O Máscara

Esperanças


Adélia nunca tremera de medo antes como tremia naquela hora.

Nem as lágrimas ousaram aparecer em seus olhos, e sua voz escondia-se também em sua garganta. Mesmo quando estivera abraçava a si mesma debaixo do chuveiro quente, ela podia sentir o frio.

Todas as palavras de que seu pai lhe disse naquela madrugada estavam tatuadas em sua mente, voltando sempre para assombrá-la.

Maldições não existem... Mas por que fui escolhida para quebrar uma? — Ela se perguntava a todo o momento, e a todo o momento um novo tremor fazia sua costela congelar.

Desde que acordara de madrugada até àquela hora, Adélia não sentira mais um pingo de sono. Ela tinha medo de que, assim que fechasse os olhos, tivesse pesadelos com a maldição. Mas, um minuto mais tarde, ela se dera conta de uma coisa: ela já não precisava mais estar dormindo para ter os piores pesadelos. A sua realidade – a nova, antes escondida – era um pesadelo digna de filme.

Estava tudo tão diferente agora que Adélia mal conseguia se concentrar em seu próprio reflexo diante do espelho de sua penteadeira. Seus cabelos estavam pingando, molhando seu suéter azul do Instituto Florence; sua testa ainda estava franzida e seus olhos semicerrados. Mesmo sua pele antes bronzeada parecia pálida, dando-a uma aparência doentia. Faltava pouco para as dez da manhã e por mais cansada que se sentisse ela lançava para sua cama desorganizada um olhar de desdém.

Ainda havia tantas dúvidas que Adélia mal poderia citar uma, se houvesse alguém para respondê-la.

Já Thiago sentia-se tão mal que sequer conseguia manter-se em pé.

Suzane aproximou-se sorrateiramente dele com uma caneca fumegante nas mãos e um olhar preocupado. Ela o ofereceu a caneca, que ele aceitou, agradecendo-a. Ela estava preocupada com ele, e mais ainda com Adélia.

Thiago e Suzane vinham se preparando para aquele dia desde que Adélia completara seus dezessete anos. Mas, diante daquela situação, eles haviam notado que nada do que tinham feito fora capaz de prepará-los para aquele momento.

Desde o principio, Suzane achou que Adélia jamais os perdoaria por aquilo. Ela sempre imaginou que, após contar tudo para ela, Adélia mudaria com eles; se mostraria mais rancorosa e irritadiça com eles. Mas aquilo não acontecera.

Ao acordar naquela madrugada, Suzane deparou-se com um alvoroço entre Thiago e Adélia. Ambos discutiam, mas não era uma discussão feita de raiva ou coisas do tipo.

Adélia parecia assustada. Estava abraçando a si mesma, como se estivesse com frio, enquanto suplicara para o pai, que parecia não fazer à menor ideia do que fazer naquele momento.

“Eu não quero isso, pai!”, ela suplicara para ele, com os olhos transbordando de lágrimas, “Eu não vou! Eu não quero ir...

“Não há como reverter isto, Adélia!” Thiago rebatia de volta, soando exausto; “Ele ameaçou nossas vidas... É a sua vida, meu amor! E não apenas a minha e a de sua mãe...”

E então Adélia desatava a chorar ainda mais, enquanto fazia mais perguntas.

Por quê eu,pai?”, ela dizia, com a voz entrecortada por soluços; “Eu não sou nin...(soluço)...guém! Ninguém! Por que eu?

Suzane não tinha palavras para dizer diante daquela cena. Por um momento, sentiu-se inconformada por Thiago ter contado aquela parte da história sem ela, mas diante da visão de sua filha – tão frágil e abalada – ela perguntou-se se seria capaz de ter dito alguma coisa naquele momento.

“Mãe!”, Adélia foi de encontro a ela, exasperada. “Diga-me que você tem uma solução! Diga-me como posso fugir disto!”

Suzane nada fizera diante do desespero de sua filha. Estava atônica demais para sequer piscar os olhos. Por mais que Adélia a sacudisse, Suzane não conseguia se mexer, muito menos falar. Tudo o que pôde fazer foi balançar a cabeça, enquanto desviava os olhos para o chão, quando algumas lágrimas encheram seus olhos.

