Era Eduardiana, 1902

Corria alegre pela grama molhada, com os pés nus e sujos pela lama. Os cabelos castanhos e ferozes voando ao vento e se bagunçado com a velocidade. Atrás de si corriam mais três meninas, uma mais alta de pele bronzeada, olhos azuis e cabelos castanhos escuros, vestia um simples vestido verde. A mais baixa tinha o cabelo loiro da altura dos ombros e em leve ondulações, com uma fita amarela prendendo algumas mechas, sardas espalhadas pelo rosto e olhos vibrantes, no mesmo tom de belas castanhas. A terceira tinha a mesma altura da que corria em frente a todas, exceto que era mais gorducinha, tinha olhos azuis turquesa e vestia um lindo e sedoso vestido branco, com listras azuis e um laço roxo na cintura. As quatro irmãs corriam como dríades pela floresta iluminada pelo Sol vibrante. A irmã do meio, que corria com seus cabelos ferozes, se jogou em um gramado com algumas flores e riu, esfregando seu rosto nos cabelos espalhados pelo chão.

— Não deveríamos correr tanto. – A irmã de olhos azuis disse, ofegante. – Veja, perdeu até seus sapatos.

— Não faz mal. – A irmã caída no chão disse, ainda recuperando o fôlego em meio as risadas. – Esse ar de liberdade me faz bem.

— Você é veloz Anya, quase não conseguimos alcança-la. – A irmã gorducha, Madelaine, disse, sentando-se ao seu lado no chão.

— Corre como um veado entre as árvores, parece que nunca se cansa. – Olivia, a irmã mais nova disse sorrindo, exibindo seus dentes tortos.

Anya virou seu corpo de lado, observando seu reflexo em uma poça de água a sua frente. O cabelo liso e bagunçado caía sobre seus ombros até as costas. Os olhos cor de mel brilhavam, sua pele branca e lisa era aquecida pelos raios de sol.

— Apenas aprecio a liberdade... – Disse, deitando-se novamente e assoprando uma mecha que caiu sobre o rosto.

Levantou a palma da mão sobre o rosto, observando. De vez em quando sentia-se como uma boneca de porcelana, como as que ela coleciona em seu quarto. É sempre tratada com cuidado e as vezes de modo severo. As vezes se jogava no chão só para ter a certeza de que não se quebraria, fora os hematomas e alguns pequenos arranhões, nada acontecia. Era quase um alívio, mesmo com a dor.

Olivia retirou do bolso do vestido um lenço branco, com rosas vermelhas bordadas, entregando para que Anya limpasse seu rosto um pouco sujo de terra. Ela limpou sua pele, retirando a sujeira, estendendo para a irmã mais nova.

— Pode ficar, fiz para você mesmo. - Olivia disse sorrindo.

— Obrigada. - Anya guardou o lenço em seu vestido. Ela então se ajoelhou.

Usava um vestido azul bebê que ia até os joelhos, com uma fita de cor coral ao redor da cintura e amarrando um laço atrás. Ela limpou a saia do vestido, decorada com babados brancos na barra.

Ao longe, o enorme relógio da vila tocou, anunciando o meio-dia. Estava na hora das garotas retornarem ao piquenique, junto aos seus pais. As três irmãs deram as costas, voltando pelo mesmo caminho que vieram. Exceto uma.

— Você não vem? - Agatha, a irmã alta de olhos azuis, perguntou, virando-se para Anya.

— Hmm... - A garota olhou para os lados, mordendo o lábio inferior. - Eu vou ficar mais um pouco. Mas não se preocupe, eu alcanço vocês.

Agatha concordou com a cabeça, virando-se e acompanhando suas irmãs. As três caminharam de volta pela floresta, em determinado momento encontrando o par de sapatos caídos de Anya, de cor bege e fivelas sobre o peito do pé, com um salto de 7 centímetros.

Anya ficou ali ajoelhada no chão, observando elas se distanciarem. Quando garantiu que elas estavam longe o suficiente, levantou-se e andou na direção oposta. Ainda não sentia vontade de voltar.

