O Retorno

Capítulo 1


Clara Isabel vagava pelo passado, circundada pelas estranhas lembranças que lhe regressavam à mente, das quais não tomava conhecimento há dez anos. Como se o tempo a tivesse adormecido para depois despertá-la, de súbito, numa época que aos poucos iria se familiarizando consigo, privando-a daquele trágico momento que haveria de ser desvendado. Olhava para o porta-retrato de sua tia Jéssica que estava sobre o criado-mudo ao lado da cama. O quarto em que se encontrava, dava para o mar que nesse dia estava em alta, e o céu, em parte, revestido de nuvens em que se via poucas estrelas; essas, menos cintilantes, pois as pequenas camadas retinham os seus esplendores.

A bela jovem não recordava de sua tia, visto que ambas não mais se encontraram desde aquele ano de 1978.

Passava da meia-noite e as cenas do pretérito reproduziam-se em sua mente, causando em si um estado de transtorno, juntamente com o silêncio insuportável que envolvia os seus ouvidos. Essa quietação produziu em seu coração um tanto taciturno e enclausurado grande ermo, a ponto de por ele não ter proferido, desde que chegara em casa, uma só palavra.

Consultou sua agenda telefônica a fim de ligar para alguém de sua intimidade, mas a indecisão interveio na meia discagem.

Olhou para um livro que estava sobre a mesa do computador, ao seu lado, o qual lhe fazia companhia algumas horas antes de dormir. Helena, presente de sua mãe, trata-se de um romance da literatura clássica de Machado de Assis; ficção repleta de mistérios que faz o leitor se deixar levar pela curiosidade e pelas suposições sempre falsas para maior sucesso da revelação final. Abriu o livro na página 43 do capítulo seguinte, mas seus olhos não contavam com o pensamento, uma vez que este projetava todo o cenário da dissimulação. Estava vendado pelas reminiscências distantes.

Repentinamente, caía-lhe uma sonolência, ao olhar para o despertador, como se este fosse uma cápsula que liberasse uma substância a partir do último número da contagem regressiva.

A noite se transpunha vagarosamente, cedendo lugar ao dia, no balouço do som de uma consonância regida pelo maestro de uma orquestra, em que os tangedores, ao seu movimento tênue, se deixassem enlevar pela terna sintonia até que a última noite os conduzisse ao epílogo dessa ópera vistosa.

Mês da primavera. As ruas de Curitiba adornavam-se das folhas liberadas pelos galhos das mais frondosas árvores que avivavam a cidade. As praças antigas e recentes que se situavam nas avenidas e ruas principais do centro e periferia despertavam os turistas e os habitantes no íntimo para os canteiros floridos que apresentavam as mais diversificadas cores e essências. O céu que se embalava junto a esse conjunto de elementos, mostrava o seu encantamento que era o toque final a esse quadro urbano.

Eram oito e vinte da manhã de 27 de setembro. Lúcio da Gama encontrava-se em sua sala, examinando os papéis de uns clientes que havia atendido no dia anterior. Cíntia, sua secretária, entrava na sala para lhe comunicar:

— Sr. Da Gama, estão à sua espera os Srs. Nelson Tales, Mário Norman e Pedro Samon...

Antes que ela perguntasse se os devia chamar, Lúcio pediu que os fizesse entrar.

— Por favor, acomodem-se! — disse aos visitantes enquanto colocava os papéis que preenchera em sua maleta.

— Sr. Da Gama, não viemos tomar-lhe muito tempo. Temos uma reunião marcada em São Paulo que acontecerá daqui a uma hora. Trata-se de um assunto de nosso interesse que visa a um novo contrato com uma recente produtora de tecidos instalada em Santos. Logo, decidimos neste mesmo dia termos esta rápida conversa que nos dará outros rumos nas relações comerciais — disse Mário Norman.

Lúcio ouvia atenciosamente.

— Há dez anos comprávamos os produtos da G. S. Tecidos Produtora. E aqui, não haveremos de esquecer a figura do Sr. Laércio Sobral que não mais está entre nós após se passar um ano. Homem sóbrio e resoluto que fez prosperar esta empresa e, indiretamente, outras pequenas e médias que adquiriam os seus artigos. E não faltarão oportunidades para que outras empresas de todos os portes venham a ter relações com esta, uma vez que os produtos são de qualidades aprovadas e boas negociações quanto ao custo de suas mercadorias vendidas.

