O Vermelho do Seu Coração

Capítulo 6 – Viagem no Tempo (parte 3)


— SOCORRO! — O grito desesperado da princesa Jujuba ecoou através do vale, sendo capaz de despertar qualquer alma que habitasse ali.

Sob as solas de seus pés, ela sentiu uma sequência ritmada de tremores de terra, que reverberaram através de todo o seu corpo, como passos que se aproximavam. Tum. Tum. Tum. Tum...

Não levou mais que alguns segundos para que o sol escaldante da manhã fosse coberto por uma figura gigantesca e amarela, criando uma sombra que se estendia por metros à sua frente. Jake, o Cão, soltou um rosnado alto, exibindo seus dentes monstruosamente tortos.

Mesmo que aquilo não passasse de uma encenação, Jujuba se sentiu tentada a correr. Jake sabia realmente entrar no papel e ela temeu, por um momento, que ele levasse aquilo um pouco a sério demais. Contudo, ainda que quisesse, não poderia fazer muita coisa. Ficar amarrada contra o tronco de uma árvore solitária no meio de um vale, infelizmente, fazia parte do plano, e ela precisaria levar aquilo até o final se quisesse fazer com que desse certo.

Havia designado Marceline e Finn para vigiarem os passos de Billy desde as primeiras horas do dia, de forma que eles pudessem calcular exatamente o momento em que o herói passaria por aquele trecho, a tempo de ver o que estava acontecendo. Billy era um seguidor honrado do código do Enchiridion, o grande livro dos heróis, e uma das principais regras determinava que toda donzela em perigo devia ser salva.

— Oh, não! Um monstro terrível! — Jujuba gritou outra vez, dramatizando um pouco mais. Aquela brincadeira já era antiga para ela e, de certa forma, já começava a perder a graça. A princesa não bancava a donzela indefesa desde que Finn era apenas um garoto aprendendo a ser herói. Porém, era sua melhor aposta no momento. — Por favor, alguém me salve! Socorro!

Jake começou a bater com as patas sobre o chão ao lado dela, fazendo o chão tremer ainda mais. Ele rosnava e latia e... Ela não aguentava mais o bafo canino sobre seu rosto. Tentou olhar em volta, mas nem sinal de Marceline, Finn ou Billy. Pensou se devia se preocupar com a demora. Seus cálculos nunca falhavam, já era pra eles terem passado.

O cão provavelmente pensou a mesma coisa, pois encolheu para um tamanho consideravelmente menos assustador, mas ainda não para seu tamanho habitual.

— Ei, Princesa! — Sussurrou ele de um jeito conspiratório, enquanto tentava manter parcialmente a sua farsa. — Acha que tem alguma coisa errada?

Com o tamanho reduzido do cão, ela conseguia ter uma visão mais ampla através do vale. Piscou algumas vezes contra a luz do sol em seu rosto, até que seus olhos pudessem se ajustar à claridade e então avaliou sua situação. Aparentemente, ainda estavam sozinhos. Até que um estalido frágil chamou sua atenção, como um galho fino se partindo.

Olhou para o lado e viu Marceline sob a sombra de um enorme guarda-sol e, mesmo que seus olhos estivessem escondidos atrás de um par de óculos escuros, Jujuba conseguiu ver sua expressão entediada, misturada com um profundo desagrado. À esquerda da vampira estava Finn, sentado tranquilamente sobre uma pedra e com um olhar abobadado de admiração sobre... Billy?

O herói de pele levemente esverdeada, cabelos e barba de uma forte cor ruiva, encarava a Princesa amarrada à árvore com curiosidade e um sutil brilho de entretenimento no olhar. Fora isso, sua expressão era difícil de decifrar.

— O que... — gaguejou ela, totalmente incrédula e um tanto decepcionada também. — O que estão fazendo aí?

Marceline arqueou uma sobrancelha.

