Tigresa estava deitada na grama e Shifu resolveu leva-la ao vilarejo perto do porto para que pudessem cuidar melhor dela. Ela estava sentindo seu corpo amolecer, não conseguia mais se mexer e sentia que suas forças saiam de si. Mi percebeu que ela logo desmaiaria e procurou deixa-la o mais cômoda possível. A ordem agora era que ela não se levantasse e deveria ser por uns dias, o que atrasaria a viagem.

– Tigresa... Tigresa! Aguenta... fica acordada, filha – pedia Hui Nuan insistentemente – filha, por favor... – ela já ouvia sua voz ao longe. Continuou suplicando sem sucesso para que ela se mantivesse acordada.

Uma luz forte iluminou a face de Tigresa, despertando-a. Piscou algumas vezes e se encontrou ainda deitada na grama. Estava em um imenso e belo jardim, cheio de flores de diversas espécies, borboletas voando ao redor e o jardim era cercado ao longe por três lados, por muros altos e vermelhos e onde não havia muro, era uma entrada para um... palácio? Estava na Cidade Proibida? Ao parecer, sim. Olhou para si mesma e viu-se em um vestido longo vermelho com a bainha dourada.

Procurou alguém para que lhe explicasse tudo isso. O local parecia estar vazio, mas olhando em volta, viu alguém longe. Queria saber como chegou lá, porque estava vestida assim e onde estavam seus amigos, onde estava Po e seus pais.

Chegando mais perto se surpreendeu. Era uma tigresa. Reconheceu facilmente pelas orelhas, a pelagem laranja e suas listras negras.

– Por favor... – começou a falar.

A tigresa estava com uma capa azul e ao ouvir a voz da mestre, tomou o capuz e colocou antes que nossa felina pudesse ver sua face. Se levantou.

Tigresa se colocou à frente dela, ignorando essa atitude, queria apenas suas respostas. Certamente teria tempo de averiguar isso depois.

– Onde estão todos? Como cheguei aqui?

– Não importa... – respondeu com uma voz suave, muito familiar para Tigresa – só tome cuidado.

– E o que isso tem a ver? – Perguntou com uma sobrancelha levantada.

– Este lugar...

– Pode me dizer o que é? Não entendo.

A misteriosa felina apenas permaneceu em silêncio.

– O que eu faço agora? – Perguntou Tigresa para si mesma dando as costas para a felina e andando em direção à entrada do palácio – onde estão os outros? Aconteceu alguma cois... espera, meu bebê!

– Está tudo bem.

– O quê? – Se virou para encará-la, mas era tarde demais.

Tudo ficou claro novamente, tão claro que seus olhos não podiam suportar muito tempo abertos. Levou uma pata à frente de seu rosto e não conseguia evitar piscar. De repente, estava abrindo os olhos lentamente.

Parecia que havia dormido um longo tempo e não recordava nada. Apesar de se sentir descansada, sentia seu corpo tremer um pouco e por isso duvidava em levantar. Sua vista passou pelo teto de madeira, e ao procurar algum sinal de seus amigos, apenas Hui Nuan estava ali em uma cadeira, dormindo.

“Queria saber como vim parar aqui...”, pensou ela se sentando. Quando se sentou por completo, encostando na cabeceira da cama e soltou um ligeiro gemido de dor. Notou que estava sem camisa, apenas com faixas enroladas em seu torso e tomou rapidamente a coberta.

O tigre na cadeira a seu lado despertou com o simples ruído que ela havia feito e ao ver sua filha acordada, se levantou rapidamente para acudi-la.

– Filha, está se sentindo bem? – Perguntou Hui Nuan suavemente.

Ela ainda parecia desnorteada e começou a ficar ansiosa.

– Estou sim. O que aconteceu?

Ela notou a própria dificuldade em falar, sentiu gosto de sangue e fez uma careta.

– Não se lembra? Bandidos vieram pra cima de nós e você se irritou, atacou e o gorila te jogou contra uma árvore.