— Os senhores poderiam ser diretos? — indagou Lúcio, ainda, sem entender o propósito do discurso que rendia preitos a memória de seu pai e encômios ao acelerado desenvolvimento e desempenho de sua companhia.

— Tomamos uma decisão que vai encerrar de vez as nossas relações comerciais com a empresa, à qual devemos muito por todos esses anos de crescimento de ambas as partes. Mas...

Norman tentava buscar palavras motivadoras, percebia, entretanto, que já as havia dito anteriormente. Ao mesmo tempo, não conseguia recorrer às outras que justificasse o propósito que eles tomaram. Pedro Samon apossou-se da palavra quando observou que ele não conseguiria complementar o que estava retido em seu pensamento.

— A verdade é que não renovaremos mais o contrato para a compra de seus produtos, restando apenas uma semana para o seu término, além de quitarmos os débitos dos três últimos meses com correção.

Lúcio levantou-se e deu alguns passos em torno da mesa.

— Que mudanças trará esse contrato com a empresa recente? — indagou ele.

— Serão reduzidos os custos da mercadoria que comprarmos com os 15% das ações que ela nos propõe, isto é, vamos investir para o seu crescimento.

— As ações não bastam, já que terão participação em todo o lucro que ela gerar?

— Bastariam, se não nos fosse proposto importarmos suas mercadorias com os custos reduzidos. Comprando os seus produtos, teremos em relação à venda de nossa empresa um saldo de 20% ao saldo atual, contando com os custos da manufatura, dos equipamentos e outros itens complementares.

— Não conseguia cobrir esses custos o balanço recente?

— Não. Para isso, teríamos que nos desfazer, em boa parte, da mão-de-obra.

Lúcio olhava para o chão em silêncio como se ainda não tivesse se retomado do súbito.

— Com esta alta porcentagem, segundo o próximo saldo, vamos recuperar o valor de venda dos nossos artigos que caíram de três anos para cá — disse Samon que olhava para Norman e Nelson Tales. Estes apenas ouviam a conversação.

— Isso não quer dizer que as relações entre ambas as empresas foram insatisfatórias ao longo desses anos. Nos últimos tempos os custos de taxas e impostos tiveram um aumento alarmante no país. Começamos a contrair débitos que nos levariam a um indício de ruína. E o contrato com a nova empresa foi a nossa única saída para quitarmos a dívida a partir dos itens anteriormente ditos. Nessa reunião, faremos algumas definições quanto às relações entre ambas as empresas. Também avaliaremos o desempenho que tivemos com a empresa G.S. Tecidos Produtora — completou Norman.

Lúcio fez um gesto de lamento com os olhos abaixo e olhou para o quadro de seu finado pai sobre a parede.

— Levará tempo para me adaptar a essa nova realidade. — Fez uma pausa e prosseguiu. — Mas tenho que entender que no lugar dos senhores faria o mesmo. Isso me faz lembrar das inesquecíveis palavras que meu pai sempre dizia: “Uma Pátria pode perder alguns de seus filhos numa batalha, mas outros virão porque ela é como um rio que flui sem cessar”.

— Muito profundas — disse Norman. — Mas como sempre ouvimos um antigo ditado: “Negócios são negócios.” E nós como empresários não estamos atrás, sabemos as regras do jogo.

— Nós! — admirou-se Norman.

— Nós — replicou Lúcio com os olhos fixos nos dele ao estender sua mão direita. — Bons negócios e boa sorte!

— Obrigado, Sr. Da Gama! A gente se encontra qualquer dia — disse ele sabendo que contaria com sua presença numa palestra para os empresários a ser realizada na Fiesp, Federação das Indústrias de São Paulo, no mês próximo.

Lúcio acompanhou os empresários até a saída quando estes se dirigiram a um carro com destino ao aeroporto.

De volta à sala, ele manteve-se pensativo sobre o que ocorrera minutos atrás. Aqueles clientes, sem dúvida nenhuma, tiveram maior cota de participação para o crescimento e desenvolvimento da empresa, importando os seus produtos. Esta também havia contribuído para os mesmos fins com estes. De fato, eles foram os pioneiros a acompanharem ano após ano a transformação de uma pequena fábrica a um médio empreendimento até se consolidar como grande, quatro anos depois. Porém, isso não causaria ou provocaria um indício de redução de fatura mensal e anual dentro da produtora de tecidos, na medida em que se fechavam novos contratos com empreendedores de outras regiões.

