia confiar tanto assim nas pessoas. Uma vez ou outra eu encontrava um grupo de zumbis, se fosse pequeno eu eliminava, mas se fosse grande dava um jeito de sair logo dali. Também encontrava carros abandonados na pista, algumas vezes batidos, ou queimados, sempre conferia o que tinha dentro deles, mas até aquele momento encontrei apenas comida para uns dois dias, mesmo bem racionado. Tinha pegado um carro, estava com pouca gasolina, mas deu pra dirigir durante um tempo. Estava próximo da cidade de Divinópolis, a gasolina já havia acabado e voltara a caminhar.

Estava quase escurecendo quando algumas casas começaram a surgir bem espaçadas, escolhi uma delas para passar a noite, não tinha nenhum zumbi dentro nem nas proximidades. Era uma casa simples, com dois cômodos e o banheiro, entrei em um deles, tinha uma cama de solteiro e um pequeno guarda-roupa vazio. Arrastei o guarda roupa até a porta, fechei bem a janela e dormi.

Acordei por volta das duas da madrugada, escutei a voz de duas pessoas discutindo sobre entrar ou não na casa, uma delas, uma voz de uma mulher por volta dos vinte e cinco, afirmava que ela e a criança precisavam dormir, podiam começar a caminhada às oito da manhã, já uma voz masculina falava que não, que tinham que andar mais um pouco, logo chegariam à cidade. Uma terceira voz vinha de uma menina por volta dos oito anos, falava que estava cansada, que queria dormir. Não dava pra ver da janela como eles eram, mas decidiram entrar pela janela do quarto onde eu estava. Não dava para enfrentá-los, provavelmente estavam armados, então usaria a surpresa e um pouco de sorte. Abri a janela, a mulher puxou a filha para perto de si enquanto o cara sacou um revólver cal. 38 e apontou para mim.

– Ei, ei, ei, ei, ei, não vou machucar ninguém, só quero conversar. Podem passar a noite aqui se quiserem, já estava de saída mesmo. – Ele olhou rapidamente para a esposa, procurando algumas ajuda, ela apenas o fitou por uns instantes e voltou a cuidar a garotinha.

– Não precisa se incomodar, nós arrumamos outro lugar pra dormir. – Falou abaixando o revólver.

– Não tenho motivo para ficar aqui. – Disse pegando a minha mochila e pulando a janela. Já tinha me distanciado quando escuto passos atrás de mim.

– Espere, - era aquele cara de novo. – Estamos procurando um grupo para nos juntar, não quer vir com a gente? Acho que não vai fazer mal algum ter uma pessoa a mais pra conversar. – Pensei um pouco e vi que tinha razão, não é por que eu fui banido da resistência que teria que me isolar.

– Está certo. - Caminhamos até a entrada da casa, pulei a janela e retirei o guarda roupa da porta. A mulher e a garotinha foram deitar, enquanto eu e o rapaz ficamos vigiando a entrada. Foi quando percebi que nem sabia o nome deles. – Meu nome e Toni. Qual que é o seu?

– Vicente, a minha mulher se chama Janaína e a minha filha se chama Yasmin.

– Há quanto tempo estão procurando um grupo?

– Há alguns dias, tínhamos ficado em casa durante esse tempo, saía algumas vezes para pegar água e comida nas casas vizinhas. Um dia um grupo enorme dessas coisas invadiu a nossa casa, e tivemos que fugir. Decidimos procurar um grupo, ficaríamos mais seguros. – Passou um bom tempo até ele perguntar. – E você, está procurando o quê?

– Um lugar pra ficar temporariamente. Fui banido do meu grupo por seis meses e tenho que sobreviver até lá.

– O que foi que você fez? – Ele segurou firme o revólver, pronto para disparar no primeiro sinal de perigo.

– Um cara matou alguns integrantes do meu grupo e eu revidei. Acabou que fui um pouco além da conta e o comandante preferiu me punir, pra não perder o controle do lugar. – Ele relaxou um pouco e voltou a encarar a porta. – Vocês estão indo pra onde?

– Ouvi falar que tem um grupo acampado perto da represa de Furnas, acho que numa cidade chamada Boa esperança. Nome irônico, não? – Falou dando uma risada. Ficamos ali até as duas da tarde, ele não quis incomodar a mulher.

A Janaína, ou Jane, tem a minha altura, um pouco magra, cabelos castanhos com olhos da mesma cor, tinha 26 anos e tinha acabado de se formar em psicologia, tinha como arma uma faca. O Vicente é um pouco menor, cabelos negros, sempre bagunçados, olhos castanho, também magro, ele tocava um bar de recebeu de sua família, tem como arma um revólver com algumas balas, mas não muitas. A Yasmin herdou os cabelos da mãe, mas tinha olhos verdes, usava roupas bastante limpas, ao contrário de nós, estava sempre feliz, apesar do que aconteceu. Ele carregava uma mochila com suprimentos e ela, uma mochila com roupas, medicamentos e um cobertor.