— Já acabou o teatrinho? — perguntou ela, com impaciência. Mesmo que ocultos sob os óculos escuros, Jujuba podia jurar que a vampira havia rolados os olhos. — Sinceramente, Jurubeba, isso é ridículo.

A princesa deixou os ombros caírem pesadamente, sentindo-se finalmente derrotada. Era frustrante admitir que estava errada, mas desta vez não teve jeito.

— Jake, por favor, poderia me desamarrar? — pediu suavemente.

O cão finalmente voltou ao seu tamanho normal e, com uma mordida, rompeu as cordas que a prendiam, libertando-a.

Por fim, Jujuba caminhou até os demais, sendo acompanhada por Jake, que correu até Billy, juntando-se a Finn em um estado hipnótico de admiração e abanando a cauda com euforia.

— Então... — a princesa começou a falar, dirigindo-se primeiramente à Marceline. — Como conseguiram trazê-lo até aqui?

— Nós o chamamos — respondeu a vampira, dando de ombros, como se aquela fosse a coisa mais óbvia do mundo.

— E você... — Jujuba não concluiu, mas Marceline seria capaz de captar a pergunta não verbalizada: “Você usou seus poderes nele?”.

— Ah, não. — A vampira abanou a mão em um gesto desdenhoso. — Não foi preciso. Estava esperando você terminar com essa palhaçada toda.

— Hm... Senhoritas, eu estou aqui — Billy finalmente se pronunciou, acenando para as duas moças amigavelmente. Ele era consideravelmente maior que os demais, tanto em altura, quanto nas demais proporções (Jujuba tinha a forte impressão que a mão dele era quase tão grande quanto a cabeça dela inteira). Ele era dotado de uma camada espessa de músculos, algumas tatuagens marcavam a pele esverdeada, misturando-se às veias saltadas e às cicatrizes de batalha. Apesar da aparência intimidadora, Billy exibia um sorriso gentil, que se refletia também nos grandes olhos de um verde-grama bem vivo. — Alguém poderia me explicar o que exatamente está acontecendo aqui?

— Billy, eu sou a Princesa Jujuba — ela disse, dando um passo à frente, voltando-se totalmente para ele.

— Sim, eu sei quem vocês são — respondeu ele, sorrindo. Então apontou com um polegar para Finn e Jake, que ainda babavam de contemplação ao seu lado. — Menos esses aqui. Criaturas mais estranhas.

Marceline riu do comentário, mas Jujuba não.

— Ouça, nós viemos do futuro — ela se apressou a explicar, voltando a usar seu tom formal da realeza, fazendo o possível para transparecer a importância do que estava dizendo. — Nós cometemos um erro terrível e precisamos da sua ajuda para consertá-lo.

— Vejam, eu não faço parte da comunidade secreta dos magos, mas se eles fizeram alguma coisa para botarem vocês nessa enrascada, tenho certeza de que posso chamar uns caras que...

— Não, você não está entendendo! — atalhou, um tanto aborrecida.

Percebendo o rumo que a situação estava tomando, Marceline decidiu interferir.

— Dá um minutinho pra gente, Billy?

Puxando Jujuba pelo braço, a vampira a arrastou até a sombra formada pela copa da arvore onde a princesa havia sido amarrada anteriormente, mas sem se desfazer do apoio do guarda-sol. Ignorou completamente os protestos de Jujuba e parou diante dela, erguendo os óculos escuros até o topo da cabeça, para olhá-la diretamente nos olhos.

— O que pensa que está fazendo? — Jujuba perguntou, claramente irritada, mas manteve a voz em um sussurro conspiratório.

— Salvando você de botar a perder a nossa única chance de fazer isso funcionar. — Os olhos vermelhos de Marceline expressavam uma variação de impaciência e divertimento. A boca rosada de jujuba formou uma linha fina, mas como ela não respondeu, a vampira prosseguiu: — Talvez seja o momento de me deixar assumir a situação, não acha?