– Achei que você tinha se machucado internamente e ainda não tenho total certeza de que você está bem. Quanto ao gosto que você provavelmente sentiu agora, o gorila te atingiu com um soco no rosto e cortou sua boca, você cuspiu sangue, procure não falar muito para a ferida não se abrir – completou Mi – está apenas com hematomas nos locais que bateu.

– Mas, e o meu bebê?! – se alarmou, agitando o corpo sobre a cama.

– Calma! Não houve sangramento e a parte baixa de seu ventre ainda está rígida, então acho que está tudo bem. Mas como o impacto foi forte e você ficou sob forte estresse, é pra ficar de repouso por uma semana para não correr risco de acontecer algo ruim com o filhote.

– Mas, a viagem! Temos que chegar até Yu Qin logo e ir pra cidade...

– Uma semana. Só isso. Garça vai levar o recado à Po. Não se preocupe, Tigresa – disse Shifu com um sorriso.

– Pense no seu filhote. Não quer que nada de mau aconteça com ele, não é?

– Está certo. Obrigada – a felina sorriu de volta.

– Bem, vamos para fora... deixem ela descansar...

– Mi, eu posso ficar? – Perdiu o tigre.

A médica o olhou bem, e um sorriso apareceu em seus lábios. Apenas acenou positivamente a cabeça e saiu expulsando os outros. Hui Nuan sentou-se em uma cadeira ao lado da cama.

– Mas que susto, Tigresa.

Ela riu fracamente, estava com sono.

– Me desculpe...

– O que deu em você?

– Não sei... não me controlei, não consegui, ouvir aquele gorila falar daquele jeito me enfureceu.

– Não faça mais besteiras assim.

A felina assentiu e deitou-se. Hui Nuan, hesitante, tocou a pelagem do rosto da filha começando a acariciá-la lentamente como se não acreditasse no que estava fazendo. Ela involuntariamente começou a ronronar baixinho com o mínimo de forças que ainda possuía. Receber carinho de seu pai era coisa rara e... boa. Sentia-se tão bem assim. Logo, pegou no sono.

A noite chegava e com ela, a hora do jantar, o sono e o silêncio na casa onde estavam.

Garça já deveria estar perto de Yu Qin a essa hora, então comeria por lá.

Hui levou comida para Tigresa que repetiu o jantar. Levando alimento para o quarto onde ela estava, ele sorria constantemente e quando a via comendo rápido como se estivesse com a maior fome do mundo, imaginava como ela seria pequena. Imaginava também como seria seu neto. “Será mais parecido com a mãe ou com o pai?”, pensava.

Formou em sua mente uma imagem de uma criaturinha, um ursinho com listras, ou um tigrezinho com apenas os mantos de pelagem negra nos mesmos locais que Po. Como seria ele? Só em alguns meses saberia de verdade.

Enquanto isso, seu genro estava na casa de seu pai recebendo a notícia de que seus amigos e sua esposa haviam sido alvo de bandidos, mas que em questão de uma semana estariam em Yu Qin.

– Uma semana? É muito tempo. O imperador não vai gostar nada disso.

Inicialmente, o Dragão Guerreiro, seu pai e Mestre Garça estavam sentados ouvindo o que parecia um acontecimento muito estranho à respeito dos furiosos.

– Mas é o tempo que eles vão demorar pra vir – respondeu Garça.

– Mas, mas... por quê? Aconteceu alguma coisa?

– Bem... é que, Tigresa foi atingida.

Nesse instante, Po se levantou do sofá com expressão de espanto. Como sua mestre favorita, sua esposa, a maior guerreira de kung fu que já existiu... foi atingida por um bandido qualquer?

– Como isso? Deve estar muito mal pra demorar uma semana pra chegar... o que fizeram com ela? – Esta última pergunta foi feita com um misto de preocupação e raiva.