—Foi muita...Coragem sua – ela sussurrara, abraçando-o. Ele parecia desolado. Toda vez em que criara uma imagem da reação de Adélia, Suzane sempre se imaginou desesperada, enquanto seu marido se mantinha impassível; mas estava tudo ao contrário. Suzane estava impassível, ao passo que Thiago parecia cada vez menos desesperado.

—Eu não chamaria isso de coragem — ele dissera, enquanto passeava com os dedos frios pelo braço de Suzane envolta de si. – Eu não sei que nome dar para o que eu fiz hoje. – Então ele bebericou seu chá, pensativo. – Burrice talvez se aplique bem.

Suzane enlaçou os dedos nos cabelos escuros dele, enquanto deitava a cabeça em seu ombro.

—Talvez você devesse descansar um pouco – dissera. – Sei que não dormiu nem um pouco.

—E você também não – Thiago coçou os olhos; pensar em cansaço o deixava mais cansado ainda, e aquilo o fez perguntar-se por quanto tempo agüentaria ficar acordado. – Não quero deixá-la sozinha, nem por um momento. Sei que ela precisa disso, mas... – ele parou, engolindo a bile. – Hoje seria o nosso último dia juntos, Suzane. Adam virá amanhã e...

—Ei – Suzane o interrompeu, afastando-se dele para encará-lo. – Eu sei que está sendo difícil, Thiago. Mas ela precisa desse tempo tanto quanto nós. – Aquelas palavras lhe doíam na garganta, mas era uma verdade que ela não podia negar. –Por que não deixamos que ela venha até nós, desta vez?

Thiago negou avidamente, como se aquelas palavras fossem nada mais do que um absurdo.

—E se ela não quiser falar conosco? – Ele a encarou, enquanto apertava suas mãos. – E se ela não tiver nos perdoado?

—Thiago! – Suzane sussurrou ferozmente. – Nós somos os pais dela. E tudo o que fizemos foi tentar protegê-la...

—E agora a entregamos aos lobos – ele a interrompera.

O queixo de Suzane caiu. Mas ela não discordou.

De que adiantou cercar Adélia com tantas mentiras, para que no final eles – literalmente – a entregasse para os lobos?

Suzane recuou em seu assento no sofá, sentindo-se culpada demais para falar. Thiago, como sempre, tinha razão nos pontos mais dolorosos da relação dos dois.

Ele sabia que havia acabado de deixar sua esposa mal, enquanto ela tentara a todo o momento tranqüilizá-lo. Mas que podia fazer? Ele não queria se iludir achando que tinham noventa por cento de certeza de que Adélia falaria com eles depois de tudo o que fizeram. Não queria acreditar que as coisas seriam fáceis; que ela sairia do seu quarto e que correria para abraçá-los. As coisas jamais seriam como antes.

—Não quis magoar você – murmurou para Suzane, que tinha os olhos fixos em seu colo. Ela assentiu, mas sem encará-lo. Thiago segurou seu queixo e o ergueu delicadamente, para que ela o encarasse. – Estou falando sério. Não quis magoá-la.

—Eu sei – ela respondera, suspirando. – E sei também que você tem razão. Sempre tem. As chances de que ela nos perdoe... São mínimas. Mas eu não consigo perder a esperança, Thiago. Sinto que, se eu perder ela, também vou perder Adélia para sempre.

Thiago também assentiu. Sabia o que Suzane queria lhe dizer, mas ele era tão cético em relação aquilo que “ter esperança” não lhe fazia sentido algum.

Você não deve perder a esperança, Suzane – ele murmurou, enquanto a envolvia em seus braços.

Ela assentiu, apoiando a cabeça em seu peito.

Talvez Thiago e Suzane não pudessem viver em paz sem sua filha adotiva por perto, mas se ela lhes desse o mínimo de esperança a qual ambos pudessem se agarrar de que um dia ela os perdoaria, com toda certeza aquilo iria mudar muita coisa na vida deles.

Por mais amedrontada que estivesse, Adélia não pode deixar de se jogar em sua cama e pregar os olhos – mesmo que por alguns minutos. Ela estava apenas tentando clarear os pensamentos quando pegou no sono. Não sabia que horas eram quando despertou, mas já não se sentia tão cansada quanto antes.

A luz do entardecer entrava por sua janela aberta, junto com uma brisa fria. Seu quarto – que antes Adélia achara um lugar mágico – parecia apenas mais um cenário inventado por seus pais.