Permaneceu de pé em frente à escrivaninha com a mão esquerda apoiada sobre ela a olhar para o vago com o pensamento, até que a porta se abriu.

Cíntia anunciou:

— Sr. Da Gama, uma nova visita lhe aguarda. Ela não me disse o nome por mais que eu...

— Tudo bem, Cíntia! Mande-a entrar — disse ele com ar de graça quando percebeu o estorvo da secretária ao anunciar a visita que não se identificava.

Entra Carlos Heitor, seu companheiro desde os primeiros anos de infância, os quais consolidaram entre os dois uma eterna aliança de afeição. Rapaz um tanto jovial cujo humor é moderado, e muito espontâneo, o que o torna um pouco irresponsável com pequenas particularidades de sua vida cotidiana. É um homem alto e magro que possui um semblante que retrata as características quanto à sua índole. Os olhos são de cor cinza, acompanhados de uma pequena mancha no lado esquerdo inferior. Tem lábios médios e finos, sempre de gesto humorado. Seus cabelos castanho-claros e ondulados realçam essa jovialidade exterior.

O mais curioso é que ele, durante a meninice, até chegar à fase final da adolescência, fora um jovem um tanto tímido e receoso, ao passo que outros sendo o oposto tenderiam a perder um tanto essas manifestações do gênio para atingir a maturidade. Dessa forma, sendo mais acanhados. Entretanto, o que lhe ocorreu para que se tornasse um rapaz descerrado e intrépido, foi que certa vez quando saíra com colegas de faculdade a um encontro de estudantes na Unicamp em Campinas (nesse dia, Lúcio estudava para uma prova de uma das disciplinas de seu curso), decidiu a partir dessa data, tomar uma resolução quando estava diante de uma jovem que cursava Medicina, dois anos mais nova que ele. Mudaria para sempre o seu comportamento de jovem tímido que andava na linha literalmente como seu pai queria, para assomar em sua índole um espírito de moço aventuroso. Namorou seis meses essa jovem até que a brisa entre os dois baixou a umidade, dando-se o rompimento de sua primeira experiência amorosa. Carlos manteve o que prometera a si mesmo. Bateria as asas em todas as direções, desafiando os seus limites.

— Bom dia, Sr. Da Gama! — disse com ar de gracejo.

— Bom dia Sr. ... — Lúcio retribuiu com a mesma graça estendendo-lhe a mão.

— Heitor, mas em nome de um corriqueiro laço amistoso, me chame simplesmente de Carlos.

— Certo, Carlos! O que lhe trouxe aqui? Não me diga que uma luz repentina abriu-lhe os olhos e fez você mudar de ideia em relação aquele velho assunto que tanto havíamos tocado todo o tempo — disse ele ao utilizar-se de um recurso irônico que fizesse Carlos, por meio de pressão, lembrar-se do objeto que eles tratavam quando ele abriu o assunto.

— Senti saudades e vim visitá-lo.

Na verdade, ele decidira tirar férias de seu trabalho no Rio como advogado de pequenas causas.

— Vamos lá! Sente-se naquela cadeira! — Lúcio apontou para a sua escrivaninha, utilizando-se do mesmo recurso indireto para incitar-lhe a pensar no assunto proposto.

Carlos captou imediatamente as suas indiretas, mas ao mesmo tempo as ignorou levando na brincadeira. Ele sentou-se na cadeira e escorou no seu encosto.

Lúcio, no mesmo instante, se dirigiu ao bar e colocou nos dois copos três pedrinhas de gelo para, em seguida, enchê-los com uísque.

— A propósito, como vão seus pais?

— Vivos.

Ao ouvir essa palavra, Lúcio voltou num feixe de luz o pensamento ao seu pai, recordando com consternação os momentos vivos e decisivos em toda sua vida. A expressão de Carlos mudou quando percebeu a gafe que achou ter cometido ao proferir o vocábulo.

— Eles mandaram abraços para você e sua mãe. Quando for possível, minha mãe ligará para D. Neuza. — Carlos replicou com mais detalhes a pergunta de Lúcio para reparar a falta.