Ela adorava a floresta, um lugar único onde ela podia correr, gritar, cantar e falar o quanto quisesse, sem os olhares cheios de julgamentos. Anya detestava as festas em casa que seus pais davam, ficar entre quatro paredes e mal conseguindo se mover devido a metade da sala ser ocupada pelas saias bufantes de vestidos das damas. Também não se interessava na conversa dos jovens, todos achavam que ela era uma tagarela, os rapazes não gostavam e as damas riam, debochando pelas suas costas. Era muito mais interessante escutar as conversas dos homens mais velhos, amigos de seu pai. Adorava escutar as conversas sobre as diversas viagens que faziam pelo mundo, conseguia imaginar e moldar em sua mente as coisas incríveis que contavam: prédios enormes de cidades grandes, mulheres pelas ruas usando os mais lindos vestidos e chapéus, catedrais com vitrais de tirar o fôlego, teatros com as mais belas peças e trens que se locomoviam tão rápido que mal se conseguia aproveitar a paisagem. Mas o que mais lhe encantava era aquela famosa invenção recente, o carro. Anya já tinha ouvido e visto aquela criação de rodas, eram mais rápidos que uma carruagem e eram conduzidos por pessoas, que andavam com as mãos sempre em um tipo de roda que eles chamavam de volante. As damas tinham conversas superficiais sobre os objetos materiais como jóias e homens, ela preferia escutar caladinha os relatos e imaginas a histórias em sua cabeça. Algumas mulheres olhavam torto, mas ela não ligava.

Ela parou de correr repentinamente, se deparando com um conjunto de rochas que marcava o fim daquela trilha, ficando ao topo de uma ladeira. Subiu sobre as rochas, escalando com cuidado. Ficou no topo de uma, a mais alta de todas e observou a vista ao descer daquela ladeira.

Lá embaixo, havia um lago rodeado de árvores, flores e rochas, sentiu uma imensa curiosidade de ir lá embaixo, mas logo teria que voltar para sua família, não dava tempo.

Quando estava pensando em ir embora, ela moveu-se um pouco mais para frente, então seu pé escorregou por um limo grudado nas rochas, seu corpo se inclinou para frente e colidiu contra a grama, em seguida rolando ladeira abaixo. Suas mãos e pernas ardiam com a velocidade em que passavam pela terra, danificando boa parte do vestido que estava sujo e rasgado em algumas partes agora. Ela tentou cravar suas unhas na terra ou até mesmo agarrar em alguma árvore, mas nunca conseguia a tempo, sempre as ultrapassando. Notou que a sua frente, cercando o lago, as rochas esperavam como uma armadilha pronta. Anya jogou seu corpo de lado, virando suas costas para as rochas, ao lado contrário de seu rosto, barriga e peito, assim não tendo o perigo que perfurassem ou machucassem seu rosto ou órgãos. Ela fechou seus olhos, se preparando para o impacto.

Suas costas colidiram contra aquele conjunto de rochas, em uma dor latejante e quase mortal. Sentiu um fio de lágrimas quentes escorrer dos seus olhos e deslizar pelas bochechas. Ela estava deitada sobre uma das rochas, a beira do lago, finalmente havia parado de rolar. Sua visão estava turva, não conseguia diferenciar muito bem o céu e o chão, apenas enxergava a sua frente suas mãos raladas e com sangue, na tentativa de parar de cair. Todo seu corpo latejava e não conseguia mexer direito seus braços e pernas, mal conseguia respirar. Estava sem fôlego, quase não conseguindo falar, muito menos gritar por socorro.

Ficou deitada por segundos, tentando reunir as forças para se levantar e tentar caminhar de voltar. Seu corpo gelou quando escutou um estrondo e a rocha abaixo de si rachar e cair no lago, a levando junto. Ela afundava como um corpo preso a um bola com correntes afundava, não conseguia nadar ou sequer lutar pela sua vida. A água era mais fria do que pensava, como os últimos rastros que o inverno, a estação anterior, havia deixado, com o gelo sobre o lago de desfazendo e derretendo na água. Olhou para cima, tendo um fio de esperança que alguém aparecesse ali e a salvasse.