Thiago e Suzane haviam reformado todo o seu quarto para deixá-lo o mais agradável possível, pois acreditaram que eles não iriam mais perder sua filha. Eles acreditaram que, já que Adélia ficaria com eles, ela merecia um lugar mais reconfortante para si mesma.

Adélia não conseguia mais julgá-los por aquilo.

Agora que sabia que tudo o que seus pais tinham se resumiam àquele apartamento e a ela, Adélia não conseguia abominar suas mentiras. Ela nunca as esqueceria, claro; mas podia conviver com aquilo, pois acreditava que tudo o que eles fizeram fora para o bem dela – muito mais dela do que deles.

Ela caminhou até sua janela entreaberta, percorrendo o tecido áspero de sua cortina roxa com os dedos. A brisa fria soprou os cachos soltos de seu coque feito às pressas para seu rosto e atravessou seu suéter até chegar a sua pele e penetrar sua carne. Aquele frio estava longe de ser pior do que o frio que seus pensamentos lhe davam.

Ela já não conseguia pensar em mais nada, exceto naquele maldito acordo. Por mais que sua mãe lhe disse que tinha um coração doce demais para a maldade, Adélia nunca acreditara parcialmente nela. Ela sabia que todos tinham dois lados, um bom e um ruim. E alguém sempre sucumbia mais para um lado do que para o outro. Embora se considerasse uma boa pessoa, Adélia não podia deixar de sentir uma raiva que a fazia ranger os dentes de Adam.

Era tudo culpa dele.

Era culpa dele que seus pais tiveram que mentir para protegê-la; seus pais sofreram por causa dele. E era por culpa dele que Adélia fora a escolhida para quebrar uma maldita maldição. Aquilo a enchia de raiva, e ela não podia evitar.

Ela sentia que seus olhos verdes a estavam vigiando a todo o momento. Ah, como se lembrava daqueles olhos!

Ela desejou profundamente ter conhecido a história de Adam antes de cumprimentá-lo tão gentilmente no dia anterior. Adélia não poderia dizer que teria sido gentil ou que sequer teria agido prudentemente diante dele.

Culpa sua! , ela se imaginou cuspindo de fúria diante dele, Você estragou minha vida!

Ela não se importaria se estaria agindo como uma criança no momento; só desejava descarregar toda a sua fúria na pessoa certa.

A pessoa certa. Teria Adam realmente que assumir toda aquela culpa?

Aquele pensamento assombrou Adélia, fazendo-a fechar os olhos com força quando a brisa fria que entrava pela janela bateu em seu rosto outra vez.

Seu pai dissera que Adam tinha um filho – um filho amaldiçoado.

Thiago não entrar em detalhes sobre essa maldição, nem sobre o garoto. Tudo o que Adélia conseguira extrair dele era que o garoto estava prestes a completar dezenove anos, e que vivia em uma antiga mansão, longe de tudo e de todos – o que lhe fazia sentido. Por que deixar uma pessoa amaldiçoada andando por aí? Poderia ser perigoso.

Mas tudo o que Adélia sentia em relação aquele garoto misterioso era curiosidade.

O que ele fizera para ser amaldiçoado?

Não lhe fazia sentido algum o fato de que ele poderia ter nascido amaldiçoado.

Que tipo de maldição ele poderia ter para que fosse preciso ser isolado?

De repente, ela se dera conta de que seu pai não havia lhe dito que tipo de maldição poderia ser. Ela até tinha um palpite, mas se pensasse nele em voz alta, certamente soaria tão ridículo que cairia na gargalhada na mesma hora.

Bom, seu primeiro palpite era que Adam poderia ter inventado aquela história de maldição.

E se o garoto tiver uma doença contagiosa, e por isso tivesse que viver isolado? - Adélia sussurrara. Era possível, já que doenças (pelo menos muito antigamente) eram consideradas como maldições, e talvez Adam fosse inteligente (ou persuasivo) demais para fazer as pessoas acreditarem nele; mas então uma enxurrada de detalhes caiu sobre sua cabeça. – Ora, Adélia. Você por acaso não é médica para cuidar de doenças. Se essa é a maldição, - dissera para si mesma – então como se quebra uma doença? E por que Adam não escolheria médicos, ao invés de uma garota que mal completara o ensino médio?