6 de agosto de 2015 – Dia 49 – 14h27min

Passaram-se quatro dias desde o encontro com aquela família. Acho que me apeguei a menininha, ela tem o mesmo nome que a minha irmã. Nós demos a volta em Divinópolis, conseguimos encontrar um carro, pegamos bastantes suprimentos. Estávamos próximos a represa, tivemos que usar caminhos alternativos, com as estradas sempre bloqueadas com carros e zumbis. Uma manada passou na nossa frente, assim que nos viram começaram a se arrastar em nossa direção. Não havia nenhuma estrada por perto, então descemos do carro e entramos na floresta.

Corremos durante alguns minutos, eles estavam a apenas alguns metros e, por mais que corrêssemos, nunca estavam tão distantes. Em um momento de descuido, a Yasmin tropeçou em uma raiz e caiu, ela tentou se levantar, mas um zumbi a alcançou e a mordeu na coxa, outro zumbi se aproximou e a mordeu na barriga. O Vicente pegou o seu revólver e atirou no zumbi, atirando também nos zumbis mais próximos. Correu até a filha, que gritava de dor, ela tinha marcas de mordidas não só na perna e na barriga, mas no braço esquerdo também.

Ele chorava, sussurrando para ela que ficaria tudo bem, que logo eles estariam em um lugar seguro. Ele pegou o seu revólver e foi carregá-lo, ele só tinha mais duas balas. Ainda tinham muitos zumbis e se não saíssemos dali, os zumbis chegariam mais perto.

– Precisamos ir Vicente, os zumbis logo vão estar aqui. – Disse estendendo a minha mão.

– Duas balas. Uma para ela e uma para mim. – Ele pegou o revólver e deu um disparo na cabeça da garotinha. A Jane estava sentada em um tronco, entregue completamente as lágrimas, ele pegou o revólver e colocou na sua cabeça. – Eu te amo! – Ele disse olhando nos olhos da mulher, um pequeno sorriso se formou em seu rosto e ele descarregou a última bala em sua própria cabeça. Ouvi o baque surdo do seu corpo se chocando no chão.

Saquei a minha faca e matei os zumbis mais próximos, peguei a mão da Jane e tentei tirá-la dali. Ela se recusava a sair, fincou os pés no chão e se agarrou a uma árvore.

– Eu não posso deixar eles, eles são tudo pra mim. Minha garotinha! – Ela soluçava, o choro cada vez mais descontrolado. – Vai embora, me deixa aqui, não vou ficar sem eles. Vai embora!

– Não! – Gritei o mais alto que pude. Não sei por quanto tempo eu agüentaria, mas a agarrei pela cintura, arrastando ela dali, depois a joguei por cima dos ombros e comecei a correr. Em menos de dois minutos meu ombro já estava dormente, ela arranhava minhas costas e chutava minha barriga, mas a carreguei por mais uns cinco minutos, que pareceram horas para mim. Soltei-a no chão, eu ainda estava com a minha mochila, as outras ficaram com eles. Olhei pelo caminho que percorremos, pouquíssimos zumbis nos perseguiram, eu os eliminei facilmente. Coloquei as mãos nos joelhos e tomei fôlego. Me preparei para retomar a caminhada, queria chegar a represa ainda esta noite.

A Jane estava sentada no chão, com as costas apoiada em uma árvore, ela não chorava como antes, mas algumas lágrimas ainda passeavam no seu rosto.

–Vamos, a represa não fica muito longe. – Ela se encolheu, o olhar triste se transformou um olhar cheio e raiva a mágoa. Ela se levantou e caminhou até ficar a menos de um metro de mim, sem tirar os olhos dos meus. Ela levantou e mão e me deu um tapa no rosto.

– Por que não me deixou lá pra morrer? Por quê? Você sabia que eles eram tudo para mim, sabia que eu só continuava viva por que eles estavam vivos, eu vivia por eles. E agora eles estão mortos! Mortos! – Ela enfatizou cada palavra me arranhando e socando cada parte visível do meu corpo. Ela por fim encostou a cabeça no meu peito e voltou a chorar. Passei as mãos no seu cabelo, acho que também chorava. Esperei ela se acalmar um pouco e respondi.

– Não ia deixar mais ninguém morrer. Precisamos ficar vivos, pra não deixar que eles tenham morrido em vão. Pra... pra que eles sempre continuem vivos em nossas memórias. – Ela parara de chorar, mas vez ou outra uma lágrima ainda teimava em sair dos seus olhos. Quando parecia melhor, a soltei e pequei a mochila. - Vamos antes que aquelas coisas nos sigam.