— Ainda não acho que o seu plano possa funcionar — rebateu Jujuba, proferindo as palavras por mero orgulho, não porque realmente acreditava nisso. Empinou o nariz e cruzou os braços defensivamente.

Marceline pareceu fazer um esforço enorme para não revirar os olhos. Geralmente era ela quem agia de maneira infantil. Jujuba era sempre muito madura e séria, mas por alguma razão a vampira fazia com que ela agisse daquela forma, quase irracional. A princesa detestava o fato de que Marceline mexia tanto com ela, de todas as formas possíveis. Afetar seu comportamento daquela forma era simplesmente absurdo.

— Ah. — Marceline apoiou uma das mãos sobre o quadril esguio. — E o seu plano parece estar funcionando muito bem, não é?

Jujuba olhou de relance rapidamente para Billy, que tentava se esquivar das infinitas perguntas e bajulações atiradas sobre ele por Finn e Jake da melhor forma que ele podia encontrar. Se ela demorasse mais com Marceline naquela reuniãozinha, poderia não tê-lo ali por muito mais tempo... Novamente, sentiu-se derrotada e bufou ruidosamente.

— Ok, você venceu — cedeu, por fim. Em uma coisa ela precisava concordar com a vampira: não deviam desperdiçar o que poderia ser sua única chance. — Mas como pretende fazer isso?

— Serei honesta, meus poderes são muito mais fortes à noite, mas... — Marceline abriu um amplo sorriso brilhante, seus caninos se destacando de um jeito predatório e extremamente... interessante. Jujuba sentiu seu coração pular uma batida e piscou os olhos, levemente desconfortável, na tentativa de desviar o olhar. — Acho que eu posso ser bem persuasiva, não acha, Princesa?

Jujuba levou apenas um instante para decidir. Ainda estava hesitante, por causa de seu orgulho, mas era quase impossível negar algo à Marceline quando ela sorria daquele jeito. Talvez aquele plano tivesse alguma chance de dar certo, afinal.

— Tudo bem — cedeu, com um aceno de falso desdém. — Vá em frente, use seus poderes. — Moveu os dedos das mãos diante do rosto da outra em provocação.

Marceline estreitou os olhos para ela, quase unindo os negros cílios espessos, mas não respondeu. Baixando novamente os óculos de sol, a vampira voou rapidamente na direção do herói Billy, enquanto Jujuba a seguiu a passadas lentas. Com uma única ordem, Marceline foi capaz de calar as bocas tagarelas de Finn e Jake, que provavelmente já haviam provocado uma dor de cabeça latente em Billy, que massageava as próprias têmporas em pequenos movimentos circulares.

Os dois heróis se encolheram, parecendo um tanto chateados e então se voltaram para a princesa, que se acomodou sobre a pedra onde os amigos também estavam sentados.

— O que ela vai fazer, Jujuba? — perguntou Finn, em um cochicho.

A princesa, sentindo-se contrariada, cruzou os braços e apenas observou, deixando claro que não estava no humor para conversa. Compreendendo isso, ambos Finn e Jake ficaram em silêncio e esperaram para ver Marceline fazer sua "mágica".

A vampira começou questionando Billy a respeito de sua decisão de desistir da carreira de herói. Como eles suspeitavam, o que o levou a fazer essa escolha havia sido o fato de que seria isso que ocasionaria sua morte. Jujuba percebeu que isso não era nada bom... Billy parecia convicto sobre sua decisão de abandonar totalmente sua vida de herói e dedicar-se somente a boas ações e serviços prestados à comunidade.

Ela já estava começando a perder as esperanças de que a situação pudesse ser resolvida somente na base do diálogo, até que Marceline argumentou:

— É um pouco egoísta da sua parte, pensar assim, não acha? — falou, erguendo uma sobrancelha para ele de maneira acusatória. — Achei que houvesse um código dos heróis, ou algo assim.