— Que bom! Eu fico muito feliz por isso... Eh... Você tem visto Clara? — disse ele simulando uma pergunta a fim de esquecer o incidente provocado pelo amigo.

— Raras vezes, na praia de Copacabana, sempre aos sábados e domingos.

— Como ela está?

— Aparentemente, ela parece bem sempre que está em companhia de uma colega sua.

— É a formosura mais fascinante que meus olhos já encontraram. Mas seu semblante é como uma forte neblina que impede o avanço de quem quer tomar o caminho. Tanta coisa eu podia saber daquela índole que mais parece mergulhar num mar de melancolia, se descobrisse através dessa nebulosidade uma centelha.

— Oh! Que belo! Fala dela com tanta inspiração — ironizou Carlos com gestos. — Onde aprendeu a poetar assim? Anda lendo poemas de Castro ou Magalhães?

— Que isso fique entre nós dois. Você conhecia uma garota que costumava sentar atrás da gente quando cursávamos a última etapa do ginásio?

— Sim. É... — Carlos fazia um esforço mental para recordar o nome da pessoa. — Iara Aline. A propósito, fui eu quem lhe apresentei.

— Pois, naquela ocasião, quando o intervalo de aula havia terminado, encontrei no meu caderno um verso escrito assim: “Você me deixa com fome quando em sonhos me consome”. Com essas linhas, ela me propunha um convite. Mas preferi bancar um ingênuo para não correr depois o risco de uma aventura perigosa. Em outras palavras, respondi-lhe com os mesmos recursos da literatura poética ao não aceitar o seu chamado.

Carlos ficou vexado ao ouvir a poesia que ele próprio escrevera a ela.

— Foi muita esperteza de sua parte — disse ele com leve exaspero.

— Se foi. Tenho a poesia dela guardada em meu caderno. Qualquer dia desses, eu lhe mostro.

Ele fez um pequeno gesto sem que Lúcio percebesse, ignorando o convite.

— Então, voltando ao assunto, você dizia que...

— Eu estava dizendo que às vezes não conheço quem eu conheço.

— Não conhece quem não conhece... — Carlos usou de ironia crítica quando fez referência à frase dita por Lúcio.

— Serei mais claro. — Ele levantou as duas mãos para que Carlos



se tranquilizasse. — A Clara que eu conheço não é a que meus olhos têm testemunhado recentemente. Ao longo dos dez anos conheci uma pessoa que vivia uma vida comum sem levar em conta a timidez que tinha. Brigávamos em ocasiões de desentendimentos. Nesse caso, eu era o culpado pelas intrigas. Logo, estávamos como um rápido vendaval que se acalmava. Confesso que muitas vezes tive ciúmes quando papai e mamãe dela se achegavam para fazer-lhe afagos. O que causava entre nós dois uma leve desavença. Como eu a prezava de uma maneira desenfreada que só meu coração compreendia, fazia a ela o mesmo gesto que eles. No colégio, tinha-lhe o maior zelo, não descuidando um segundo dela. Não aceitava a ideia de que ela tivesse amizade masculina. Ciúmes de irmão. Nos finais de semana a levava comigo para conhecer a cidade que ela, aos poucos, foi se habituando. Tenho muito orgulho dela. Mas essa que eu não conheço, parece se desprender do ambiente presente, com o pensamento longe. Seu semblante me afigura outra pessoa. Toda vez que eu fazia presença diante dela, mudava-se completamente. Nunca mais passei a vê-la com os mesmos olhos, pois me despertava algo de estranho em seu comportamento que haveria de descobrir.

— Nunca reparei — disse Carlos sem interesse.

— É claro que não. Você sempre estava ocupado — replicou Lúcio com

ironia quando Carlos, nos tempos de faculdade, se entrosava com colegas de sala. — Aliás, ela só agia de tal modo estando em ambiente fechado. Isso lhe ocorria durante a noite.

Houve uma pausa para em seguida concluir.

— Clara é tão íntima a mamãe que, às vezes, ela não me convence quando diz que nada sabe a seu respeito. Há algo de errado nessa história.

— Quer bancar um detetive ou um espião para tentar descobrir? — brincou o jovem advogado.

