Jujuba secou o suor de sua testa com a manga do jaleco e soltou um longo e pesado suspiro. Perdeu alguns segundos encarando sua nova criação com a satisfação de mais um trabalho concluído. A esfera de cristal – extraída diretamente das profundas minas do Reino do Fogo – cintilou diante dos olhos da princesa e ao tocá-la, com os dedos cobertos pelo par de luvas altamente tecnológicas, raios coloridos acompanharam o contato como faíscas vivas. Ela sorriu. Agora faltava apenas a última etapa: o teste. Seria decisivo para a execução de seus planos e, só de pensar, ela se arrepiava.

Endireitou-se e estalou os dedos das mãos, pronta para começar. Porém, sentiu que alguém se aproximava.

— Princesa Jujuba. — O mordomo Menta a cumprimentou com uma reverência formal. — Devo informá-la que já passa da hora do seu repouso.

Ela suspirou de exasperação e cansaço. Embora não admitisse, estava exausta.

— Obrigada, mas eu estou bem — mentiu, mesmo sabendo que jamais convenceria o mordomo disso.

— Há quanto tempo não dorme, Princesa? — perguntou ele, ignorando solenemente a mentira descarada. — Deduzo que, no mínimo, cinco dias. — Ele ergueu as sobrancelhas e Jujuba não respondeu. — Sei também que não tem comido direito e que tem negligenciado suas atividades de lazer. Não vê seus amigos há um mês!

A princesa deixou os ombros caírem, mas recusou-se a baixar o olhar. Não se envergonhava de dedicar-se exclusivamente às suas obrigações, era parte de seu dever como governante. O questionamento de seu mordomo, por mais que lhe desse todo o crédito do mundo, estava começando a irritá-la. Odiava ser questionada. Em uma monarquia, sua autoridade era absoluta.

Porém, por mais que detestasse admitir, no fundo ela tinha consciência de que Menta tinha razão. Ela sabia que devia aos amigos alguma atenção e não se orgulhava de não estar cumprindo seu papel de amiga. Ignorara as visitas e convites de Finn e Jake todas as vezes ao longo do mês. Sabia que eles compreendiam, mas isso não tornava a coisa "certa". Infelizmente, ainda não havia tempo para descanso. Precisava concluir os testes.

— Compreendo sua preocupação e sou realmente grata por isso, mas não tenho tempo para descansar ainda — declarou calmamente, mesmo sentindo-se contrariada.

— Tem certeza de que está fazendo a coisa certa?

— Como assim? — Ela franziu o cenho, sem entender a pergunta. Sabia que Menta estava apenas prezando pelo seu bem-estar, mas ela não estava gostando do seu tom. — Por que não seria certo terminar o meu projeto?

— Quer mesmo fazer isso neste estado? — Ele apontou para ela, de cima a baixo, para ilustrar suas palavras. A princesa Jujuba estava um caco! Olheiras profundas marcavam a pele rosada logo abaixo dos olhos, parecia estranhamente magra, o cabelo desgrenhado, preso de qualquer jeito em um rabo de cavalo que já se desfazia. — Sem querer ser rude, minha Princesa, mas não seria mais ideal que você concluísse o projeto quando estiver com as energias recarregadas? Precisa descansar, distrair-se.

Normalmente, Jujuba teria descartado a ideia imediatamente, mas desta vez refletiu sobre o que o mordomo Menta dissera. Aquele projeto significava muito para ela. A princesa já havia falhado diversas vezes; inclusive, certa vez, ela achou que tinha finalmente acertado e, num descuido, fizeram uso de sua invenção e tudo deu muito errado. Isso não podia acontecer novamente. Faria os testes com calma, não seria uma tarefa exatamente difícil, mas muito delicada. Aquela invenção era um meio para um final de extrema importância, estava apostando suas fichas naquilo.

— Acho que você tem razão — admitiu, por fim.

Tirou o jaleco e pendurou-o no gancho na parede do laboratório. Somente então ela se deu conta do quanto estava realmente cansada. Talvez, se Mentinha não a tivesse aconselhado, seu estado poderia ter afetado seu desempenho de trabalho. Fez uma nota mental de recompensá-lo por isso mais tarde. Agora, não havia mais nada que quisesse fazer além de subir até seus aposentos e finalmente descansar. Dispensou deliberadamente a companhia do mordomo e se recolheu.

***

Pronta para dormir, Jujuba se sentou diante da majestosa penteadeira e começou a escovar os cabelos lentamente. Entrou em um estado pensativo e distante enquanto fazia esse gesto tão simples, perdendo-se na profundidade de seus próprios pensamentos. Não sabia ainda se estava fazendo a coisa certa, dadas as consequências de sua primeira tentativa.

Lembrava-se com clareza de quando a Princesa Caroço roubou seu primeiro protótipo e fez mal-uso dele, causando o desaparecimento de uma pessoa do Espaço-Caroço num looping eterno da existência. Era um projeto perigoso, mas sabia que precisaria dele, não apenas para o avanço da ciência, mas também para uma finalidade específica. Esta era sua maior preocupação no momento. Isso tomou conta dos seus pensamentos nos minutos seguintes; sua mente divagou para tão longe que não ouviu quando a janela se abriu, nem sentiu o vento frio tocar sua pele.

— Não finja que não me viu, Geloba. — Somente aquela voz fez com que Jujuba interrompesse o movimento da escova sobre a superfície macia de seus longos cabelos cor-de-rosa.

