Rafael não conseguiu esconder o próprio espanto ao se deparar com Adam ainda em seu quarto, distraidamente vigilante.

Estava lendo atentamente uma série de papeis, investigando as palavras escritas com uma expressão firme, como se o que estivesse lendo fosse algo altamente complicado e lhe exigisse muita paciência. Estava de frente para um computador, o que despertou em Rafael a lembrança de uma vez em que tentou mexer naquele e na fúria no rosto do pai ao pegá-lo no ato. Tinha cerca de dez ou onze anos de idade naquela época.

Rafael ergueu-se vagarosamente na cama, segurando o próprio peito em uma tentativa inútil de conter as pontadas violentas de dor. Só havia percebido que estava grunhindo quando Adam o lançou um olhar furtivo por cima da tela que iluminava fantasmagoricamente o seu rosto jovial.

—Qual é o problema? – Perguntou, do outro lado do quarto. Sua voz ressoou por todo o ambiente, tirando o silêncio sossegado do lugar. Encarava Rafael da mesma maneira que encarava os papeis há pouco tempo.

—Estou com fome – ele conseguiu murmurar, recobrando o fôlego perdido. Arrastou-se até a beirada da cama, lançando as penas para fora pronto para levantar-se.

Estava tão distraído que quase não percebeu quando seu pai parou ao seu lado, empurrando-lhe um prato com dois sanduíches de conteúdo duvidoso. Ele passou um tempo alternando o olhar para o prato e depois para Adam, que empurrava impacientemente o prato para cima dele.

—Coma – disse, autoritário. Rafael pegou o prato hesitante, enquanto Adam dava um passo em direção a sua cômoda. – Pegue. – Ordenou novamente, entregando para Rafael um papel dobrado ao meio.

Ele ficou em duvida com o que se preocupava mais: Adam prestativo, aquele sanduíche ou o bilhete recém-entregue de muito bom grado. Por mais que quisesse evitar, ele só conseguia associar a imagem de Adélia àquele pedaço de papel. Estava distraído, imaginando-a escrevendo debruçada sobre uma escrivaninha, seus belos contornos iluminados por uma luz fraca de abajur.

Mal notou quando Adam pigarreou em sua frente, chamando a atenção.

—Temos que pôr alguns assuntos em dia – disse, afastando-se a passos largos em direção a sua mesa de trabalho improvisada. Rafael lançou um olhar para seu pai e em seguida para o bilhete, imaginando se ele já havia lido a mensagem.

—Sim – murmurou, sentindo um misto de irritação por imaginar a intromissão de seu pai.

Rafael segurou com mais força o papel, sentindo vontade de amassá-lo. Mas não podia; estava curioso demais.

O mais delicadamente que podia, como se estivesse acariciando as pétalas de uma flor, ele desdobrou o papel e começou a ler.

Querido Rafael,

Gostaria muito de encontrá-lo para conversarmos.

Poderia informar quando estará disposto?

Atenciosamente,

Adélia.

Ele precisou de um momento para entender as palavras, distraído apenas no “querido” escrito de forma graciosa. Ela o achava querido? O coração de Rafael se acelerou tão rápido que doeu.

—Está surdo? – Adam vociferou em algum lugar próximo a ele. Rafael lançou em sua direção um olhar semicerrado, emburrado por ter sido interrompido. – Ainda está me devendo informações sobre essa garota.

Essa garota? - Rafael ergueu uma sobrancelha, um tanto incrédulo. – O nome dela é Adélia.

Não havia nada mais detestável em seu pai do que sua indiferença. Rafael lembrou-se rapidamente dos dias anteriores, quando Adam covardemente atacou Adélia, sentindo um misto de rancor dominá-lo.

Conseguiria algum dia perdoá-lo por aquilo?

—Que seja – Adam murmurou, avaliando algumas folhas de papel em suas mãos, caminhando despreocupadamente em sua direção. – Quero saber se vale à pena gastar meus recursos com ela.

Rafael controlou a irritação crescente que sentia toda vez que conversavam, pensando no que o estresse o levaria depois. Ele próprio não queria gastar seus recursos discutindo com Adam.

—Mande-a embora, então – murmurou, ajeitando-se na cama. Um segundo mais tarde, pensou no que acabou de falar.

—Como assim mandá-la embora? - Adam o encarava com o cenho franzido e os braços cruzados, com os papéis sobressaindo-se por baixo deles.

Rafael engoliu em seco, pensando se deveria continuar com o assunto. Lembrava-se muito bem de quando quase implorara para Fordy preparar sua partida, visando fazer-lhe um bem. Quase odiara Adélia naquela época, por atrair sua atenção magneticamente. Agora era tão diferente que Rafael quase não a reconhecia. Perguntava-se, naquele exato momento, o motivo que o levara a querer odiá-la.

