Heskey limpou a poeira e o suor dos olhos com as costas da mão.

Não estava enganado. Era mesmo um sabre de luz!

Nunca tinha visto nenhum, só ouvira contar sobre essa magnífica arma manejada pelos extintos cavaleiros Jedi em histórias fantásticas. Quando os Jedi foram eliminados por Palpatine ele empenhava-se noutras andanças e Corulag fora sempre um local pacífico, sem necessidade que esses guardiões da paz e da justiça fossem para lá despachados para resolver alguma disputa mais acintosa. Nem nunca um Jedi fora chamado a resolver conflitos mesquinhos de bêbados nos bares onde andara a cantar nos tempos da sua juventude. Em suma, o seu caminho jamais se havia cruzado com um Jedi.

Conhecia os cavaleiros devido à sua reputação de justiceiros absolutamente leais à República, que tinham caído em desgraça quando essa mesma República se desmoronou. Os Jedi eram uma ordem extinta e perseguida quando ele entrou para o Senado Imperial e procurara sempre distanciar-se de qualquer referência que o ligasse a eles, pois era uma questão que irritava profundamente Palpatine e que gerava um ódio visceral em Darth Vader.

No entanto, como qualquer romântico, ele admirava a lenda dos Jedi. E com o passar dos anos, à medida que a opressão do Império Galáctico aumentava, ao ter feito amizade com Bail Organa de Alderaan, os Jedi, cujo retorno se encontrava completamente impossibilitado por as antigas tradições terem sido esquecidas, tornaram-se, no seu conceito, num sinónimo de um tempo belo e saudoso, de uma época brilhante em que a galáxia respirava uma saudável liberdade.

Sabia que existiam sabres de luz, algures, guardados como relíquias, em sistemas recônditos. Um artefacto com um peso histórico e sentimental, que no mercado negro valia milhares de créditos. Não sabia que ainda havia aqueles que o sabiam manejar.

E, pelos vistos, o rapaz loiro que se propusera a defendê-lo na arena era um desses poucos que possuíam um sabre de luz e que sabia o que fazer com este. E não o tinha adquirido no mercado negro, não tinha o aspeto de que tinha milhares de créditos para gastar num capricho

A lâmina azul crepitou em dois movimentos rápidos e o nwarr recuou.

— Levanta-te!!

Heskey obedeceu. Com as pernas a tremer e os joelhos mais fracos do que nunca, lá se levantou.

— Onde… onde é que arranjaste…? – gaguejou a gesticular na direção da faixa luminosa.

— O meu cúmplice.

— Ah! Ele não falhou. Tiveste sorte.

— Não se trata de sorte. O Artoo não iria abandonar-me.

— Artoo… é um androide?

— Sim, Artoo é o meu astromec. Uma unidade R2. Preciso dela para pilotar o meu caça… a minha nave – emendou.

Um segundo nwarr era dominado por um barabel. Debaixo das patas colossais do animal estavam algumas criaturas que, entretanto, tinha espezinhado. Por instinto, Heskey levou a mão ao seu losango. Estava mais frio e mudava, subtilmente, de cor.

— Estás ferido? – perguntou o rapaz.

— Estou cansado. É só.

— Estás a perder sangue, estás ferido – disse o rapaz, zangado. – O losango não mente!

Ele pensou rapidamente e descobriu uma resposta adequada.

— Só se for no tornozelo. Ouve… tu sabes lutar com isso?

— Com um sabre de luz? Consigo safar-me.

— És um Jedi?

Se o fosse, definitivamente não seria seu filho. Nunca tivera conhecimento de haver sensitivos à Força na sua família e ele, em abono da verdade, não acreditava muito na existência dessa energia poderosa que permeava toda a galáxia e que servia aqueles que a soubessem sentir, respeitar e utilizar.

— Não! Não sou um Jedi – riu-se o rapaz. – Falta-me o treino.

— Sabes usar a Força…

— Sei, isso sei. Mas não o sei fazer como um Jedi. – Entristeceu. – E acho que nunca irei aprender a ser um Jedi uno com a Força.