Aquilo não lhe fazia sentido. Aquele estranho hábito de Adélia – isto é, o de discutir as próprias ideias consigo mesma – costumava ajudá-la muito. Mas naquele momento só parecia deixá-la mais confusa. Ela não tinha mais ninguém para discutir suas próprias ideias malucas, e seu subconsciente era o único que poderia ajudá-la a entender aquela loucura que se passava em sua cabeça.

Mas nem mesmo ele poderia ajudá-la.

Frustrada, ela afastou-se da janela, enquanto seu segundo palpite lhe rondava os nervos. Ela não queria discutir ele com ninguém – nem mesmo consigo mesma.

E se essa maldição... for realmente uma maldição? , ela pensara, enquanto encarava seus livros, Uma maldição como nos contos de fadas.

Aquilo era completamente ridículo! Tão ridículo que Adélia tinha vontade de gritar para todo mundo que a ideia de os contos de fadas às vezes se tornarem reais era ridícula.

Ideia ridícula! , ela pensou, Ridícula e ridícula e ridícula. Mil vezes ridícula!

Antes mesmo que pudesse se dar conta, seu subconsciente lhe dava uma palestra de ideias.

—Meu pai disse que eu posso quebrar a maldição – ela disse, dessa vez em voz alta. – Mas não disse como eu poderia quebrar essa maldição. – E, com um sorriso de escárnio, completou. – Se é que é uma maldição. – Ela cruzou os braços e se aproximou de sua prateleira de livro incompleta. Faltavam pouco mais do que quatro para completa-lá, e de repente ela se viu pensando nos livros que adoraria colocar ali. Certamente um romance que lera na biblioteca do Instituto Florence, ou mais uma aventura, ou um mistério... Ela não sabia exatamente como chegara àquela linha de pensamentos. Mas havia algo ali que Adélia podia jurar estar deixando passar.

Ela passou os dedos finos nas lombadas em sua maioria desgastadas de livros e fechou os olhos, numa espécie de meditação. Ela estava tentando se concentrar, mas sentia-se agitada demais.

Que tipo de resposta ela poderia encontrar em meio a seus livros?

Só havia ali romances, mistérios, aventuras... Mas nenhum conto de fadas ou sequer um livro antigo sobre maldições ou coisas do tipo.

Sentindo-se mais frustrada ainda – se fosse possível – Adélia sentara em sua cama e ficara observando o céu laranja do entardecer.

Será que, mesmo se tivesse todas as respostas, as coisas seriam mais fáceis para ela? Teria alguma resposta escondida que poderia fazer com que Adélia se sentisse melhor?

Ela engoliu em seco.

Não estava preparada para partir. Não queria dizer adeus a sua vida simples no Brooklyn. Não queria deixar seus pais sozinhos e, acima de tudo, não queria fazer parte do Acordo.

Não lhe parecia justo que ela não tivesse opção de negar.

Deveria haver uma brecha naquele documento que permitisse que seus pais o abolissem totalmente de suas vidas.

Tinha de haver alguma esperança!

Adélia sentiu seus olhos umedecerem de novo, mas ela se recusou a chorar. Ela era forte e fazia questão de se manter firme diante de situações difíceis. Mas quando essas situações envolviam muita dor, mentiras e malditas maldições... Ela simplesmente não aguentava.

Se está sendo difícil para você, seu subconsciente falara, imagine para seus pais.

Tudo o que Adélia tinha a perder eram seus pais – e talvez até um futuro brilhante. Mas seus pais já haviam perdido muita coisa, e lá estavam eles: casados, agora tão cheios de amor um pelo outro que eles até o distribuíam a ela.

Você é a pessoa mais preciosa que há em nossas vidas, fora o que sua mãe lhe dissera. Aquelas palavras lhe eram tão verdadeira naquele momento quanto seus dedos brincando com a barra da manga de seu suéter azul.

Se Adélia desconfiasse de mais alguma verdade dita por seus pais, seria por conta própria. Havia uma chamazinha acesa dentro dela que dizia que não deveria mais desconfiar deles, e Adélia estava tão exausta daqueles pensamentos lhe enchendo a cabeça que teve de concordar com um aceno de cabeça para o quarto vazio.