Se a odiasse, provavelmente não se sentiria tão pesado por desejar tanto que fosse embora, ao mesmo tempo em que desejava sua companhia.

Agora... Bem, agora se odiava por querê-la.

Como alguém poderia mudar sua vida em tão pouco tempo?

—Ela não pode mais ficar – disse, lutando contra a bile que ameaçava bloquear sua voz. Rafael encarou os dois sanduíches, sem fome alguma. – Não depois do que aconteceu.

Adam pensou por um momento, tentando entender o que ele queria dizer com aquilo. Nem precisou abrir a boca.

—Estou morrendo. — Rafael se explicou – E Adélia não pode me salvar. É tarde demais.

Adam continuava estranhamente calado, como se estivesse realmente considerando sua ideia. Todos aqueles segundos de silêncio só serviam para deixar os músculos de Rafael tensos.

—Ainda há algum tempo...

—Vamos ser realistas, Adam – Rafael replicou uma de suas falas, irritado. Seu pai era tão cabeça dura quanto ele, na maioria das vezes. – Não há tempo algum, e não me venha com essa de segunda chance.

Adam respirou fundo, antes de explodir.

Tudo o que Rafael conseguiu assimilar foi os estilhaços de seu antigo abajur espalhados por quase todo o quarto, enquanto seu pai tentava recompor-se. Agora, graças à meia luz, era difícil dizer o que se passava em seu rosto.

— Adam – Rafael sussurrou cuidadosamente, evitando a todo custo contato visual.

—Cale a boca – eu pai rebateu, afastando-se dele apressadamente.

Em um microssegundo, Adam pegou todas as suas coisas e as jogou dentro de uma pasta, saindo do quarto pisando duro.

O que havia acontecido com ele?

Uma culpa se instalou instantaneamente na consciência de Rafael, que tentava a todo custo imaginar o que levou seu pai aquele ponto.

Adam sempre agia de maneira parecida quando estava bêbado, mesmo quando Rafael não lhe dirigia uma palavra sequer. Mas, naquele momento, ele parecia muito bem consciente dos próprios atos, das próprias palavras.

Rafael encarou os estilhaços no chão, pensando em Adélia e em suas palavras. Pensou se deveria escrever para ela, mesmo sem saber o que deveria dizer.

Algo como “infelizmente não poderei ir, pois estou... morrendo”?

Não queria enchê-la com aquelas merdas, como diria seu pai. Mas queria vê-la, por pelo menos uma última vez.

Será que Adam concordaria em deixá-la ir?

Se sim, então ele precisaria se despedir, mesmo sem tivesse certeza alguma. E, além disso, precisava conversar com alguém que pelo menos ficaria feliz com sua partida.

♢♢♢

Assim que teve sua resposta, Adélia quase teve um ataque. Não sabia ao certo o que esperar, mas quase desejava que Rafael não tivesse respondido tão cedo ao seu recado. Se não fosse pela insistência de Jeniffer, ela não teria escrito bilhete algum.

A mulher passara quase o dia inteiro martelando em sua cabeça, jogando algumas indiretas para cima de Adélia, que tentava levar tudo na esportiva. Estava tentando entender a insistência dela quando escreveu o maldito bilhete.

Mas, infelizmente, Adélia não podia culpá-la.

Se não fosse aquele, seria o outro bilhete o qual tinha certeza ter escrito – e que revelava muito mais das expectativas dela do que pretendia demonstrar.

Um bilhete simples e seco não seria nada ruim. Só precisava manter toda a sua concentração para não revelar nada.

—Precisamos ser sinceros um com o outro, Adélia. – Rafael disse, afastando-se dela.

Adélia engoliu em seco. Um pânico a fez arregalar os olhos, prendendo sua respiração no meio de sua garganta.

Aquilo significava que ela teria que lhe contar sobre... Não. Ela não podia contar, em hipótese alguma. Poderia ser sincera de outra forma, certo?

—O que quer dizer com isso? – Perguntou, tentando soar distraída.

Rafael ficou um tempo em silêncio, pensando por um momento no que sentia ao encará-la.

Adélia havia mudado alguma coisa dentro dele, mas só lhe restava descobrir o que era. Rafael continuava amargurado, carrancudo e desdenhoso como sempre foi. Mas, supostamente, tudo aquilo desaparecia quando ela estava ali com ele, como naquele exato momento.