Ninguém apareceu. No fim, heroísmo era coisa para livros, ela estava completamento sozinha. Morreria e sua família nem saberia disso, notariam sua falta e viriam atrás dela, mas nunca a iriam encontrar no fundo daquele lago. Ela desapareceria e ninguém saberia como ou para onde ela foi, ela não teria a chance de contar, se despedir ou até mesmo se desculpar. Enxergava o Sol que até agora brilhava, observava tudo sem ajudá-la.

Anya pensou nele como um amigo que a traíra, observando sua morte sem ajudar, um cúmplice. A iluminando e permanecendo ali sem fazer nada. Não queria que o Sol a ajudasse, não, não aquele traidor. Ela pediria ajuda a Lua, quem a zelava durante suas noites de sono, e mesmo em seus momentos em que ela adormecia, totalmente indefesa e inconsciente, nunca a fez mal. Sim, deveria ter confiando na Lua desde o início. Não guardaria rancor do Sol, pois só quando ele vinha ela podia ir a floresta, nos dias ensolarados, mas partiria com ele a vendo morrer. Pediu seguidamente em sua cabeça pela Lua, por sua ajuda, por seu brilho. Mas nada acontecia, ela continuava a afundar lentamente.

Em seus últimos segundos, suspirou tristemente, morrendo justamente no lugar que mais amava, naquela floresta tão bela e florida na primavera. Era compartilhado pela tristeza e beleza. Partiria tendo o pensamento que ninguém nunca terá um túmulo tão florido e belo quanto o seu, mas também nunca terá um também tão gelado. Seus olhos perderam o brilho de antes e se fecharam, sua boca soltou as últimas bolhas. Agora seu corpo afundava mais levemente, a ponta dos pés tocando o fundo do lago, permanecendo ali como uma estátua. Sem nem mesmo um peixinho como companhia.

O Sol se entristeceu com a morte da bela jovem que ele ainda iluminava, sentindo-se mal por não poder agir. Mas o que ele poderia fazer? Era apenas o Sol. Um triste Sol que acabava de perder uma companheira. As nuvens o cobriram e logo a chuva simbolizando suas lágrimas desceram pelo céu. A família de Anya se recolheu para dentro da casa e logo voltaram para busca-la. A procuraram por todos os lugares a cidade, casas, fazendas e até a floresta onde foi vista pela última vez. Anya Faure havia desaparecido, e nunca a encontraram, nunca sequer descobriram seu túmulo aquático.

Durante o entardecer, onde dia e noite de cruzavam, o Sol lamentou com o Homem da Lua, pedindo para que salvasse aquela pobre garota. Para que pudesse ver aquela jovem correr mais uma vez livremente pelas florestas e campos. Sendo esse o último pedido dela, ser salva pela Lua.

O homem da Lua procurou pelo lago, até seu brilho iluminar o corpo afundado da garota. Ao redor do lago, todas as flores e árvores parecia tristes e morrer lentamente, murchando sem perceber. O corpo permanecia intacto, sem entrar em decomposição, era como se estivesse apenas dormindo, em um sono longo e profundo. Com esperança, o homem da Lua assoprou vida no corpo que ele continuava a iluminar. Pequenas luzes prateadas giraram ao seu redor, fazendo suas pele brilhar por uma pequena fração de segundos e então voltar ao normal.

Os cabelos dela se tornaram mais brilhantes, em uma cor um pouco mais escura, brilhante e viva. Os olhos brilharam novamente, agora com o mel se transformando em um castanhos claros, com as íris tão lindas quanto antes. Sua pele se tornou mais viva e em uma cor pêssego claro, com as bochechas e lábios mais rosados. Seu vestido rasgado restaurado em uma camisola azul bebê até abaixo das coxas, com mangas curtas. O laço coral foi restaurado em sua cintura, com o laço atrás ainda maior.

Dois caules de uma árvore wisteria que ficava a beira do lago, caíram e fundaram na água, se enrolado em torno dos pés e tornozelos da garota.