— Porquê?

— Podemos ter esta conversa depois? – resmungou, recuperando a sua postura feroz. – Como foi que te feriste no tornozelo?

— Leva-me até à Aliança e eu conto-te.

— Primeiro, saímos daqui. Depois levo-te à Aliança.

— As nossas hipóteses melhoraram consideravelmente com esse sabre de luz.

O burburinho aumentara de tom. A multidão estava enraivecida e insatisfeita. Os brados eram altos, selváticos. Heskey percebeu que o sabre de luz era uma arma proibida e ilegal nos jogos. Ia contra as regras estabelecidas e havia quem não gostasse. As apostas estariam viciadas, quem estava a perder exigia uma reapreciação das probabilidades, quem ganhava exigia que não se mexesse nos resultados.

O nwarr investiu subitamente. Ele só se apercebeu quando recebeu um puxão tão forte que quase o desequilibrou. O rapaz saltou. Num registo acrobático, brandiu o sabre de luz e abriu um rasgão na carcaça do nwarr. Quase que o decapitou. Só que ferido, o animal tornou-se ainda mais perigoso. Baliu em sofrimento, agitando a cabeçorra freneticamente. A pele que lhe cobria os olhos protuberantes escureceu. Raspou a areia com os cascos, bufava em curtos espaços, soprando toda a terra que as patas levantavam. Girou devagar na direção deles. Procurava-os, tinha consciência de onde tinha partido o ataque que lhe causava a dor que o enfurecia.

— E agora?!! – gritou Heskey.

— Temos de subir para cima do nwarr e arrancar-lhe o espigão. Se não o fizermos, estamos os dois mortos. Ele não vai parar.

— Então, por que o feriste?

— Se não o fizesse, estavas morto, meu amigo! Ele parece que gostou de ti.

— Costumam gostar de mim dessa forma intensa. Alguma estratégia?

— Apanha o meu bastão.

— Já te disse que não uso armas!

— Vais usá-lo como vara para criar um efeito alavanca. Vamos, não podes perder tempo!

Lançou o sabre de luz num arco e atingiu um barabel que se atirava para esfaqueá-lo nas costas. Um nwarr vinha no seu encalço e acabou por atropelar o rapaz que teve de saltar para o lado para evitar uma pancada mais forte que o deixasse inconsciente. Heskey forçou a vista para perceber o que lhe tinha acontecido, se precisava da sua ajuda. Perdera-o na nuvem de pó que o nwarr formava com o seu trote errático atrás do barabel. Viu a luz da lâmina ofuscada, a agitar-se e depois a sumir.

Heskey desatou a fugir, formando um círculo largo. Apanhou o bastão, ainda inquieto com aquela ideia descabida. Saltar à vara? Ele nunca o fizera!

O nwarr ferido e sangrante atirava-se na sua direção, num trote vigoroso e raivoso. Ele teria de o fintar e a sua margem de erro era nula. O bastão escorregou-lhe nas mãos suadas, mas ele estava resolvido em fazer aquele exercício resultar. Não teria uma segunda hipótese.

Gritou. Abriu a boca num grito e arrancou na direção do nwarr. Corriam os dois, homem e besta, em posição de choque frontal. O animal não travou o seu galope desajeitado, nem ele diminuiu a velocidade da sua corrida ou baixou o nível do seu berro desvairado.

Calculou rapidamente a sua posição relativa, apoiou o bastão no chão. Fez força nos braços, uma força inimaginável, potenciada pela adrenalina que lhe inundava o corpo todo. Alçou-se, os seus pés deixaram o solo, subiu no ar. Voava, vencia a gravidade. Aqueles segundos-padrão transcorreram tão devagar que era como se ele tivesse parado o tempo e pudesse realizar a proeza num perfeito domínio de cada movimento, que podia delinear e corrigir. Nesse voo livre ultrapassou a fronte do nwarr, passou por cima dos cornos tão rente que uma das pontas lhe abriu um longo rasgão nas calças. Aterrou no lombo do animal que, sentindo o seu peso, lançou os quartos traseiros num coice e começou a travar.

