Eu precisava ir embora. Jace, o rapaz de olhos castanhos que havia me encontrado naquela manha, era um homem de bem, estava completamente disposto a me ajudar e logo após me alimentar, ele saiu mundo afora... Eu agradecia verdadeiramente ele dentro de mim, mas estava completamente incomodada com Rebeca. A moça havia me levado ao andar de cima e me mostrado um quarto onde eu poderia dormir e descansar, além de me entregar um simples vestido verde logo, de mangas, bem justo no tronco, de forma que meus pequenos seios ficavam tao apertados que quase pulavam para fora daquele indecente decote. Ela havia me explicado que ali era um bar durante a tarde e um cabaré durante a noite, por tanto, se não quisesse problemas me recomendou que não saísse do quarto depois das seis da tarde... De acordo com ela, eu espantaria os clientes...

Era obvio que ela não me queria ali, e que minha aparência a incomodava, fazendo questão sempre de me encarar com desprezo e comentários curtos sobre minha aparência. Após Jace sair, me mantive no quarto, pensativa. Pelo barulho, não havia só eu e Rebeca no prédio, provavelmente os outros quartos pertenciam a outras garotas que mais tarde iriam se oferecer a rapazes e usa-los para outra coisa além de dormir... Não se preocupe Rebeca, não pretendo sair daqui.

Me levantei e caminhei até uma simples penteadeira no canto do quarto, ao lado da janela, sobre ela, havia um espelho quadrado, meio sujo, mas era o suficiente para ver meu rosto. Desde de que entrei no manicômio, eu não me olhava no espelho... Havia implorado para o velho doutor para tirar o único espelho oval no lavatório do meu quarto, eu não aguentava me ver com todas aquelas cicatrizes... já bastava eu ter que ver sempre as do resto do meu corpo, não precisava ver as do rosto também, na verdade, eu já havia esquecido como era meu rosto, e agora, ele estava ali, refletido no espelho.

Meu rosto tem um formato oval e minhas bochechas são cheinhas, mas não de forma exagerada, meus lábios finos e rosadinhos contrastavam com minha pele pálida de quem estava a anos trancada em um hospital, enquanto meus olhos azuis pareciam sem vida. Um dos olhos não se abria totalmente, impedido pela cicatriz que ocupava a metade direita do rosto... Minha pele nessa região era escura e lembrava um troco de arvore velha, onde seus veios marcam a casca, revelando sua impressionante idade. Sabe, talvez eu fosse uma jovem bonita sem ela... um pouco sem graça e discreta, mas bonita. Meus cabelos negros e extremamente lisos dariam trabalho para se manter num penteado chique e gracioso, que valorizaria meu rosto, pois até mesmo um simples rabo de cavalo sempre se soltava em pouco tempo, com o elástico escorregando nos fios, mas talvez alguém um dia me notasse mesmo tão apagada.

Meu devaneio foi interrompido por uma rápida batidinha na porta, abrindo em seguida:

—- ola! Posso entrar? – Disse uma voz fina e suava vinda da porta de madeira envelhecida.

Ao olhar para a porta, uma garota havia adentrado metade de corpo para dentro. Aparentemente, tinha em torno dos 12 anos, e era incrivelmente graciosa. Tinha o cabelo ruivo e longo que caiam em cachos grossos em seus ombros até a abaixo do seio, sua pele branquinha era coberta de sardas, principalmente nas bochechas que dava um tom rosado a sua bochecha, aparecendo mais timidamente no resto do corpo, tinha um corpo pequeno e magro, mas os seios pareciam querer pular para fora do vestido. Os olhos azuis dela primeiramente varreram o quarto com um sorriso simpático no rosto, até me encontrar na penteadeira, abalando sua expressão por alguns segundos.

—- oh... ah... posso? – Claramente abalada com minha aparência, a menina gaguejou e eu corei, abaixando a cabeça.

—- Sim... – Disse eu me levantando, vendo de canto de olho meu reflexo no espelho novamente. Queria poder quebra-lo.

—- Booom... – Disse ela, se recompondo e entrando no quarto, fechando a porta atrás de si. – Rebeca me disse que havia uma hospede, então resolvi cumprimentar. – Disse ela caminhando em minha direção, que a essa altura, já estava novamente sentada no canto da cama. – Meu nome é Amanda... mas pode me chamar de Mandy! – ela esticou a mão na minha direção.

—- Alice. – respondi desanimada, apertando a mão dela, mas olhando para baixo.

—- Belo nome! – Disse ela sorrindo... parecia nervosa por não saber exatamente como conversar comigo. – Pretende ficar por muito tempo?