Seu corpo flutuou para cima e ela admirou o brilho da lua, sendo a primeira coisa que ela via em seu nascer. Dois botões de rosa, um branco e outro vermelho, que flutuavam na água se prenderam em uma mecha de seu cabelo quando ela emergiu. Seu corpo agora estava seco e ela era admirada ali pelas flores e árvores.

Olhou para os lados, então para seus pés e mãos.

Quem sou eu?

Perguntou-se. Assim como Jack Frost, que também fora renascido pela Lua, a garota renasceu sem suas memórias de quem era. Quando e como havia ido parar ali, tudo o que sabia era que aquele lugar ela o mais lindo e belo já visto. Nasceu no lugar mais lindo de todos, pensou consigo mesma.

Flutuando sobre a água, ela se inclinou para uma pequena florzinha ali, na borda, que estava encolhida e murchando, ainda com a morte de Anya mais cedo e sem perceber seu renascimento. A garota, hesitante, aproximou seu dedo da pequena flor e tocou as poucas pétalas que lhe restavam. Pequenos pontos brilhantes saíram de seus dedos: amarelo, azul e rosa em cores pasteis. Iluminaram e penetraram a pequena flor que teve seu caule e pétalas restaurados, olhando admirada para garota que havia a salvado, a mesma que pensou em morrer, e agora estava novamente viva. A jovem sorriu alegremente, olhando mais uma vez ao seu redor e respirando admirada.

Flutuou um pouco acima e explorou o lugar, observando as mais variadas flores e criaturas, cumprimentando desde pequenas tartarugas até enormes ursos. Estava tão feliz com tudo aquilo que já até se esquecia de não ter lembranças. Então parou e observou quieta, sem pronunciar uma sequer palavra.

A sua frente estava uma bela rosa vermelha e ao seu redor, um tipo de camada branca e brilhante, que ela não conhecia. Inclinou seu corpo admirada com aquilo, se perguntando o que era.

Isso é neve. O homem da Lua respondeu para ela.

— O que é...neve? - Ela perguntou, sem tirar seus olhos daquela neve.

É um dos últimos rastros do inverno. Antes da primavera vem o inverno. Antes das flores vem o gelo. E antes de você, Primrose Spring, vem Jack Frost.

— Primrose Spring. Esse é o meu nome?

Dessa vez ele não respondeu, seu silêncio sendo uma afirmação que ela compreendeu.

Você agora é a Primavera, a manifestação dela. Deve se lembrar disso. A estação das flores e árvores vivas pelo verde será trazida por você.

Foi a última coisa que ele lhe disse. Antes de não se pronunciar mais.

Ainda encarando a neve, ela esticou sua mão e com a ponta dos dedos tocou a neve. Era gelada e macia, fazendo seu dedo ter uma sensação de congelamento. Aquele pequeno punhado de neve aqueceu ao seu toque, se derretendo e deixando ali apenas a grama verde.

A rosa agora brilhava, agradecendo a garota por livrá-la daquele frio. A rosa vermelha então saiu do chão, brilhando mais ainda. Seu caule se esticou e endureceu, se tornando cristal em um tom marrom pálido. As pétalas ficaram mais firmes e duras, como rubis que ainda brilhavam. Agora aquele era um cajado que ia até a altura do seu peito. Pequenas flores de camomila percorriam a parte de cristal e marrom, como árvores que são tomadas por outras plantas e flores que ali se instalam. A rosa no topo do cajado era grande, um pouco menor que o tamanho de uma mão.

Primrose esticou sua mão e pegou o cajado, que se aqueceu com seu toque. Ela sentiu aquele calor percorrer seu corpo, como um abraço de alguém que gosta. Algo caiu do bolso de sua camisola, um lenço branco com rosas vermelhas bordadas, pegou aquele lenço e acariciou. Ela sabia que era alguém, mesmo que não se lembrasse. Queria se lembrar e saber quem foi, mas agora não havia mais tempo. Assim como o homem da Lua disse, agora ela era a manifestação da primavera. Seria responsável por tudo aquilo. Era o renascer da primavera, que vem após o frio do inverno e colore tudo ao redor. Era o renascimento da futura guardiã.

—- Fim de prólogo --