Billy não pareceu gostar nem um pouco do jeito como Marceline conduziu aquela conversa. A vampira tinha uma voz doce e melódica, mas suas palavras foram firmes e certeiras. Reforçando ainda mais suas acusações, ela manteve o contato visual durante todo o tempo, seus olhos vermelhos faiscando sobre os grandes olhos verde-grama de Billy.

— Sim, eles têm um código — respondeu ele, por fim, de um jeito frio e comedido. Apesar de não ter se movido, Billy pareceu um tanto acuado. — Aonde quer chegar com isso?

— Achei que vocês, heróis, colocavam as vidas das outras pessoas acima das suas próprias — prosseguiu ela, enfatizando suas palavras com um gesto amplo de mão.

Por ter seus poderes enfraquecidos durante o dia, Jujuba percebeu que a vampira estava apelando para a própria inteligência. E para a sua surpresa, parecia estar funcionando muito bem. Aquele era um lado de Marceline que ela ainda não tinha notado e se pegou prestando atenção no desenrolar da situação com grandes expectativas.

— Eu não gosto do seu tom — ele disse, emitindo um grunhido contrariado. — Mas você tem razão.

Os rostos de todos se iluminaram com esperança.

— Infelizmente, eu não posso continuar com isso. — Desta vez, sua voz soou realmente triste e ele baixou o olhar com desapontamento, provavelmente sobre si mesmo. — Durante toda a minha jornada eu achei que eu fosse invencível. Sempre fui corajoso, destemido, imbatível. Mas agora... — Ele encolheu os ombros largos e desnudos. Com o movimento, a pequena gema azul que ele usava presa através de um acessório bem sobre o nariz, cintilou sutilmente. — Eu estou com medo — admitiu. — Não posso lutar assim.

— Mas você é o Billy! — Finn interveio, pulando diante do seu maior ídolo. — Você lutou com um urso e derrotou o–

— Finn, chega — Jujuba o interrompeu antes que ele revelasse coisas que não devia, podendo piorar ainda mais a situação. — Todos sabemos que o Billy realizou feitos incríveis. E você está certo — encorajou. — Nós todos sentimos medo, Billy.

— O Finn tem medo de palhaços! — Jake falou, com um risinho provocativo.

O jovem herói ficou vermelho como um pimentão e se encolheu, lançando para o irmão canino um olhar cortante.

— Eu só não gosto dos beijos nojentos daquelas enfermeiras bizarras — murmurou, mais para si mesmo que para os demais.

— E também tem medo do oceano — o cão continuou, sem se abalar pela reprimenda do outro.

— Jake! Você sabe muito bem que eu venci esse medo há muito tempo — rebateu ele, ainda mais mortificado por estar sendo exposto daquela forma.

Porém, por mais que os dois estivessem apenas tentando ajudar, aquela discussão não os levaria a lugar algum.

— Meninos, está tudo bem — Jujuba os acalmou. — Não há nada de errado em sentir medo.

— Ainda não sei se eu seria capaz de enfrentar todos os perigos enquanto eu me sentir desse jeito — Billy tornou a falar, com o mesmo tom de desânimo.

Naquele momento, Jujuba se lembrou do último dia em que vira o Billy, no futuro. Sua determinação e senso de justiça pareciam transcender a realidade. Ele era uma enorme fonte de inspiração para todos e, por mais que seu fim tivesse sido trágico, ele morreu como um herói. Era de partir o coração, vê-lo daquele jeito.

— Acho que eu posso ajudar com isso... — Marceline falou. Billy ergueu os olhos na direção da vampira esperançosamente. — Mas precisamos de algo em troca.

Billy franziu o cenho, sem compreender.

Antes de prosseguir, Marceline olhou para Jujuba, dando a ela a deixa para assumir dali. A princesa deixou escapar um sorriso tímido para a amiga e então deu um passo à frente, parando diante do herói com uma expressão reverente e um olhar sério.

— Preciso saber onde você guardou a Eternal — falou, vendo a expressão de incredulidade transparecer no rosto do herói. — Eu quero a chama que nunca se apaga.