— Vamos embora! — disse Lúcio com expressão de riso se dirigindo à seção de produção.

Era um galpão dividido em cinco seções. Cada uma com modernos equipamentos para o trabalho de transformação da matéria-prima. Processo que se dá através do descaroçamento do produto bruto que passa pela fiação à tecelagem, até o seguimento da tintura. Cada seção onde a matéria é trabalhada, passa por um rigoroso serviço de revisão e levantamentos, sendo no final arquivados através de relatórios em computadores. A última seção é a de separação e embalagem dos tecidos trabalhados, prontos para o estoque. Em seguida os dois penetram noutro galpão que armazena a matéria-prima, empilhadas em blocos nos limites de espaço estabelecidos, de forma que os veículos entrem para depositar o produto bruto.

Caminhando lentamente por todos os compartimentos, o jovem empresário e o seu inseparável amigo examinavam com minúcia todo o trabalho feito gradativamente através das máquinas operadas pelos funcionários especializados, enquanto os outros desempenhavam funções braçais. Estes aparentavam idades de vinte anos abaixo, ao passo que as dos demais variavam até acima dos quarenta.

— Ainda está de pé o que lhe propus — disse Lúcio com os olhos fixos em Carlos.

— Por quanto tempo mais? — Carlos galhofava.

— Por favor, não brinque! A empresa precisa de um homem como você. Os outros... Bem, é um caso a se pensar.

— É... — Ele tolheu os ombros ao simular uma resposta curta e vaga.

— Eu falo sério, Carlos. Aluísio pôs suas ações que são de 16% à venda. Eu compro essas ações e passo-as para você se aceitar o que lhe propus. Quero que você se integre a esta empresa como meu pai queria.

— Por que ele venderá as ações?

— Para comprar um hotel em Recife que fica à beira da praia. Com a venda delas, aplicará parte na compra do edifício, somando com o que tem de economia.

— Você conhece muitos bons profissionais para ocupar a função...

— Você também é um, já que se formou em Administração comigo, enquanto estudava Direito em outra faculdade. E pelo que sei, não é a sua vocação atuar em leis.

— E seria administrar uma empresa?

— Você duvida? — indagou ele sorrindo.

— Não parei para pensar nisso — brincou o jovem advogado.

— É uma boa hora para refletir. Clara, por exemplo, recusou-se a trabalhar na empresa por mais que eu insistisse. Preferiu exercer sua carreira na qual se revela uma verdadeira profissional. É a sua vocação.

Carlos bocejava quando Lúcio improvisava um pequeno discurso homenageando seu pai.

Laércio Sobral de Amorim era um homem sóbrio e determinado, às vezes, impertinente sem perder a compostura de sua índole. O seu semblante era um tanto grave, olhos profundos, mas que um sorriso, apesar de pejoso, rompia essa feição facial do cotidiano. Foi o fundador da G. S. Tecidos Produtora. Vindo de Uberlândia, e instalando-se em Curitiba em 1973, começou com uma pequena fábrica até se consolidar empresa a partir de 1976.

— Vê esse galpão? — continuou o seu discurso com o braço apontado para a grande sala onde ficavam os blocos de algodão. — Começou tudo aqui. Dispúnhamos de poucos equipamentos até conseguirmos outros mais modernos para melhor trabalhar a matéria-prima em acelerado processo. Construímos outro galpão para que essas máquinas novas fossem nele instaladas. E por fim, todo o prédio.

— Tenho que reconhecer que seu pai deu passos sem pisar em falso. Meu pai me contava das vezes que os dois vendiam tecidos nas ruas e avenidas de Belo Horizonte. Certa vez, meu pai parou para desempenhar outra função, e o seu continuou — disse Carlos que também se deixou envolver pelo tempo que se fora.

— Se ele estivesse aqui, talvez lhe convencesse em questão de minutos, mas... — O jovem fez uma pausa e desviou um pouco seu raciocínio final para concluir o assunto. — É uma dádiva que meu pai tem para com o seu pai.

Carlos fez um momento de rápida reflexão com os olhos abaixo.

— Eu prometo que pensarei no assunto — falou ele olhando nos olhos de Lúcio.

— Posso contar com isso?

— Dou a minha palavra. — Carlos ergueu a mão direita se comprometendo.

Os dois se retiraram da seção de trabalho e retornaram à sala.