Ele observou seus dedos passearem por seus cabelos, jogando os fios cacheados para o lado. Observou seus lábios fartos congelados em um sorriso natural, e fixou os próprios olhos nos olhos dela.

O que havia de especial nela, afinal?

—Está tudo bem? – Adélia quebrou o silêncio, dando um passo em sua direção. Sua voz soou preocupada, e seus olhos o investigaram de forma sutil em busca de algo errado.

Estava... preocupada com ele?

Rafael suspirou, sentindo-se subitamente envergonhado pelo prazer que sentiu ao penar naquela ideia. Aquilo o fez se lembrar da enfermeira Katharine, sussurrando um “sinto muito” muito sincero para ele.

—Por favor, não... – Ele disse, respirando fundo. – Não se preocupe comigo, Adélia.

—Por que não? – Adélia soou ofendida. – Bom, se não quer que eu me preocupe, então não aja dessa maneira. – Ela o lançou um olhar severo. – E eu sei que tem algo de errado.

Ela o estava repreendendo?

Rafael achou graça.

Como ela poderia saber que havia algo de errado com ele?

Talvez Rafael não fosse tão bom assim em esconder-se dela, afinal.

—Tem razão, Adélia. – Ele disse, quase se lamentando. –Há sim, algo de errado acontecendo comigo.

—Com você? – Ela entoou surpresa. Um calafrio percorreu sua espinha quando Rafael calou-se. – Diga o que está acontecendo, então. Quero ajudá-lo.

—Temo que seja um pouco tarde para me ajudar– ele disse.

Adélia franziu o cenho, lançando-lhe um olhar duro.

—Suas tentativas de me impedir de preocupar-me estão falhando ridiculamente. – Ela rebateu, tentando esconder a preocupação com um pouco de graça. – Diga-me logo o que há de errado ou eu corro o grave risco de morrer de preocupação.

—Isso é possível? – Sua voz soou mais surpresa do que pretendia, mas Rafael não pôde evitar o leve pânico que o fez arfar.

—Morrer de preocupação? Bem, você ficaria surpreso com os casos – Adélia disse, sentindo o bom humor aliviar a tensão que se estabeleceu entre ambos. Ela observou os ombros de Rafael ficar mais rígidos ainda, enquanto sua cabeça pendia levemente de lado. – Estou brincando. – Se apressou em explicar, sentindo-se um tanto mal por ter feito aquela brincadeira com ele.

Como ele não conhecia uma expressão tão típica como aquela?

Bastou seus olhos o analisarem por um momento para obter a resposta.

Ah...

Rafael era de um mundo completamente diferente do dela. Aquilo a fez encolher os ombros, quando um frio súbito a fez estremecer.

—Desculpe – ela disse, embaraçada pelo constrangimento. – Não quis... Bem, eu não...

—É por isso que precisamos de sinceridade, Adélia. – Rafael soou mais ríspido do que esperava, mas não sabia ao certo o que o levou aquele ponto. Ele observou, sentindo-se muito babaca, enquanto ela ajeitava o suéter sobre os ombros e enrijecia os ossos, escondendo uma mecha de cabelo detrás da orelha.

—Eu estava brincando — rebateu. – E já pedi desculpas.

Ah, Adélia... Rafael sentiu vontade de rir de novo, enquanto combatia uma vontade arrebatadora de tocar o espaço volumoso que se formou entre suas sobrancelhas quando ela franziu a testa, irritadiça.

—Não posso ser mais sincera com você do que isso — ela continuou, encarando-o. Estava curiosamente mais segura de si naquela noite, chegando até a encará-lo sem desviar os olhos e próxima, tanto física quanto mentalmente dele. Havia imaginado aquela conversa, repassando várias vezes em sua mente o que falaria ou como agiria para não deixar que nada escapasse de sua boca, embora se sentisse muito disposta a conversar sobre qualquer coisa. – É isso o que quis dizer com “precisamos ser sinceros um com outro”?

Estava curiosa para saber o que aquilo significava. Será que Rafael desconfiava que ela estivesse mentindo para ele?

—Acha que estou mentindo? – Ela disparou, mas sem soar irritada. Achava, na verdade, o fato um tanto divertido. – Acha que estou escondendo alguma coisa? – Aquela foi uma pergunta intencional, acompanhada com um olhar desconfiado para ele. Mas Rafael continuou quieto, ouvindo-a. Um segundo mais tarde ela percebeu que estava, de fato, escondendo alguma coisa dele. – Bom, se está desconfiado...