—- e-eu não sei... – Respondi seca... é claro que ela queria que fosse embora de uma vez, assim como Rebeca.

—- Bom... fique quanto tempo quiser! – Ela disse sorrindo e se levantando, caminhando até um armário velho no outro canto do quarto. – Eu não pretendo ficar muito... – O tom de voz dela tinha sido intrigante... como uma garota travessa.

—- Desculpe... mas você trabalha aqui? Me parece tão jovem... – Ela sorriu em resposta.

—- Não... não exatamente. – disse ela, abrindo uma das gavetas do armário que estava trancada... eu havia reparado o cadeado antes, mas não havia tentando abrir. – Sou filha de Rebeca, tenho 16 anos. Jace não quer que eu trabalhe aqui por conta da idade... – Ela tirou uma pequena bolsa de couro de dentro da gaveta, parecia cheia. – Mas nem toda noite ele esta aqui, e minha mãe que manda quando isso acontece...

—- Oh... meu deus... – Soltei sem querer, imaginando o fato que Rebeca prostituía a filha.

—- Ah... não é tão ruim. O ato é prazeroso... as vezes. – Disse ela vacilando um pouco no tom, se sentando ao meu lado com a bolsa de couro em mãos. – Mas bom, não há muitas ruivas no mercado, e os clientes escolhidos a dedo por minha mãe pagam caro. – Ela sorriu ao dizer isso, abrindo a bolsa e me mostrando seu conteúdo. Estava cheia de moedas de ouro. – E eu nunca dou todo o dinheiro a ela.

—- V-voce vai fugir? – Para mim parecia claro seu plano... Juntando dinheiro as escondidas de sua mãe. Ela respondeu positivamente com a cabeça e mantendo um sorriso malicioso no rosto. – Por que esta me contando isso?

—- Bom, minha mãe disse que você chegou aqui parecendo que havia fugido do inf... – Seus olhos encararam os meus, de forma assustada, parecendo repensar no que falar – de um lugar ruim... Pensei que pudesse me ajudar. – Fazia sentido... Mas tinha um detalhe, meu método de fuga era através de um mundo imaginário que eu não controlava meu acesso.

—- Ah... e-eu não sei se posso... – Não sabia como responder, começando a estalar meus dedos, nervosa.

—- Ah... tudo bem! Então só não comente com ninguém – Ela sorriu e piscou o olho para mim, olhando para baixo em seguida, vendo eu estalar meus dedos, logo então seus olhos acompanharam a mancha das minhas mãos subindo pelo braço, como se visse através da manga do vestido, até chegar em meu pescoço e rosto. – Mas... seria muita ousadia minha se eu perguntasse como você conseguiu essa cicatriz? – Corei.

—- Ah... – Gaguejei... pensei em não dizer, mas aquela jovem havia confiado o plano da sua vida a mim se sequer me conhecer, ela merecia um voto de confiança. – Um incêndio... a... muito tempo. – Ela concordou com a cabeça, fazendo uma cara triste de compreensão.

—- Bom... talvez eu possa te ajudar! – Disse ela abrindo um sorriso de repente, como se algo em sua mente houvesse se iluminado. Antes que eu pudesse responder, ela se levantou, largando a bolsa na cama ao meu lado e saindo saltitante do cômodo.

Eu olhei para a bolsa de moedas... Nunca precisei lidar com dinheiro, então não tinha noção de preço das coisas, principalmente após a internação, mas eu tinha certeza que havia dinheiro o suficiente para ir bem longe, talvez uma vida nova na America... Ainda é possível? Até onde me lembro, lá era um lugar para se ter uma vida nova... Alguns minutos depois, Mandy entrou no quarto como a mesma luz em seu rosto, trazendo uma pequena caixa em suas mãos. Ela se sentou ao meu lado e abriu o objeto... era maquiagem.

Eu nunca havia usado maquiagem, mas tinha lembrança de minha mãe usando quando eu era mais nova... Ela dizia que era coisa de adulto que não tinha mais o rosto perfeito de uma criança... Eu gostava da ideia de que eu tinha um rosto perfeito, mas mesmo assim sempre queria usar... Se ela me visse agora...

—- Bom, minha mãe nunca deixa que falte maquiagem aqui para as meninas... infelizmente não é de tão boa qualidade, mas acho que é o suficiente. – Disse ela, tirando de la alguns pequenos potes que eu não sabia para que servia.

—- Suficiente para...?

—- Esconder essa cicatriz! Seu rosto é lindo! E você precisa ver isso. – Ela disse e aquilo me acertou como um soco.