* * *

Era por volta das três e quinze quando o sol lançava sobre a cidade um forte calor que atingia 40Cº. Este provocava uma lotação de humanos cuja maioria era feminina, ao longo da orla marítima que traçava toda a região local. Nesse dia, as ondas chocavam-se com as areias, removendo todas as marcas deixadas pelos banhistas. Ao embalo dessas vagas, alguns surfistas se deixavam levar até que elas diminuíssem morosamente o ritmo. Predominava no firmamento um azul fulgurante com poucas nuvens que se deslocavam lentamente para uma direção sob o sol escaldante. O mar espelhava de forma magnífica a cor da abóbada celeste, e ao longo dessa imensidão, via-se um barco ou um navio apontar. A Avenida Atlântica estava cheia de veículos e de pedestres que cruzavam de um lado e de outro. Do lado oposto do mar, ficavam os edifícios ainda intocáveis pelo tempo. Dentre eles, um era recente de dois ou três anos atrás, no qual ficavam as salas de advocacia nos andares, oitavo e nono. A de Clara Isabel ficava no oitavo andar.

Naquele instante, ela conversava com uma cliente.

— Faço qualquer coisa para não perder a guarda da minha filha — disse a cliente. — Se a senhora soubesse o que tenho passado com aquele... Eu tinha que deixá-la uns dias na casa de minha mãe.

— Compreendo — disse Clara serenamente com os olhos fixos na cliente.

— Mas mesmo que você tente acusá-lo de agressor por efeito do alcoolismo, ele tem totais condições para assumir a guarda da criança, uma vez que não atentava contra ela a circunstantes estados emocionais. Assim, quando está embriagado, descarrega em você toda a ira dele ao lhe julgar pela vida que levara no passado.

— Assumo que eu era uma prostituta — disse ela com os olhos ao chão.

— Mas não tive outra saída senão trabalhar urgentemente para tentar salvar o meu irmãozinho que...

Ela apoiou a testa sobre a mão para chorar.

Clara a observava como uma psicóloga.

— Quando saí de Minas, prometi a minha mãe que quitaríamos as últimas parcelas da casa e traria Diego a uma vida normal. Mas só consegui cumprir parte da promessa. Agi tarde demais.

— Não se culpe! Você fez tudo o que pôde.

A cliente fez um instante de silêncio após inclinar a cabeça para baixo.

Clara prosseguiu:

— Pensemos agora na situação presente. Você sabe que não será fácil a disputa da menina com o seu marido porque ele vai dispor de todos os recursos para tomar-lhe a guarda.

— Tenho medo! — murmurou ela em desespero.

— Acalma-se! — Clara tranquilizou-a em voz branda. — Eu citei apenas uma hipótese. O que ele tem contra você é o fato de ter vivido nesse submundo, e isso o reforça como um argumento favorável, perante a Justiça, de provar a sua incapacidade de mãe.

Ela abaixava a cabeça quando não mais sentia um fio de esperança.

— Mas a sua situação pode se reverter quando contarmos com algumas testemunhas importantes. Uma delas pode ser a responsável por essa reversão.

— Então, a senhora vai me ajudar? — perguntou a cliente, que naquele instante, experimentava a sensação de vencer uma batalha.

— Em nenhum momento pensei em não pegar o caso. Só acho que ele tem mais chances para conseguir a tutela da filha de vocês se não contarmos com essas testemunhas. — Do contrário, as minhas chances podem aumentar em relação às dele.

— Será uma disputa acirrada porque ele também vai contar com testemunhas de peso. Mas a nossa mais importante testemunha será o nosso último cartucho para derrubarmos o adversário — falou ela motivando a cliente.

— Pode me dizer quem é?

— Sim. É o médico que ficou encarregado de fazer a cirurgia em seu irmãozinho. Homem de boa conduta, bem conceituado. Diz lhe conhecer muito, e sabia que vocês passavam por dificuldades financeiras.

— Se a senhora pudesse imaginar como estou me sentindo agora.

— Imagino. Mas convém-nos alimentarmos somente de esperanças. Apenas confie em mim e tudo tomará o rumo certo.

— Confio. Obrigada! — disse ela ao tocar com as duas mãos a mão direita da advogada.