Ele tinha conseguido! Estava em cima do nwarr ferido! Esbugalhou os olhos, admirado com o seu feito.

O sangue da ferida tinha estancado após o golpe do sabre de luz que, depois de cortar, cauterizava o lenho causado, ou o coto do membro decepado, uma vez que se tratava de uma lâmina quente. Mas ainda havia líquido vital a manchar as bordas do ferimento e as mãos dele escorregaram quando se tentaram segurar para não cair do nwarr abaixo. O bicho queria expulsá-lo, repetindo os coices à medida que parava.

— Não… não, maldito! Daqui não saio!

As botas empurraram para formar outro ponto de apoio na pele grossa do nwarr, as suas mãos tentavam agarrar os curtos pelos do tufo que crescia no lombo e, ao mesmo tempo, tentava girar para ficar voltado para os cornos para procurar pelo espigão que terminaria aquele jogo arriscado. Devia ter pisado em alguma zona sensível, pois, de repente, o nwarr parou com os pinotes e regougou dolorosamente.

Heskey aproveitou a acalmia, que não sabia quanto tempo iria durar, para dar a volta pretendida, fazendo do estômago o eixo giratório. Agarrou-se no corno do lado esquerdo e impulsionou-se para a frente, usando o mesmo movimento para se sentar no cachaço do nwarr, junto à cornadura. Não largava o corno, era o seu apoio. O animal voltou a regougar e sacudiu-se noutra tentativa de o expulsar do lombo.

Ele olhou para baixo e viu, no meio dos cornos, diversas protuberâncias em forma de filamento, grossas e escuras. Os espigões. Entre estes haveria o célebre espigão cor-de-laranja que deveria arrancar.

Animado pela sua fúria irracional, pois continuava ferido e irritado, o nwarr empinou-se e Heskey quase que caía ao chão. Se não fosse ter enrolado o braço direito no corno do mesmo lado, estaria mesmo a beijar a areia.

— Concentra-te, idiota! – exclamou para si mesmo.

O nwarr estava mais inquieto do que nunca, rugindo, bufando, pulando e escoicinhando. Ele não podia usar a destra, tinha o braço ocupado, enrolado no corno, para o fixar no cachaço da besta desvairada. Então, usou a esquerda. Mergulhou no tufo de espigões e pôs-se a procurar pelo certo, o colorido, o que se ligava ao fluxo anímico do animal. Apertou os dentes. O suor pingava-lhe da testa, escorria pelas pestanas e congestionava-lhe a vista. Não conseguia distinguir qualquer cor diferente no conjunto negro dos filamentos. Mas deveria haver o tal espigão, o seu nwarr não seria diferente dos outros que cruzavam a arena, numa sanha assassina.

Houve movimento nas suas costas. Alarmado, olhou por cima do ombro. O rapaz tinha acabado de saltar para a garupa do nwarr, a exibir o seu sabre de luz faiscante.

— Felicito-te! Foi muito corajoso da tua parte teres seguido o meu conselho e usado o bastão como vara!

— O que dizes, rapaz? – rosnou ele.

— Não sabia se iria resultar. Pelos vistos, resultou mesmo!

— O quê?

— E o espigão? Arranca-o! – Desligou o sabre de luz, prendeu-o no cinto que lhe amarrava a túnica. Apoiou as duas mãos no lombo do nwarr e com pequenos pulos foi se chegando à frente. – O nwarr daqui a nada está a mandar-nos abaixo. Não percas tempo com carícias num animal que estás prestes a matar.

— Eu não estou a acariciá-lo, idiota! Estou à procura do… Como foi que subiste?

— Com um salto acrobático e bastante exibicionista. Acho que escutei um aplauso. Devem ter sido os imbecis que apostaram em nós. Vamos fazê-los ganhar a aposta?