Eu tentei convence-la que aquilo era uma má ideia com inúmeros argumentos, mas Mandy estava irredutível. Rapidamente ela me fez sentar direito enquanto ela, de pé a minha frente, começava a me maquiar. De certa forma, eu havia gostado da ideia... Ela estava sendo tão legal. Tinha vindo me conhecer aparentemente sem querer me atingir, havia confiado em mim sem nenhum motivo aparente e agora estava “tentando me mostrar o quando eu era bonita”... Essas são palavras delas. Eu estava de olhos fechados, mas sabia que havia um leve sorriso bobo no canto da minha boca.

Após alguns minutos de “fique quieta!”, “não se mecha!” e “não pisque!”, ela finalmente anunciou o fim de sua obra prima, me mandando continuar de olhos fechados para que me apresentasse sua obra prima de forma cerimonial. As cegas me levantei enquanto ela segurava minhas mãos e me guiava, dando alguns passos a frente e fazendo uma curva. Quando finalmente chegamos onde ela queria, a senti dando a volta em mim, ficando nas minhas costas e segurando meus ombros.

—- Pode abrir! – Anunciou ela. Sua voz tinha um tom animado.

Então abri os olhos e soube onde estava. Ela havia me colado de pé em frente a penteadeira, onde eu poderia ver meu reflexo a admirar seu trabalho em meu rosto. Quando finalmente foquei na imagem formada no espelho, levei minha mão a boca, espantada.

—- Oh meu deus... – Não havia mais cicatriz. Minha pele estava lisa, e não mais pálida, parecendo que eu havia me bronzeado apenas o suficiente para que meu rosto perdesse aquela aparência de doente. Meu rosto estava iluminado e perfeitamente... perfeito! Não há outra palavra que eu possa descrever.

—- Gostou? – Disse ela com uma expressão brincalhona, orgulhosa de seu trabalho, enquanto meus olhos se enchiam d’agua... Eu estava linda.

Por impulso, abracei a garota, chorando. Aquela cicatriz havia sido extremamente traumática, e até hoje eu não a aceitava, prejudicando minha socialização até mesmo com as outras pessoas do hospital... e ela não estava mais la! Mesmo que temporariamente, eu me sentia normal de novo, e estava me achando linda! Eu estava linda! Ela correspondeu meu abraço de forma gentil, mesmo ela sendo menor que eu, me senti como se ela me cobrisse inteiramente, me aconchegando completamente em seus braços.

—- Vou entender isso como um sim. – Disse ela com um tom gentil, alisando meu cabelo por um tempo, mas logo ela me soltou e levantou meu rosto. – Agora pare de chorar! Eu disse que a qualidade da maquiagem não é das melhores! – Ela falou, se esticando e alcançando um dos potinhos sobre a cama enquanto secava as lagrimas com a mão livre, voltando a retocar meu rosto.

—- Entendi. – Disse eu, controlando o choro e com um sorriso bobo. Eu estava feliz.

Conversamos mais um pouco... Não me atrevi a contar muito sobre tudo o que havia passado, dizendo apenas sobre os poucos anos felizes de minha vida antes do meu pai morrer, mas ela contava tudo de forma radiante... Sobre seus planos quando saísse daquele lugar, um namorico que ela mantinha as escondidas do outro lado da cidade... Não vimos o tempo passar, mas ao reparar que o brilho que vinha da janela era alaranjado, Mandy se levantou:

—- Bom, preciso ir. Jace não está hoje, então irei trabalhar. – Ela sorriu, como se dissesse que estava indo a uma doceria.

Ela se despediu e saiu do quarto, fechando a porta, e eu voltei a penteadeira. Não me cansava de admirar meu rosto refletido naquele espelho meio sujo, mantendo um leve sorriso bobo no rosto. Agora eu podia ver minha semelhança com minha irmã e mãe... Sempre me achei completamente sem graça, comparando com as duas. Minha mãe era graciosa, rosto redondinho e bochechas rosadas, cabelos loiros que iluminavam seus olhos azuis cristalinos... Minha irmã havia puxado tudo isso dela, se tornando minha menina preferida no mundo, com o sorriso mais lindo do mundo... e eu? Agora sem a cicatriz havia notado que, agora crescida, era uma versão morena de minha mae... Talvez eu não tivesse suas bochechas fartas e rosadas, mas trazia a serenidade do rosto do meu pai, juntamente com os cabelos dele. Como eu queria que você me visse agora, Ana... Eu finalmente havia visto o que você sempre disse, e eu tenho certeza que estaria orgulhosa e tão feliz quanto eu... Eu preciso te encontrar...