Não se virou de imediato, apenas encarou o reflexo no espelho para tentar encontrar a origem da voz. Porém, provavelmente por conta do estado letárgico de sua mente cansada, ela demorou a se dar conta de que jamais veria um rosto além do seu próprio através do espelho.

— Você sabe que eu não gosto desse nome... — Girou o corpo lentamente, a expressão neutra, quase entediada, e então encontrou os grandes e acesos olhos vermelhos de Marceline, a Rainha dos Vampiros.

A vampira estava apoiada no canto entre o teto e a parede, escondida nas sombras, de forma que somente seus olhos se destacavam no escuro. A princesa viu um sorriso se abrir lentamente, revelando as presas brilhantes, e ouviu a risada macabra ecoar através do espaço amplo de seu quarto. Marceline desceu de seu esconderijo, flutuando lentamente até o chão. Uma longa mecha escura de cabelo caiu sobre seu olho e ela a afastou, prendendo atrás da orelha.

— “Você sabe que eu não gosto desse nome” — Marceline repetiu, afinando a voz em tom de troça, fazendo uma careta debochada e gestos exagerados com as mãos. — Ugh! Você tem que ser sempre assim tão fresca, princesa?

Ela deu um impulso e pairou para perto de Jujuba, parando a poucos centímetros de seu rosto e então emitiu um chiado selvagem, exibindo as presas ameaçadoramente. A expressão de Jujuba permaneceu inalterada e revirou os olhos para a atitude infantil da outra.

— O que você quer Marceline? — perguntou ela, levantando-se num rompante, realmente irritada. Estava cansada, não tinha tempo para essas brincadeiras.

A careta monstruosa de Marceline se desfez lentamente até restar apenas uma expressão desdenhosa. Ela recuou, flutuando, e encarou a princesa durante alguns instantes.

— Eu não posso simplesmente fazer uma visita? — perguntou ela, cruzando os braços, contrariada. — Você está sumida já há algum tempo, ninguém a vê em qualquer lugar que não seja algum evento real idiota. Ficamos preocupados.

— “Ficamos”? — Jujuba ergueu uma sobrancelha.

— É. — Marceline deu de ombros e estalou a língua preguiçosamente entre os dentes. — Você sabe. Finn, Jake... Eu.

Jujuba bufou e revirou os olhos ainda mais amplamente que antes. Pensar que Marceline sentia sua falta era um tanto demais para ela. Desde a última briga que tiveram, ela estava certa de que Marceline não se importava com ninguém além de si mesma.

— Algum problema, Princesa? — A vampira quis saber.

— Honestamente? — Jujuba sabia que provavelmente se arrependeria depois, mas há dias não dormia, estava no limite do cansaço e sua cabeça girava com tantas preocupações com o reino e com o projeto inacabado no laboratório. Ela simplesmente não se importava em ser gentil naquele momento. — Tenho um problema bem grande, Marceline. Você aparecer no meu quarto, assim, no meio da noite, sem se anunciar, me provocando e me fazendo perder meu precioso tempo. Este é o meu problema!

Marceline a encarou, incrédula com a súbita explosão. Seu olhar se acendeu, ganhando um tom profundo de vermelho escarlate. A expressão de seu rosto era... mortal.

— Está dizendo que não sou bem-vinda? — inquiriu, a voz perigosamente baixa. — Desde quando eu preciso “me anunciar”?

— É exatamente o que estou dizendo. — Não era verdade e ela sabia. Mas foi tomada por uma súbita raiva e não queria mais ter que encarar o rosto de Marceline. A vampira mexia com seu sistema nervoso, como um disjuntor, fazendo a cabeça da princesa dar mil voltas. — Por favor, diga logo o que você quer ou faça o favor de se retirar. Estou cansada e não tenho tempo para as suas pegadinhas, Marceline.

Agora ela viu um brilho diferente nos olhos vermelhos da vampira; era uma mistura de raiva e mágoa, ela não conseguia distinguir. Porém, de alguma forma, ela se arrependeu amargamente de suas palavras mais cedo do que esperava. Infelizmente era orgulhosa demais para voltar atrás.

Marceline se empertigou e respirou fundo, como se fosse dizer alguma coisa, confrontá-la, mas nenhuma palavra foi dita. Ao invés disso, ela fechou os punhos e flutuou rapidamente em direção à janela, parando sobre o guarda-corpo da sacada. Jujuba a acompanhou com os olhos, o olhar firme, mas Marceline se recusou a olhar para trás. Viu a vampira pescar alguma coisa no bolso de trás da calça jeans rasgada nos joelhos, um papel, o qual ela amassou e jogou ao chão da sacada. Em seguida, assumiu a forma de um pequeno morcego – uma de suas milhares formas monstruosas – e voou para longe.

No instante em que Jujuba ficou sozinha, um vazio tomou conta de seu peito, de um jeito sufocante e que ela não conseguia processar. Soltou a respiração que não havia percebido que estava prendendo e caminhou até a sacada. Cada passo era arrastado – ela inteira se sentia pesada – e não havia dúvidas de que precisaria se desculpar pelo seu comportamento em breve. Abaixou-se e pegou o pedaço de papel no chão, desamassando-o com cuidado para não rasgar.

O vazio em seu peito deu lugar a um forte aperto, que provocou um nó em sua garganta. O papel na verdade era um convite para uma festa na nova casa da Princesa Caroço, que aconteceria na noite do dia seguinte. No verso, escrito à mão, ela leu as letras conhecidas:

ME CONCEDE A HONRA, MAJESTADE?

~MARCY