—Adélia, por favor – ele a interrompeu, um tanto aturdido com seu bombardeio de perguntas. Ele tinha motivos para desconfiar dela? – Não desconfio de você, se está preocupada com isso. – Rafael ficou um tanto surpreso ao ver que ela suspirou, ficando visivelmente aliviada ao ouvir aquilo. Ele teve vontade de perguntar se ela estava escondendo algo, mas temeu parecer intrometido. Ao invés disso, resolveu ir direto ao ponto: - Temo que seja eu o verdadeiro problema, na realidade.

Sua expressão primeiramente ficou confusa, analisando vagarosamente o que ele havia dito. Mais tarde, Adélia arregalou um pouco os olhos, alternando o peso de uma perna para outra. Ela ficou esperando que ele continuasse, por não saber o que dizer no momento.

—Sinto que não estou sendo sincero o suficiente com você e isso me deprime profundamente – sua voz assumiu um tom duro, forçado. Graças à máscara, era quase inaudível e entrecortada. – Há coisas que estão além de sua compreensão, e me sinto incapaz de explicar sem que... – Um bolo em sua garganta o obrigou a engolir em seco. – Sem que a machuque profundamente.

Ele observou, pela milionésima vez, cada detalhe existente em seu belo rosto. Observou, hipnotizado, uma de suas sobrancelhas arqueadas abaixar-se lentamente, enquanto pensava sobre o que ele havia acabado de dizer.

Me machucar? – Ela sussurrou, mais curiosa do que amedrontava, como ele esperava. – Tem a ver com a sua maldição?

Rafael piscou os olhos, um tanto atônito com a certeza dela. Era óbvio, certo? Qualquer um saberia disso só de olhar para ele.

Como ele não respondeu, Adélia continuou mesmo assim.

—Esconde coisas sobre ela de mim? – Ela insistiu, abaixando os olhos para seus pés. – Bem, são essas coisas que acha que podem... me machucar?

Adélia passou alguns segundos encarando os próprios pés atolados em um cercado de grama, depois desviou para o abismo que agora era tão familiar para si, muito além do jardim onde estavam. Pelo silêncio dele, parecia que sua pergunta já havia uma resposta.

—E se eu lhe disser que... – Ela o encarou, soando firme. – Se eu disser que não tenho medo, me contará tudo o que quero saber?

—Não é tão simples quanto pensa – ele rebateu, quase na mesma hora em que ela terminava sua frase. – Não é simplesmente lhe contar coisas. É perigoso...

Perigoso? – Ela quase riu, se seu coração não estivesse tão acelerado e o bolo em sua garganta não a irritasse. – Vai me matar se eu descobrir umas coisinhas sobre você?

Rafael recuou, sentindo o impacto de suas palavras como um tapa. Ele ficou rígido e furioso de um modo que pensou ser impossível quando estava ao lado dela.

—O que eu estou fazendo aqui, afinal? – Adélia lutou contra a bile em sua garganta, que ameaçava se transformar em soluços. – Nunca me senti tão inútil como tenho me sentido desde que conheci você. Sempre que conversamos você dá um jeito de estar à minha frente. Parece que nunca é sincero comigo.

—Eu não sou sincero com você – ele disse, abrupto. Sentiu toda a sua irritação sumir quando encarou seus olhos umedecidos por causa das lágrimas, arregalados e sentimentais. – Ah, Adélia, se você ao menos soubesse...

—Por que não me conta? – Ela explodiu, sentindo as lágrimas queimarem seus olhos antes de rolarem por suas bochechas. – Você não percebe nada? Fica o tempo todo escondido de mim, como se eu fosse uma aberração, mas não percebe que você...

—Sou a aberração? – Ele concluiu, arrancando dela um olhar furioso.

—Que você me machuca – ela concluiu, esfregando com força o suéter no rosto para enxugar as lágrimas. – Não faz ideia de como a impotência que sinto quando estou com você machuca.

Aquela ideia o pegou de surpresa. Não conseguia imaginá-la daquele jeito, como uma aberração. Sabia que era tão difícil para ela quanto era para ele, mas assisti-la expor tudo o que sentia com aquela voracidade, com aquela fúria e aquele olhar que misturava tempos de mágoa por ele tornava a coisa tão... Cruel.

—Eu sempre perguntei se você estava bem – ele defendeu-se.

Os olhos de Adélia se arregalaram, enquanto seu rosto ficava naturalmente vermelho.

—E eu sempre menti – ela sussurrou, entredentes. – Eu queria acreditar nisso tanto quanto você, mas a verdade é que não sei o que é estar bem desde que... – Ela calou-se por um momento, pensando se valia ou não a pena continuar com aquela discussão.

—Eu acreditei em você – ele disse, mais magoado com aquilo tudo do que pretendia.

