Acima das muralhas, os magos – protegidos pelos escudos dos soldados – começaram a conjurar bolas de fogo do tamanho de melancias, disparando a cada ordem do capitão Turvin. Eles expunham apenas as mãos por cima da proteção e, ainda assim, cerca de quatro foram feridos nos membros por flechas inimigas.

—Um, dois, três… Disparar! - bradava o capitão loiro, que era o único fora da torre sem escudo e aprumado – Um, dois, três… Disparar! Ei, você!

—Sim, senhor! - respondeu o jovem soldado Mitchel que se protegia atrás de um companheiro.

—Jogue os mortos para dentro, estão atrapalhando os vivos.

—Agora mesmo, senhor!

Passando pela forte luz de Elindora, uma flecha tinha como destino a têmpora do capitão Turvin, porém ele a apanhou a poucos centímetros de ser ferido, revelando destreza e reflexos que não se espera de alguém tão grande.

—Oh! - admirou-se ele – Isso aqui é o famoso aço dos elfos que resiste à magia. - constatou com um brilho no olhar, feito uma criança diante de um brinquedo novo.

Os escudos dos elfos já estavam posicionados para bloquear o número insignificante de bolas de fogo, se comparado ao número dos filhos de Aurora. Foi então que o líder dos arqueiros, Nytarian, se posicionou ao lado do rei e puxou sua flecha, que não era feita de matéria, mas sim de aura. Assim que foi disparada, assumiu em pleno ar a forma de um pássaro translúcido azul que voou alto em direção as muralhas e, quando finalmente ficou sobre as cabeças dos inimigos, se fragmentou em centenas de flechas que começaram a cair contra eles. Contudo, os magos, em movimentos sincronizados, ergueram uma proteção invisível que salvou boa parte dos calendrinos, exceto por oito e, desses, apenas dois foram fatalmente feridos.

No pátio do castelo, Raregard e Uly se esforçavam para mover uma enorme máquina que em muito lembrava um aríete, feita de madeira e aço, com uma ponta que lembrava a cabeça de um rinoceronte. Assim como o artefato lançador de flechas que o elfo usara para assassinar os sete guardas, este também possuía engrenagens e uma pedra encrustada na parte de trás que parecia estar conectada a todo o sistema.

—Vou transportar isso para os portões de Calendria. - revelou Uly com certa urgência.

—E sua aura? Isso vai te custar muito!

—Tá preocupado comigo, emberlano? - ironizou.

—Só não quero que tudo isso seja por nada, droga de elfo. - rebateu o homem irritado – Além do mais, pensei que precisasse de uma conexão. Não tá pensando em lançar uma pedra daqui, né?

—Eu não preciso lançar nada. - respondeu Uly com um sorriso confiante.

Na linha de frente do exército de Aurora, Nytarian acabava de lançar outra flecha, dessa vez feita de aço comum, porém com detalhes peculiares na ponta e que possuíam um brilho perolado.

—Puxar! - ordenou o líder dos arqueiros, também puxando sua própria flecha – Disparar!

Enquanto as centenas de flechas viajavam contra as muralhas, a de Nytarian ia ainda mais alto, graças ao seu poderoso arco longo com inúmeros relevos que lembravam os galhos de uma árvore. Tal flecha passou por cima das defesas de Calendria e caiu no interior. Ele então encarou Yliel, assentindo para o rei que entendeu e riscou um círculo contra o céu usando a ponta de Elindora. O clarão que cegava os calendrinos desapareceu e, durante um segundo, a noite pareceu ter virado dia em toda aquela região.

—É agora! - constatou Uly olhando para o alto e imediatamente abrindo uma enorme passagem sob seus pés, suficiente para engolir a arma.

—Ora, ora, ora… Então quer dizer que temos ratos no castelo. - disse um homem calvo, de cicatriz transversal, com queimaduras e, em ambas as mãos, duas espadas.

Raregard ficou em choque, mas o elfo não se mostrou surpreso, como quem sabia que as coisas estavam sendo fáceis demais e já esperava pelo pior. Contudo, este, por sua vez, encarou o emberlano e disse repleto de determinação:

—Vou mantê-lo ocupado tempo suficiente para que você atravesse a porta. Se eu morrer, você ficará preso na Câmara do Vazio para sempre.

—Do que você está…

Antes que Raregard pudesse terminar de falar, sentiu a presença do capitão Decarlo atrás de si e ao se virar, viu a espada de Uly bloqueando ambas as lâminas.

—Você prometeu, filho de Emberlyn! Você prometeu! Vai! Vai! - gritou o elfo.

Embora não quisesse abandoná-lo, Raregard percebeu que o Rinoceronte de Aço estava quase desaparecendo no solo, sentindo uma angústia terrível no peito.

—Vê se não morre, idiota!