5 de outubro de 2015 – Dia 110 – 15h37min

Chegamos ao acampamento um dia depois dos acontecimentos da floresta. Ficamos cerca de dez dias afastados, por precaução, depois nos integramos as nossas funções. Ela se tornou psicóloga, avaliava o nível de desgaste mental das pessoas e o que precisavam fazer para melhorar. Eu acabei por me tornar uma espécie de chefe da segurança, havia candidatos mais preparados do que eu, mas depois de dar várias dicas de defesas e construções úteis ao grupo, me acharam encarregado dessa responsabilidade.

Mas o assunto dessa pequena nota antes de seguirmos era explicar o porquê de ter surtado. Pode não parecer importante, mas sem ela não teria escrito esse diário. Começou na data acima, cinco de outubro.

Estava de vigia no setor norte, lá era onde uma rua aberta por eles desembocava no acampamento, agora mais parecia uma vila. Apareceram duas garotas, deviam ter por volta de 10 a 12 anos, e um cara com aproximadamente uns trinta anos. Eles eram perseguidos por uma manada pequena, com uns vinte walkers, mais ao fundo apareciam deles. Estavam a 50 metros quando o cara caiu, ouvíamos gritar para as garotas correrem, mas elas continuaram com ele. Ninguém quis ir lá ajudar o cara, então eu saltei de cima da paliçada e apontei a minha besta. Matei alguns zumbis, mas apareciam cada vez mais, não deu para evitar que os zumbis matassem os três.

Eu vi eles sendo mortos, lembrei de como a Yasmin morreu, da minha irmã mortos, não ia conseguir suportar aquilo de novo. Eu não queria chorar, parecer fraco na frente dos outros, eu sempre controlava os meus sentimentos e seguia em frente. Mas chegou uma hora que eu não consegui mais guardar nada, então eu sustei. Pequei o facão que ia à minha cintura e comecei a matar vários zumbis, não me importava se eu morreria, só queria matar o máximo possível, queria liberar a minha raiva e mágoa matando cada um deles.

Acho que se não fosse os meus sentidos mais aguçados eu teria morrido para os primeiros. Pela audição eu sabia a que distância estavam cada um deles, já que não paravam de grunhir e bater os dentes, quando tinham, era um barulho insuportável, mas havia me acostumado. Sentia o cheiro e o gosto de carne podre, enjoava e me dava ânsia de vômito, mas serviu para me manter alerta. A cada golpe, conseguia ver onde estavam os mais próximos e onde seria o próximo golpe. Pelo tato sentia o sangue deles bater na minha pele, era uma sensação estranha, mas me dava um pouco de prazer, lembro de em certo ponto eu ter aberto um enorme sorriso. Mas no final o cansaço me venceu, já não agüentava mais levantar o facão, eu me joguei de costas para o chão, minha visão ficava turva, não prestava atenção em nada, vi a Jane se ajoelhando do meu lado e apaguei, acordando no dia seguinte.

Ela disse que quando eu surtei, o meu parceiro de vigia foi lá dentro avisar os outros, eles chegaram lá fora armados, mas me viram matando com um sorriso no rosto. Depois de algum tempo os seus movimentos ficaram mais lentos, você começou a recuar até que caiu de costas, então eles desceram até lá e mataram o pouco que restou. Ela falou que não foi nada fácil convencê-los de que eu não tinha enlouquecido e que precisava ser posto em quarentena, que precisava me expressar de alguma forma, aí ela me deu um caderno e um lápis e mandou eu escrever um diário, contando tudo o que aconteceu.

10 de novembro de 2015 – Dia 146 – 00h00min

Estava no setor sul, lá tem um pequeno lago (a represa de Furnas), contornei-o e estava nos limites. Subi a paliçada quando encontrei sentada e uma das estacas a Jane.

– O que você tá fazendo aqui? – Ela não se virou. – Você não prefere ficar aqui, pelo menos é... seguro.

– Não foram eles que me salvaram, foi você. – Ela se virou e me encarou nos olhos. Eu desviei do olhar dela envergonhado. Ainda não consegui esquecer certas manias. – Você querendo ou não, vou com você.

Ela saltou, era uma altura de quatro metros, mas não nos fez mal. Ela pegou uma mochila com algumas setas presas e depois me entregou uma balestra. Não recusei, coloquei ambos nas costas e corremos, desviando das armadilhas e ajudei a instalar. Quando estávamos mais distantes, encontramos um carro, ela devia ter colocado lá. Entramos e seguimos em direção ao centro de BH. O Comandante perdeu muitos oficiais, então reduziu o meu tempo de exílio, devia me apresentar no dia 1° de dezembro. Então já estava voltando para “casa”.