—Eu também acreditaria que se importava se não fosse tão... – Ela buscou uma palavra que o descrevesse bem, mas não achou nenhuma que o atingisse. – Indiferente.

Estava sentindo um desejo bobo de magoá-lo, de fazê-lo se sentir culpado por deixá-la naquele estado, embora sua consciência lhe avisasse que seria impossível se ele realmente fosse indiferente. No fundo, ela desejou que não fosse, mas a quem ela estava querendo enganar?

—Indiferente? É isso o que acha de mim?

Ele estava tentando fazê-la se sentir culpada? Dois segundos refletindo sobre modo como ele acabou de falar aquilo – como se estivesse magoado – fez uma culpa arrebatadora fundir-se junto com a fúria no peito de Adélia.

—Não – respondeu ela, cruzando os braços de forma defensiva. – Não sei o que achar de você.

Rafael respirou fundo. Aquela conversa já havia ido longe demais, afastando-o do seu real objetivo. Era para ele ser sincero com ela; no entanto, estava calado e instável, tentando manter os pensamentos em ordem enquanto resistia à tentação de se expor. Queria mostrar que... O quê? Que se importava?

Aquilo era ridículo.

— Por mais que eu tente Rafael, eu não consigo viver com isso. Com esse peso... – Ela engoliu em seco, fechando os olhos para afastar as lágrimas. – Eu queria dizer que... Bem, se é para ser sincera... – Uma respiração aguda a fez arfar, fazendo-a resistir à vontade de ser impulsiva. – Minha mãe me disse uma vez que uma das coisas que ela mais admirava em mim era o fato de eu poder ver coisas boas nas pessoas. – Ela pausou, afastando a saudade que sentiu do abraço de Suzane. – Ela me fez prometer que continuaria assim, mas eu tive medo de parecer uma tola caso acreditasse que isso era possível. – Ela respirou fundo, encarando-o. – Quer saber o porquê que ela acreditava que sou capaz de ver esse tipo de coisa? – Rafael não se mexeu, mas toda a sua atenção estava nela naquele momento. – Ela acha que eu desperto o melhor nas pessoas, dá para acreditar?

Adélia riu um pouco, sentindo-se boba com a lembrança. Ela o analisou por inteiro, de cima para baixo, tentando captar qualquer sinal de que ele a estava ouvindo, mas seu corpo não indicava nada.

Rafael prendeu a respiração, sentindo as veias de sua cabeça saltarem por causa da falta de oxigênio. Ele sentiu-se ainda mais vazio quando expulsou o ar de seus pulmões.

O que ela queria dizer com aquilo? Ela não conseguia enxergar algo bom nele?

—Sim – ele respondeu, seco. – Se não consegue enxergar algo bom em mim, é porque não existe. Sinto desapontá-la e fazê-la desacreditar de si mesma.

—Não, Rafael. Você está enganado – ela massageou as têmporas com as pontas dos dedos, soltando um grunhido. – Eu não vejo algo bom em você, eu sei que há. Só não consigo enxergar porque está o tempo todo detrás desta coisa — ela apontou para ele – escondendo-se de mim.

A cabeça de Rafael entrou em funcionamento automático instantaneamente. Ele até se afastou um pouco, engolindo em seco. Então era isso? Ela queria que ele tirasse a máscara?

—O que há por trás desta coisa — ele respondeu, rigidamente – é muito pior do que isto. Não sabe do que está falando.

—Como eu saberia? – Ela rebateu, desarmando-o mais uma vez.

—Chega, Adélia! – Sua voz saiu mais alta do que pretendia, arrancando dela um olhar arregalado. Ela estava em choque e, enquanto manteve-se calada, Rafael aproveitou o momento para recompor-se. – Já ouvi coisas o suficiente de você hoje. Preciso de paz.

Adélia encheu os pulmões de ar, enquanto bufava de raiva.

Quem ele pensava que era? O que lhe dava o direito de...

—Pensei que fossemos ser sinceros um com o outro, mas vejo que mais uma vez você só estava me tirando do sério – ela puxou algo do bolso de sua calça, revelando um envelope branco dobrado ao meio, que ela encarou durante alguns segundos. – Você me prometeu que me deixaria falar com os meus pais outra vez – ela disse, expondo o envelope e olhando fixo para as órbitas escuras da máscara. – E outra coisa que não vem ao caso agora. Mas não vou mais atrapalhá-lo, portanto, boa noite.

Ambos ficaram se encarando durante alguns segundos. Adélia esperava que ele dissesse mais alguma coisa quando esticou o envelope para ele pegar, mas quando Rafael segurou o papel entre os dedos, Adélia resistiu ao entregá-lo.