—Se apresse, humano!

Decarlo se desvencilhou de Uly e tentou golpear o emberlano, porém foi chutado na altura das costas pelo elfo e, irritado, virou-se para se defender da espada que tinha seu pescoço como alvo.

—Depois de arrancar seus olhos e fazer um colar com eles para dar de presente a mais bela das putas, vou atrás daquele escravo maldito.

—Talvez eu arranque sua língua primeiro, torturador maldito. Faz tempo que eu tento me livrar de você pelo que fez nos arredores de Aurora. - disse Uly ameaçador.

Raregard desapareceu junto com a enorme máquina de Stonehold e agora se encontrava naquele mesmo lugar estranho, onde não se via nada além de uma porta que, dessa vez, estava bem mais distante.

—Puta merda… - frustrou-se, porém rapidamente começou a empurrar a arma com toda a sua força, fazendo as rodas girarem lentamente.

O elfo bloqueava os golpes das duas espadas inimigas com extrema destreza, porém a quantidade de aura que estava liberando para manter a Câmara do Vazio era um peso a mais que fazia escorrer gotas de suor e o deixava ofegante. Decarlo, por sua vez, não mostrava misericórdia e embora tivesse sua movimentação limitada, graças as queimaduras ainda em processo de recuperação, atacava incessantemente.

As mãos do emberlano doíam, seu corpo ardia e seus pés pareciam prestes a deixarem de responder a qualquer instante. Contudo, ele continuou empurrando, sem ousar se poupar por um minuto sequer.

—Elfo de merda! - vociferou o capitão, encontrando uma brecha para chutar o peito do inimigo e derrubá-lo no chão. Aproveitando-se disso, começou a tentar cortá-lo ali mesmo, sem dar direito do outro tentar se reerguer, ao passo em que o elfo apenas rolava para trás – Quanto tempo acha que vai durar?

Uly estava prestes a ser perfurado por uma das espadas do inimigo, quando usou um dos corpos como escudo, aproveitando-se da armadura do soldado morto que, por sinal, era Helmes, o maior deles. Então, vendo que o humano estava em seu alcance, chutou-lhe a canela e ficou de pé, ofegando consideravelmente.

O que está fazendo, Raregard? Pensou consigo, notando que sua visão começava a ficar turva.

A porta já estava na mesma distância daquela que usaram para invadir o castelo, contudo diferentemente de outrora, dessa vez não bastava apenas caminhar até ela. As mãos do homem, machucadas pelo atrito contra a madeira, latejavam e se tornavam um obstáculo para que ele pudesse continuar usando o máximo de suas forças. Foi quando se lembrou de todas as vezes em que a dor o impediu de ir adiante, o cegou, o tornou inútil.

Raregard enxergou a si mesmo quando era apenas uma criança cheia de sonhos e destemida. Enxergou sua mãe ajoelhada, chorando sobre o corpo de Gerard, seu pai e, como se não bastasse, lembrou-se do exato momento em que foi atirado no interior de uma carroça, enquanto Liz protestava aos gritos até ser morta por golpe de espada.

Urrando de dor, mas não se atrevendo a poupar seu próprio corpo ou se permitir descansar, o homem empurrou a enorme estrutura que compunha o Rinoceronte de Aço. Foi quando viu que a porta negra parecia ligeiramente opaca; estava desaparecendo.

—Espera aí, Uly! Aguenta só mais um pouco! - gritou desesperadamente.

O elfo estava suando bastante e já tinha alguns cortes nos braços. O capitão de Calendria, por sua vez, acabava de limpar o sangue que escorria de um corte na bochecha. Decarlo teve urgência em avançar sobre o invasor, pois embora não entendesse direito como funcionava a habilidade dele, sabia que algo de ruim estava para acontecer por causa da arma que tinham levado, por isso começou a desferir golpes com ambas as lâminas na tentativa de romper as defesas de Uly, que se esquivava como podia, embora estivesse bem mais lento do que o normal.

Um deslize cometido em um intervalo inferior a um segundo, quando não conseguiu se abaixar a tempo, custou ao elfo sua orelha esquerda, decepada pela espada direita do capitão, que voou banhada de sangue em pleno ar e arrancou de seus lábios um urro de dor.

A porta ficou cada vez mais opaca, quase desaparecendo de vista, embora Raregard já estivesse em frente a ela, pronto para abri-la.

—Mas que porra… - murmurou o emberlano – Além disso, como vou atravessar essa droga de máquina nessa porta?

—Apenas atravesse. - disse a voz rouca do elfo que ecoou por todo a Câmara do Vazio.

Os olhos de Uly já não tinham a metade do brilho de sempre. Sangue banhava o lado esquerdo do seu rosto e, embora estivesse ofegante, não se deixava intimidar pelo humano das duas espadas. Este, por sua vez, exibia um sorriso demente que se misturava aos espasmos de dor pelo corpo, sobretudo nas queimaduras adquiridas na floresta.