Clara a acompanhou até a porta. Em seguida, voltou à escrivaninha para examinar a documentação civil dela, quando entrou na sala um companheiro de trabalho, Gustavo Alves dos Santos. Entre os colegas, é chamado de Gustavo dos Santos. Homem de estatura baixa e magra. Acima do lábio superior corre um bigode que acompanha os cabelos castanhos e grossos, herdados de seu pai pela espessura, e de sua mãe pela cor. Os olhos de cor cinza e escuros, adquirira do pai, e da mãe, um olhar perceptível e calmo que retrata um lago subterrâneo sem a interferência humana. Sua postura é de um homem sério, mas a perde sempre que está diante de Clara.

— Quem é essa? — indagou ele com a mão direita apontando para os papéis da cliente.

— Yeda Toledo Gonçalves — replicou ela em ritmo lento.

— Uma bela mulher!

Clara fez uma expressão irônica.

— Não é aquela que dois meses atrás veio lhe pedir ajuda e, sem mais nem menos, saiu correndo da sala chorando como se estivesse sob alguma intimidação?

— Sim.

— O que a fez mudar de ideia?

— A guarda da filha.

— Para este fim suponho que houve uma causa anterior que a deixasse naquele estado quando saiu às pressas daqui.

— Naquele dia, ela teve uma briga com o marido quando ele soube que ela havia levado a criança para junto de sua mãe em Minas. Ela teve medo de que ele a agredisse ao ver que a menina o presenciava várias vezes alcoolizado.

Ele a praguejava dizendo que ela havia lhe tirado a menina e que com ela pretendia fugir ao lado de um suposto amante do passado. Causa de todas as brigas entre os dois que começaram quando, uma vez, ela encontrou com esse seu conhecido para quitar-lhe um empréstimo de um milhão e quinhentos mil cruzados que tomara para pagar o tratamento de seu irmãozinho. Este, três dias depois não resistiu...

A expressão de Gustavo recuou, ficando mais sério.

— Nesse dia, ele os flagrou, e veio lhe o pensamento de que ela o traía já algum tempo.

— Não seria essa sua intenção de fugir realmente com a menina, uma vez que está sob ameaças?

— Ela não teme a agressão dele, mas contra a filha, pois a criança dizia ter-lhe medo ao vê-lo no estado de embriaguez. Se tivesse essa pretensão, já o teria feito sem que ele e o velho amigo dela soubessem. Em vez disso, levou a menina para ficar junto da avó.

— É uma suposição.

— Não, ela me disse.

— Tenho minhas dúvidas — comentou Gustavo com uma incerteza quando coçou a cabeça e levou os olhos ao chão. — Se ele estiver certo...

— De julgá-la infiel não lhe afirmo nada, mas em relação à criança, ela me pareceu sincera ao dizer que a menina adorava o pai. Este a tratava com

ternura a ponto de defendê-la quando ela ficava sob ameaças de apanhar da mãe. Mas quando ele bebia, a criança não o reconhecia. Amedrontava-se correndo para o seu quarto e fechava a porta.

— Por que só agora ela veio lhe pedir ajuda e não antes?

— Porque ele disse que tomará a guarda da menina, uma vez que recorrerá à Justiça.

— Nesse caso, ela tem possibilidades de ganhar a tutela da garota se os dois vão separar em comunhão de bens.

— Eles não se casaram sob esse acordo. Os dois se conheceram pela primeira vez quando ele ligou para a agência onde ela trabalhava,

convidando-a para fazer-lhe companhia num passeio de fim de semana em Búzios. No começo, não houve uma relação íntima porque ele só necessitava de sua companhia quando se sentia em profundo estado de solidão. À medida que os dias passavam, surgiam outros convites. Nesse tempo, começava a rolar entre os dois um clima amoroso. — Ao proferir a oração final, Clara fez gestos com as mãos atribuindo a afirmação à cliente. — Até que certo dia, ela fizera a ele uma proposta de se juntarem. Ele aceitou com a condição de que os dois se casassem em separação de bens.

— A criança é a única herdeira dele?

— Não. Ele tem uma prima e um casal de sobrinhos que também são contemplados em seu testamento. Mas a sucessora principal de administrar futuramente seus bens é a filha.

— Pena que a mãe voltará com uma mão na frente e outra atrás — disse ele ao empregar um recurso linguístico direto e tosco.