—Eu realmente acreditei em você naquele dia – confessou, esperando que ele se movesse ou falasse algo, mas Rafael continuou imóvel, segurando o envelope sem resistência alguma. Ela desviou o olhar para suas letras inscritas ali, analisando as próprias linhas sem ânimo algum. – Não leia o que está aqui.

—Não sou desonesto – ele falou, por fim. Magoou Adélia que suas palavras tivessem sido aquelas, mas depois de irritá-lo tanto, o que ela poderia esperar?

Adélia assentiu rapidamente para ele, em um gesto que indicava um “tanto faz” desdenhoso e, sem mais nenhuma palavra, ela afastou-se a passos largos e caminhou até seu quarto, batendo a porta com força atrás de si.

Estava pronta para jogar-se na cama quando Jeniffer surgira da janela, encarando-a com um olhar assustado. Adélia a encarou por um momento, quase esquecida de que a mulher estava ali a sua espera, e quase perguntou o que ela estava lendo antes de ver o livro ser arremessado no chão e os braços da mulher envolver seus ombros, enquanto sua mão ninava sua cabeça apoiada em seu ombro. Adélia tremia tanto enquanto soluçava que Jeniffer a apertou ainda mais contra o próprio corpo, com medo de que a garota desmontasse em seus braços.

Depois do que lhe pareceu longos minutos se abraçando, Adélia se afastou um tanto desconcertada, ciente do rosto vermelho e do ombro de Jeniffer que acabou por estar encharcado por causa de suas lágrimas. A mulher limpou uma gota que escorreu pelo rosto de Adélia com tanto carinho que a mesma sentiu vontade de chorar de novo, mas se conteve.

Precisou apenas de um olhar para Jeniffer entender que Adélia não queria conversar. Sem mais cerimônias, a mulher se despediu e saiu de mansinho, deixando-a sozinha.

Se Jeniffer tivesse ido com ela, como sugeriu antes de Adélia negar afavelmente, talvez não precisasse se explicar depois. Se não tivesse criado tanta expectativa...

Adélia se perguntou como havia chegado aquele ponto. Mal se lembrava de se sentir tão magoada consigo mesma. Queria poder culpar Rafael por fazê-la se sentir daquela forma, mas não conseguia. Sabia que ele era apenas uma pequena parcela do que lhe partia o coração.

Nunca havia se sentido tão insegura por causa de alguém antes, e o sentimento era tão novo que a assustava profundamente. Claro, já havia duvidado algumas vezes de seus pais, de Jeniffer...

Mas não conseguia entender o motivo que tornava Rafael tão exclusivo naquele aspecto. Ele era tão duro com ela, tão inflexível e tão... Como foi que ela o classificou? Indiferente.

Era tão indiferente que a fazia se sentir uma completa idiota por, há poucas horas atrás, querer ser sua amiga. Por querer se sentir próxima a ele, como se ambos tivessem uma espécie de ligação. Mas agora estava óbvio que aquilo só poderia existir na cabeça dela. Talvez Rafael apenas a suportasse...

Ela fungou irritada, recostando-se no parapeito do que gostava de chamar de sua “mini-liberdade”. Estava acostumada aquele lugar, embora não estivesse pronta para chamar de lar. Pensou no pequeno apartamento no Brooklyn e em seu quarto no Instituto Florence, onde crescera. Mal sabia diferenciar qual dos dois lugares lhe dava mais saudade, embora ambos fossem seus favoritos.

Por um momento ela se permitiu voltar para lá, para o Brooklyn de preferência, onde podia dar uns poucos passos e encontrar com seus pais. Adélia pensou na carta que escreveu para eles, pensando no conteúdo. Havia dito que Rafael era seu mais novo amigo, e que tinham tanta coisa em comum que ela ficara surpresa ao escrever e ter certeza daquilo no momento. Mas agora havia uma pedra em seu coração, um enorme ponto final que encerrava todas as suas expectativas em relação a ele. Queria poder voltar atrás e excluí-lo totalmente de sua mensagem.

Não deveria estar pensando nele. Não podia suportar aquela arrogância em pessoa que tanto lembrava Adam, muito menos de misturá-lo com lembranças tão boas.

Aquele vazio que sentia nem se comparava com o vazio que sentira no primeiro dia que passara ali. O sentimento era diferente, mas a causa era quase a mesma. O que sentiu e o que sentia agora eram algo que se aproximava da dor de perder um ente querido, embora ela acreditasse que perder alguém que ama para a morte é muito pior do que perdê-lo para a distância.