O nwarr estremecia brutalmente debaixo deles. Heskey exigiu, agastado:

— Vem cá ajudar-me, não estou a ver que este bicho tenha esse espigão…

— Todos têm.

Com uma agilidade surpreendente, o rapaz pôs-se de pé e caminhou, numa linha reta, com passos tão ligeiros como se estivesse a flutuar, sobre a espinha dorsal do animal. Agarrou no mesmo corno onde ele se prendia e debruçou-se, lançando a mão esquerda ao tufo.

— E dizes tu que não tens treino Jedi?

— Não, não tenho! – respondeu o rapaz apalpando os filamentos. – Aprendi a equilibrar-me quando escalava os desfiladeiros pedregosos do meu planeta. Aqui está!

O segredo era estimular os espigões. O correto haveria de reagir enchendo-se de sangue, tornando-se alaranjado. Não ficava totalmente vermelho devido ao couro escuro que o revestia. O rapaz arrancou o espigão e o nwarr acalmou-se imediatamente. Levantou o braço num assomo teatral e mostrou-o à audiência que se desdobrou numa aclamação ribombante, similar a um trovão.

Devia ser uma cena espetacular de se assistir. Dois escravos montados num nwarr domesticado pelo seu esforço titânico, um deles sentado, uma perna de cada lado, o outro de pé e de braço erguido aos céus, a segurar num espigão pulsante e ainda vivo, incandescente como uma brasa. Um momento magnífico naquela arena, naquela tarde de um calor ardente. A liberdade fora bem merecida.

O rapaz voltou-se, depois, para o balcão do anfitrião. Num painel estreito pendurado logo abaixo do toldo que protegia os excelsos espetadores do inclemente sol de Pesak, acendeu-se uma luz verde. Eles tinham sido agraciados com o maior prémio que podiam conquistar naqueles jogos. A sua liberdade.

Heskey não sentiu nada. Alívio, gratidão ou desdém. Estava apático de tão enfraquecido. O rapaz sentou-se atrás dele enquanto o nwarr, pachorrento e mole, se encaminhava para a abertura na arena que os levaria à saída. Tudo estava terminado, aparentemente. Ele barrava os sentidos das influências externas. Já nem sentia a dor aguda no tornozelo, onde o disco estava enterrado, como lâmina fina a furar-lhe a pele.

Desmontou primeiro do nwarr que ronronava. A besta tinha-se tornado dócil, como seria suposto. Ele passou-lhe a mão pelo focinho, deu-lhe duas palmadas. Trocava efetivamente a sua vida pela do animal e tinha uma espécie de vazio no espírito, uma sensação amarga de hipocrisia, de perda. O rapaz entregou o espigão decepado a um humanoide vestido com roupas coloridas, um dos árbitros dos jogos. O humanoide lançou o espigão na abertura de um androide que devolveu a indicação de que estava tudo correto.

— Por vezes, há jogadores que falsificam espigões e correm para cá dizendo que caíram do seu nwarr e que merecem a liberdade. São desintegrados pelo androide. Não há perdão para os batoteiros.

— Não quero saber – disse Heskey num tom desagradável. – Vamos embora daqui. Estou farto de Pesak!

O rapaz sorriu-lhe. Apesar do cansaço e da sujidade que se colava ao rosto, o sorriso foi sincero e límpido. Tudo não passara de uma grande diversão. Podia analisar os recentes acontecimentos sob esse prisma, quando tivesse recuperado. O trauma, por ora, sobrepujava tudo.

— Vais dizer-me agora o teu nome?

— Na minha nave.

Pensou em perguntar se a nave estava muito longe, achava que não tinha forças suficientes para empreender uma caminhada pelo deserto, mas simplesmente encolheu os ombros. Estava também demasiado exausto para se importar em contrariar os alertas do seu corpo. Ele iria, sonâmbulo, até encontrar um lugar onde pudesse respirar sem medo da própria sombra.

Onde pudesse amaldiçoar, mais uma vez, Emile Omonda de Corulag.

O juiz nem sabia como a sua raiva podia ser mortal.