—Eu vou te matar, elfo nojento. Vou exibir sua cabeça para os lordes e ser recompensado por isso.

—Não duvido que Calendria recompense um torturador patético como você. - afrontou, embora sua exaustão ficasse visível na voz fraca.

Vamos, Raregard. Rápido…

O capitão Decarlo avançou contra o outro e, dessa vez, Uly não conseguiu entender os movimentos que ambas as lâminas faziam, logo ficou confuso sobre como deveria bloquear e começou a saltar alguns passos para trás, todavia foi derrubado pelo chute do outro que imediatamente tentou perfurar seu rosto.

—Morre, desgraçado! Morre! - bradava o capitão às gargalhadas.

Uly teve a mão perfurada por uma das lâminas, ficando presa no solo. Embora gritasse de dor, ele bloqueou a outra espada com a sua própria, tentando evitar um golpe fatal que, se passasse, o atingiria em cheio na face.

Acima das muralhas, o capitão Turvin ouviu uma confusão vinda do lado de dentro, na rua principal, perto dos portões. Os soldados estavam estranhando uma porta negra, que se abria literalmente no meio do nada e, em seu interior, tinha uma sombra realmente grande.

—Mas que caralho é aquilo? - questionou o grandalhão.

Nesse momento, o comandante Jonathas, que estava na torre, também percebeu a anomalia e sobre isso, semicerrou os olhos, murmurando mais para si:

—Hum, então é assim.

Raregard puxou a alavanca e a pedra encrustada imediatamente começou a brilhar, dando início a um intenso movimento de engrenagens. Vários soldados estavam em frente a porta, tentando enxergar em meio a escuridão que os separava do que havia do outro lado, até que uma enorme estrutura similar a uma cabeça de rinoceronte feita de aço, deu um forte solavanco e os acertou, arremessando dezenas de homens contra os portões. O objeto não parou, esmagando os militares como moscas e agredindo furiosamente a enorme estrutura das muralhas.

—Vai, sua máquina pesada do caralho, arrebenta com eles! - proferiu um Raregard eufórico.

O Rinoceronte de Aço derrubou os portões do reino de Calendria, deixando seus homens absolutamente perplexos. Diante deles, todo o exército de Aurora assistia a tudo e, entre eles, o rei elfo, Yliel Luyah, quase sorriu ao dizer:

—Obrigado, Uly. - em seguida, ele encarou Nytarian, Bellie e Erdwen, para só então apontar Elindora em direção ao território inimigo e bradar o mais alto que sua garganta lhe permitiu – Aurora… ATACAR!

Os elfos gritaram, os tigres rugiram e todo o exército começou a avançar furiosamente, fazendo o solo tremer, levantando uma enorme cortina de poeira, se aproximando a toda velocidade dos seus inimigos jurados.

A porta começou a diminuir de tamanho, então Raregard rapidamente deu um jeito de pular para fora e quando já esperava ser executado pelos calendrinos, viu que nenhum deles sequer tinha parado para olhá-lo. O emberlano viu, através dos portões, que os amigos de Emberlyn se aproximavam como uma verdadeira tempestade trazida pelo vento. Viu também, ao olhar para trás, que já não havia porta e que o Rinoceronte de Aço tinha desaparecido com ela. Sentiu uma fisgada incômoda, mas não teve tempo de refletir, pois precisava se esconder antes que alguém o notasse ou, pelo menos, era isso que achava. Acontece que, do alto das muralhas, Jonathas já o observava com um olhar altivo.

Os arqueiros calendrinos começaram a atacar, porém aqueles liderados por Nytarian, na retaguarda das tropas e montados em seus tigres, contra-atacavam com exímia precisão. Assim como Yliel outrora tinha dito, os soldados calendrinos saíram como formigas de um formigueiro e começaram a se dispersar o mais rápido que podiam. Pelos flancos, os cavaleiros tentavam cobrir a maior área possível, todavia ainda que a entrada de Calendria fosse realmente larga, era quase insignificante diante de milhares de soldados inimigos que traçavam uma linha realmente extensa.

Yliel brandiu sua espada, lançando uma rajada de luz que derrubou dois cavaleiros, então Pegasus saltou sobre um dos cavalos e abocanhou seu pescoço, ao passo em que seu domador, arremessado, segurou o militar pela cabeça e o derrubou no chão, fincando Elindora em seu pescoço.