De qualquer forma era tão sufocante que Adélia deitou-se sobre o concreto do parapeito, escondendo o rosto do vento que fazia seus olhos lacrimejar por conta da ardência. Ela não sabia quando tempo havia se passado naquela posição, mas foi brutalmente distraída quando uma mão firme a agarrou pelo ombro, puxando-a.

—O que você está fazendo?

A princípio Adélia pensou que fosse Jeniffer, que havia voltado para consolá-la. Mas então deu de cara com algo dourado e fosco, encarando-a tão próximo de seu rosto que ela podia ver seu reflexo embaçado refletindo fracamente graças a pouca luz que vinha do seu quarto.

—O que você está fazendo? – Ela quase gritou, tão assustada que perdeu o fôlego. Com um tapa, ela se afastou dele para respirar e recuperar os sentidos. – Você nem bateu na porta!

Rafael pareceu se recuperar rapidamente, erguendo os ombros e inflando o peito de ar.

—Bati, sim – ele disse, daquele jeito rígido que a fez acusá-lo de indiferença há pouquíssimo tempo atrás. – Você não ouviu, então decidi entrar...

Decidiu entrar? Está louco? – Ela estava praticamente gritando com ele, estressada.

Rafael arrependeu-se imediatamente. Estava louco? Provavelmente sim.

Ele observou Adélia andar de um lado para o outro, respirando fundo enquanto parecia estar lutando contra a raiva ou o susto.

—O que você estava fazendo, Adélia? – Ele perguntou, tão sério que atraiu de imediato a atenção dela. – Não minta para mim.

Ela fez uma careta, encarando-o com algo próximo a desdém.

—Responda! – Ele exigiu mais uma vez, ficando nervoso à medida que ela ficava quieta.

Rafael estava quase passando mal, sufocado de irritação e preocupação. Ela estava tentando... Não. Adélia não era como Celine, certo?

—Nada – ela respondeu, desconcertada. O que ela estava fazendo mesmo? Como ele nem se mexeu, ela suspirou e continuou: - Minha cabeça estava doendo e os meus olhos ardendo. Pensei que se eu...

Por que estava se explicando para ele?

Ela o observou por um momento, parando para encarar suas mãos fechadas em punho ao lado de seu corpo. Ele parecia muito, muito irritado com ela.

—O que você pensou que eu estivesse fazendo? – Ela sentiu toda a irritação de antes se transformar em uma curiosidade quase insana. – Você pensou que eu ia...

—Não – ele a interrompeu rapidamente, dando um passo em sua direção. – Preciso que me escute... Adélia! – Ele a observou se afastar dele, dando-lhe as costas para ignorá-lo. – Por favor, eu preciso que... – Como ela não se moveu, ele reconsiderou a ideia. Se ela o estava ignorando era porque não queria conversar com ele.

Não. Ele não podia simplesmente deixar para lá, certo?

Ele observou-a de costas, sentindo uma vontade arrebatadora de tocar sua cascata de cachos que se derramavam por suas costas, ou simplesmente seu ombro, para lhe chamar a atenção. Mas não conseguiu se mover com o peso de sua rejeição pairando sobre suas costas.

Se ele tivesse seguido seu caminho para o quarto, nada daquilo estaria acontecendo. Não estaria envergonhado, arrependido e se sentindo tão idiota.

Estava prestes a se retirar quando ela virou-se para encará-lo novamente, com os braços cruzados sobre o peito de forma protetora. Sua expressão era impassível, e Rafael percebeu o esforço que fazia para manter-se assim graças a seus lábios que tremiam.

—Estou ouvindo – disse, desafiando-o. O modo como o encarava naquele momento o fez se sentir ainda mais tentado a recuar feito um covarde.

—Não sei o que está acontecendo comigo – ele disse, deixando que sua voz o traísse, embora ainda mantivesse a postura firme. – Você me desarma completamente, e eu não consigo... – Ele parou, engolindo em seco. – Eu não consigo ser eu mesmo quando faz isso.

Ela apenas ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada. Sequer se moveu.

—Eu não sei se consigo... – Por que estava travando tanto? Era tão covarde... — Não consigo fazer isso. Sinto muito por atrapalhar sua noite, senhorita.

Adélia o observou curiosamente por um momento, sentindo um misto de pena mesclar-se a sua irritação.

—Por que tem tanto medo de mim? – Sua voz saiu num sussurro suave, tentando inutilmente tranqüilizá-lo. – Eu não posso lhe fazer mal algum...