– Calma, amigo. Ela está bem. Só vai ficar de repouso.

– Por que tanto tempo?

– Ah, bem...

– Fala.

– Não.

– Por quê?

– Porque não tem o que falar.

– Ah – disse com desânimo se deixando cair novamente em seu lugar.

– Só fique tranquilo, meu filho. Sua esposa é forte, sabe se cuidar e acidentes acontecem – Jing falou pela primeira vez desde o início da conversa.

– Não existem acidentes.

– Ok, mas... não fique tão preocupado. Se ele garantiu que ela está bem, confie.

– É, além disso, há uma médica a observando... – “opa, falei demais”, pensou a ave.

– Você tá me escondendo alguma coisa – o jovem panda apontou para seu amigo e semicerrou os olhos, tentando intimidá-lo, sem sucesso.

– Deixa de besteira.

– Bem – disse o pai de Po chamando a atenção de ambos –, devem decidir o que fazer... se vão à cidade imperial, se adiantam para proteger as filhas do imperador e eu recebo os outros quando chegarem.

– Acho que vai ser o melhor, assim a gente já vai se adequando à segurança do palácio. E também, a coroação não vai esperar por nós.

– Tá, Garça, mas e... como fica a segurança daqui, de Yu Qin?

– Eu me encarrego disso filho. Pode ir, estará seguro.

– Está bem. Partimos amanhã pela manhã.

– Isso se você acordar – comentou Garça.

– Ah, tá, claro.

– Não acredito! Não acredito que aquele bebê não tenha morrido! Bem, de qualquer forma eu vou conseguir o que quero antes de ele nascer.

O panda, com a maior raiva já sentida em sua vida, saiu do quarto do espelho deixando para trás uma criatura sorridente presa ali.

Ela estava feliz, havia cumprido com seu próprio desejo. Embora não houvesse sido a mais presente quando Tigresa precisou, ao menos agora, conseguiu fazer algo mais por ela.

A mesma casa simples, a mesma visão. Sua mãe, seu pai e Ayra.

A barriga de An já era enorme e qualquer um a avistaria à distância. Ela não se importava. Cuidava de tudo e todos de sua família da melhor maneira possível, devido à sua segunda cria estar prestes a nascer.

Presenciou novamente o amor que havia naquele ambiente e de repente, um clarão a fez saltar no tempo, até a época que havia nascido.

Ela estava envolta nos braços de seu pai, sentado numa cadeira no quarto, com Ayra os encarando curiosa e sua mãe, adormecida pelo esforço. Ela pôde ver o carinho com que seu pai a encarava. Acariciou seu rosto e apenas com horas de nascida, abriu os olhos azuis para ele, que chorou e sorriu emocionado.

Xue, assistindo à tudo isso, não pôde conter o próprio choro quase perdendo a conexão com suas lembranças pela perda de concentração. “Emoções depois, emoções depois”, se repetia ela mentalmente. “Foco, Xue!”

Observava aquela cena parada ao pé da cama de casal onde An descansava. A parteira havia ido embora há horas e já estava escuro, porém a luz da lua já alta no céu, brilhava como nunca.

Batidas na porta. Quem se atreveria a interromper um momento familiar tão lindo? E a essa hora! Sua mãe despertou e, desnorteada pelo sono, esforçou-se por encostar na cabeceira da cama.

Xue o seguia sem nem pensar, era como se a visão a fizesse caminhar para ver e entender tudo.

Seu pai a acomodou no berço e pediu a Ayra que ficasse ali com elas, tomando conta. Tomou em patas um pedaço de madeira que havia atrás de um móvel quando passava pela sala e o escondeu atrás de si como pôde. Parecia já saber do que se tratava.

Abriu a porta.

– Olá – disse uma grande sombra, da qual apenas se alcançava ver a silhueta já que a luz ambiente estava à suas costas.

O estranho foi recebido com um golpe da tal madeira, porém conseguiu segurá-la próxima a sua face.