— É esse o dilema dela. Ele tem meios para assumir a criança, já que possui melhores condições de proporcionar-lhe uma vida de conforto.

— Uma pergunta.

Clara o aguardava com um gesto.

— Ela tem dinheiro para disputar a causa?

— Sim.

— Como?

— O seu velho amigo bancará todas as despesas para dar abertura no processo.

— Velho amigo! — ironizou Gustavo.

— De que lado você está?

— Do seu, querida.

— Então me faria um favor?

— Qualquer coisa.

— Deixe-me trabalhar.

Uma vez que ele interpretou o significado de suas palavras, ergueu as mãos como um pedido de desculpas.

Naquele momento, o telefone tocou. Clara, imediatamente, atendeu. Era a sua amiga Gislaine Cristina Paiva. Dois anos mais velha que ela. Uma jovem de acentuada beleza cujo semblante revela uma personalidade altamente independente e desabrochada. Seus olhos são cor de amêndoa e cativantes, os quais traçam uma harmonia perfeita com os cabelos castanhos e cacheados, estes, por sua vez, realçando-lhe os ombros. Usa sempre trajes um pouco fora do habitual da realidade recente.

Estava confirmando a companhia da jovem para assistirem a uma apresentação de um grupo de dançarinos a ser realizada às oito em ponto no Teatro Cultura.

— Confirmando um compromisso? — indagou Gustavo com um olhar sinuoso.

— Sim. Recebi dela um convite para assistirmos juntas a uma apresentação de dança de um grupo famoso naquele teatro. Não gostaria de vir conosco?

— Não posso. Tenho que terminar a análise de um processo hoje para uma audiência que terei amanhã — Usou de suas tarefas de trabalho como uma desculpa para se esquivar do convite.

— Que pena! Vai perder um grande espetáculo.

Ele tirou do bolso interior de seu terno bege uma carta que chegara às oito em ponto, para entregar a Clara.

— Chegou esta manhã, endereçada a você.

Ao ter pegado o envelope de sua mão, notou de imediato que o remetente não se identificara, provocando em sua mente uma indagação curta e precisa.

— Tem certeza de que é para mim? — indagou surpresa.

— O seu nome está aí.

Ela olhou para carta e para ele que saía para deixá-la só. No momento em que chegou à porta, ele a olhou sem que ela o percebesse e se retirou rapidamente. Clara examinou o envelope que fora batido à máquina elétrica. Não sabia se o abria naquela hora para examinar a carta. Colocou-o sobre a mesa, e o esqueceu ali por alguns minutos enquanto continuava a analisar os papéis da cliente. Dentre uma pausa e outra, ela olhava para a carta e voltava os olhos para os papéis. Quando decidira deixar para o dia seguinte a revisão, movida pela curiosidade da carta, guardou os documentos. Em seguida, pegou o envelope para ler. A princípio, pensava se tratar de uma carta de amor anônima ao examiná-la por fora, mas essa ideia era de sua mente descartada, pois as cartas que recebia, eram carregadas de algum tipo de adorno. Abriu o envelope para ler a carta e correu os olhos às primeiras linhas. À medida que lia uma após outra, seu semblante ia se transformando como se o dia, repentinamente, fosse coberto por uma camada densa de nuvens escuras que a qualquer momento abrisse uma tempestade. Houve uma pausa após o término da leitura. Não se saberia descrever o que se passava naquele momento em sua mente. O seu rosto aparentava um estado de palidez, sem se deixar abalar. Uma luz invisível parecia envolvê-la naquele instante para que ela não fraquejasse. Relia a carta e olhava para o vago, pensativa, estando imota por aqueles minutos, quando tentava, de algum modo, extrair uma explicação sobre as escritas. O que estaria nela escrito? Algo relacionado às imagens projetadas pela sua mente? Algo referente ao que se passara dez anos atrás?

Clara Isabel fora deixada num orfanato por sua tia que nunca mais voltara para apanhá-la, e de quem não mais se recordava, vendo-a como uma estranha após se recobrar no hospital do desmaio profundo que sofrera. A partir dali, viria ao mundo pela primeira vez para assumir uma nova índole que não conseguiria, com o tempo, barrar as manifestações de seu subconsciente que a tomava a esse passado longínquo.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.