—Não... – Ele fechou os olhos, tímido. – Não é isso. Eu só... – Ele tinha sim um pouco de medo dela, mas não queria admitir aquilo em voz alta. – Adélia, sou eu quem tem medo de machucá-la.

Ela soltou um suspiro melancólico, desviando a atenção dele para a paisagem atrás de si apenas por alguns segundos.

Adélia fechou os olhos com força, dando alguns passos sua direção. Estava próxima o suficiente para sentir seu peito subir e descer freneticamente, no ritmo de sua respiração. Bem devagar, ela levantou um dos braços e, delicadamente, ergueu um dedo em direção a sua face. Como na primeira vez em que o vira, ela deixou que seu dedo indicador desenhasse os contornos da máscara, inspecionando meticulosamente os detalhes de seus lábios.

Rafael prendeu a respiração quando ela espalmou seus dedos em sua bochecha de metal, enquanto deixava que seu polegar alisasse a superfície. Como ele estava petrificado e não fez nenhum esforço para afastá-la, Adélia espalmou a outra mão sobre sua bochecha, de modo que pudesse segurar seu rosto. Ela fechou os olhos por um momento, parecendo pensar em algo que Rafael mal conseguia imaginar.

Quando ela tornou a abri-los, seus olhos foram diretos em direção aos dele, encarando-o de uma forma que o deixou constrangido. Era como se ela pudesse ver o que havia por trás daquilo, pudesse vê-lo como realmente era. Encarava-o tão intensamente que Rafael sentiu-se exposto, vulnerável.

Estava prestes a se afastar quando Adélia o trouxe para mais perto, achegando ao ponto de encostar suas testas.

—Tire isso – ela murmurou, fechando os olhos e inspirando. – Eu sei que isso te faz mal, portanto... Tire essa coisa de você. Não me importo com o que há por trás disso.

Rafael estava tão embasbacado com aquele contato tão intimo que quase não pensou duas vezes. Primeiro ele quis tirar, confiando-se tão plenamente no som suave de sua voz que até ergueu as mãos em direção a sua cabeça. Mas então as deteve, repousando-as sobre as mãos de Adélia, cobrindo-as com as suas enluvadas.

—O que há aqui faria tão mal a você quanto isso faz mal a mim – disse, segurando seus dedos e os afastando de si.

—Quantas vezes terei que lhe dizer que não tenho medo? – Era mentira, mas Adélia soou tão confiante que quase acreditou em si mesma. Ela apertou os braços em volta do corpo, com frio e insegura. –Por favor, confie em mim.

—Adélia, eu... – Rafael engoliu em seco, tenso. – Eu tenho medo por você.

Adélia o repreendeu com o olhar, embora estivesse igualmente nervosa. Queria que ele confiasse nela, e não que sentisse medo por ela. Aquilo chegava a ser ridículo, se não a tivesse tocado.

— Você usa isso para me proteger? – Ela apontou para o rosto dele, fazendo uma careta. - Se se importa tanto comigo ao ponto de sentir medo por mim, – ela disse, aproximando-se mais dele – é justo que deva saber que também sinto o mesmo.

Adélia baixou os olhos, desviando-os para seus pés. Por mais que não quisesse, tinha que acreditar em Rafael. Se ele lhe dizia que era perigoso... Como conseguia ser tão teimosa em uma situação como aquela?

Rafael estava ficando cada vez mais agitado com tudo aquilo.

Era para lhe dar um aviso que havia procurado-a naquele entardecer, e não para iludir-se com todas aquelas palavras doces e toques inusitados. No entanto... Como poderia duvidar?

Adélia estava sendo o mais paciente possível com ele, pelo menos naquele momento. Rafael sentia-se mal por ignorá-la, mas também não poderia arriscar tanto. Deveria apenas se concentrar em sua partida.

E se aquela fosse a última vez em que se vissem?

Rafael respirou fundo algumas vezes e, alguns minutos mais tarde, sem mais uma palavra, ele ergueu as mãos e alcançou as tiras de couro que se entrelaçavam em sua nuca, tateando cegamente os encaixes e toda a parafernália que mantinha aquela coisa presa em si.

Adélia prendeu a respiração quando a máscara moveu-se de um lado para o outro, desacoplando do rosto de Rafael de um jeito que lhe deu embrulhos no estômago. Estava tão assustada que quase pediu para que ele parasse, desistindo daquela ideia.

—Eu nunca tive problemas com isso — ele murmurou, puxando lentamente aquela coisa fria e pesada para longe de si – até você aparecer.

A lembrança de que precisava respirar só surgiu quando a visão de Adélia ficou embaçada. Estava tonta e em vertigem graças ao que via em sua frente.

Então aquele era... Rafael?