– É assim que me dá as boas vindas ao Dragão Negro? – A voz era de um macho e... conhecida, mas quem era ele?

– Você não vai leva-la.

– Ao menos esperei que a outra híbrida horrível nascesse. Agora me entregue An.

– Nunca!

Outro clarão e apenas viu seu pai no chão, machucado, tentando segurar sua irmã com a força que lhe restava e ouviu seu próprio choro.

Sua mãe estava sendo levada por aquele que não conseguiu identificar.

Abriu os olhos, sentindo-os arder. A vontade de chorar a invadiu novamente. As lembranças da visão se faziam presentes e aquela voz lhe era muito familiar. E... o que era essa história de Dragão Negro? Já sabia de uma história à respeito deste dragão, mas não entendia a ligação que isso poderia ter consigo já que o intruso que levou An não tinha silhueta nem próxima a de uma dessas criaturas. Mais parecia um urso gordo e alto, gorila ou algo de porte semelhante.

Tinha que descobrir, porém, seria depois. Se sentia esgotada e precisava dormir.

Do jardim, caminhou à passo lento em direção a seu quarto. Havia pulado a hora da janta, queria pôr em prática os ensinamentos de meditação daquela velha cabra para descobrir mais sobre as visões espontâneas e agora, sabia que poderia descobrir mais sobre si mesma, já que o que via parecia ter ligação.

Encontrou sua irmã vindo pelo corredor, parecia aflita.

– Ai, Xue, ainda bem que te encontrei – disse tomando a mais nova pelos ombros – te aconteceu algo?

– Não, só estou cansada.

Ayra a encarou. Olhos nos olhos, aquelas safiras chocando-se. Procurou mentira nos olhos de Xue, mas não emcontrou.

– Está bem, vá dormir então.

– Boa noite, irmã – Xue a abraçou e Ayra retribuiu.

A mais jovem pantera branca se afastou e fez seu caminho até o quarto. Ao entrar, fechou a porta e foi direto para a cama. Já deitada, se deixou chorar tudo o que não havia chorado para se manter naquela visão.

Dois dias depois, o Dragão Guerreiro e seu companheiro estavam chegando à Cidade Proibida. Foram recebidos muito bem pela família imperial e ambas as felinas se mostraram amistosas e agradecidas pela proteção.

– Onde estão os outros? – Perguntou a futura imperatriz.

– Houve alguns problemas, alteza. Logo virão – respondeu Garça.

– Ah, sim, apenas para saber, já que minha coroação será em menos de duas semanas.

– Não se preocupe, logo estarão aqui.

– Nos sentimos muito honradas em ter vocês em nosso palácio. Eh... você está bem, Dragão Guerreiro? – Perguntou confusa pelas expressões do panda.

Parecia fazer um enorme esforço por manter-se acordado, às vezes até fazendo caretas como se quisesse relaxar os músculos do rosto.

– Ah sim, sim – respondeu e bocejou -... só, só uma noite ruim de sono e também a viagem longa.

– Sei, aquele pesadelo de novo – disse Garça, um pouco alto, ocasionando que ambas felinas ouvissem.

– Depois a gente fala disso.

– Pesadelo? – Perguntaram ambas.

– Se quiser, talvez possamos ajudar com isso – ofereceu Xue.

– Não, deixa pra lá, é só um pesadelo.

– Nem sempre as coisas são o que parecem.

– Cada coisa a seu tempo.

– Ok, agora me pegou – disse Xue rindo com os demais –, enfim, se quiser, descanse e depois lhes apresentaremos o palácio.

– Beleza, obrigado – curvou-se e a ave o imitou.

Ambos foram guiados até a ala dos hóspedes para descansar.

Mal sabia Po que quanto mais desatento e mais se rendia à preguiça, mais longe ficava de saber a verdade seus maus sonhos ou pesadelos e também, mais longe do fim do sofrimento que, dali em diante, apenas aumentaria.