Elfos e homens lutavam de maneira selvagem, era possível ver membros de ambos os lados sendo decepados, sangue jorrando e terra sendo jogada para todos os lados. Os escudos de rastare se mostravam mais eficientes do que os de aço comum, que se quebravam ante a força das espadas élficas. Erdwen estava empenhado em matar o máximo de inimigos que pudesse, sem perder tempo, buscando os pontos vitais de cada um nas brechas das armaduras. Bellie abriu a boca e um som estridente rompeu de seus lábios, forte o bastante para arremessar vários homens e estourar seus tímpanos.

Os magos atiravam bolas de fogo do alto e, alguns deles, erguiam pedras para matar os inimigos e defender seus aliados, todavia começaram a ser atingidos pelas flechas de Nytarian e seus arqueiros, os forçando a recuar.

Passando pelos portões sem se importar em derrubar os próprios companheiros, o enorme capitão Turvin veio correndo como um animal selvagem durante a caçada. Quando apanhou o primeiro elfo pela cabeça, o suspendeu em pleno ar e esmagou seu crânio, não se importando com o sangue que manchou seu rosto. Então, atirou o corpo morto contra Yliel, que se esquivou e o encarou realmente furioso.

—Não, majestade. - interviu Erdwen que também estava irado – Aquele ali é meu. - concluiu num rosnado.

Turvin e Erdwen correram um na direção do outro, cada qual se livrando dos inimigos pelo caminho. Como um touro, o capitão calendrino arremessava longe elfos e tigres, ignorando as mordidas dos felinos e socando suas cabeças até que o soltassem. Foi quando tentou apanhar o líder da guarda real de Aurora tal como fizera com o companheiro elfo lá atrás, todavia, Erdwen escorregou por baixo das pernas de Turvin, saltou sobre suas costas e tentou lhe perfurar o pescoço com a ponta da espada, mas precisou desistir quando uma flecha quase o acertou.

O maior desembainhou a espada que, tal como ele, era assustadora e impossível de ser manejada por um homem comum. Então começaram a trocar golpes, nos quais o elfo evitava disputar força e apelava para a técnica.

—Isso! Isso! - gritava Edd Turvin, eufórico, enquanto era golpeado por Erdwen, que já tinha conseguido arrancar as placas da armadura que protegiam seu braço direito.

Foi então que o tigre amarelo de listras negras e brancas pulou sobre aquele braço, abocanhando e arrancando um urro de dor do grandalhão, que tentou golpeá-lo com a espada, mas foi bloqueado pelo líder da guarda real de Aurora, que finalmente liberou sua aura e, nesse instante, surgiu um segundo Erdwen, embora fosse translúcido, assumindo uma coloração azulada muito similar as folhas da Floresta Lazúli. A projeção saltou sobre o calendrino, dando-lhe um mata-leão, enquanto o verdadeiro pulou para cortar seu pescoço.

Em apenas um instante, Turvin arremessou o tigre que levou junto um pedaço de carne do seu braço, chutou o elfo em pleno ar, lançando o mesmo alguns metros a frente e, concentrando uma quantidade absurda de aura no punho, golpeou a projeção que desapareceu como fumaça.

—Você é bom! - elogiou o grandalhão, lançando ao inimigo um sorriso genuíno – Vocês são bons! - continuou, agora olhando também para o tigre – Venham!

—Tsc! Monstro maldito! - disse Erdwen inconformado.

Yliel olhou para o alto, avistando o comandante Jonathas que já o encarava fixamente. Este, por sua vez, estalou os dedos para o soldado mais próximo da trombeta.

Três notas foram tocadas. Houve uma pausa. Mais três notas.

O rei elfo estranhou aquilo, mas não tinha tempo de pensar muito dada a quantidade de inimigos que entravam em seu caminho só para morrerem miseravelmente frente a lâmina lendária, que cortava até mesmo as armaduras como se fossem meros tecidos.

—Inimigos ao norte! - gritou um dos soldados elfos.

—Ao sul! Ao sul! – gritou outro, próximo a Yliel.

Milhares de soldados calendrinos – que durante todo esse tempo estiveram aguardando fora das muralhas – avançavam por ambos os flancos, montados a cavalo, apenas para fechar todas as saídas dos inimigos e confiná-los a um espaço que embora ainda fosse grande, era limitado.

—Achou que não tínhamos visto seu invasor, rei dos elfos? - disse Jonathas, ainda o encarando lá da torre – Eu estava curioso sobre a estratégia de vocês, por isso permiti que ele entrasse pelos canais do norte. Até mesmo o ajudei para que algumas pessoas indesejadas não o encontrassem. Contudo, agora… É o fim para vocês. - concluiu em um tom sombrio.

Jonathas começou a descer as escadas do andaime e seus soldados facilitaram sua passagem até o front da batalha. Quando finalmente desembainhou a espada, deixou toda a sua aura explodir e isso imediatamente chamou a atenção de Yliel, que o encarou e, em seus olhos azuis, havia a fúria de todo um reino.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.