Adélia levantou-se da cama, pronta para encarar seus pais de novo. Talvez até lhes devesse um pedido de desculpas pela desconfiança, mas ela logo descartou aquele pensamento.

Ela lançou um vislumbre para seu relógio de cabeceira, mas o que mais lhe chamou atenção fora o livro de capa rosa e letras douradas ao seu lado. Ela quase havia se esquecido de que o estava lendo quando sua mãe a interrompeu – e, mais profundamente, que sua mãe a proibira de lê-lo.

Adélia parou diante da porta de seu quarto, e encarando aquele livrinho insignificante, ela perguntou-se onde estava toda a excitação que sentira para lê-lo, só por que sua mãe o proibira.

Balançando a cabeça, ela saiu de seu quarto e fechou a porta atrás de si, enquanto imaginava uma futura conversa com seus pais.

**

Em algum lugar muito distante, Rafael ouvira o soar estridente de um cronômetro.

Seus músculos doíam por causa das batidas frenéticas de seus braços e pernas, mas ele se recusava a parar naquele momento. Depois da terceira volta, Rafael parara de contar, mas seu cronômetro continuava marcando seu tempo.

Por mais irritante que soasse, Rafael deixou que ele ficasse lá, gritando para ser desligado.

Mas, quando ele parou de soar, Rafael estranhou.

—Senhor? - Ele ouvira do outro lado da enorme piscina uma voz soar retorcida e mais alta do que o barulho da chuva caindo no telhado. -Senhor, trago notícias importantes.

Rafael surgira em meio à água arfante e o encarou.

Era um homem de meia idade, alto e aparentemente magro para sua idade. Seu rosto estava franzido e parecia estar com frio e um tanto nervoso. Mas o que mais chamou a atenção dele fora o envelope branco que o homem segurava junto ao peito.

Fordy— ele dissera, encarando fixamente o homem nervoso, enquanto nadava em sua direção sem pressa alguma. - Sabe que não gosto de ser interrompido quando estou aqui.

Rafael fez um gesto indicando o ambiente em que estava.

O lugar era o "porão" de casa, onde há muito tempo atrás seu pai instalara uma piscina, e onde um dia tinha sido um lugar prazeroso de passar o tempo. Suas paredes já foram azuis como o céu de verão, mas agora estavam velhas, mofadas e cheias de infiltrações em todos os cantos. O teto era abobadado, com lustres de cristal que não eram acesos há muito tempo. Havia ali também uma churrasqueira embutida na parede, com mesas e cadeiras amontoadas em um canto escuro, e outras parafernálias que Rafael nunca ousara mexer. Mesmo com janelas que davam ao jardim, o lugar continuava sombrio e escuro.

—Tenho total noção disso, senhor - Fordy dissera, censurando-se internamente por ter deixado sua voz soar tão trêmula. - Seu pai está aqui, e deseja falar com o senhor urgentemente.

Rafael o lançou um olhar desconfiado, mas nadou até a beirada da piscina e saiu, pegando um roupão em seguida e o vestindo apressadamente.

—O que tem aí nas mãos? - Ele aproximou-se de Fordy e aceitou o envelope que este lhe oferecia. - O que é isto, Fordy?

—É melhor ver por si mesmo, senhor - Fordy murmurara, enquanto se afastava sorrateiramente de Rafael.

Havia apenas uma folha dentro do envelope, o que aumentou a curiosidade do rapaz. Devagar, ele puxou a folha de dentro de lá e a ergueu acima do rosto, analisando-a bem.

Era uma foto. Mas, ao olhar a figura fotografada, Rafael soltou um arquejo.

—O que é isto, Fordy? - Rafael caminhou até onde Fordy estava, olhando fixamente a foto em suas mãos.

—Acho melhor que seu pai explique-a, meu senhor.

Rafael assentiu e entregou a foto ao homem em sua frente.

—Avise-o que estou indo. - E saiu, dando as costas ao homem e caminhando o mais apressadamente que podia até o banheiro, onde deixara suas coisas.

Depois de recolher todos os seus pertences e vestir suas roupas, o rapaz deixara um dos seus lugares favoritos para trás, enquanto subia os três degraus que separavam a área da piscina de uma sala vazia e coberta de janelas que iam do chão até o teto, que também dava ao jardim.Depois de passar pelo corredor que terminava na sala de estar e subir todas as escadas que levavam ao andar onde ficava seu quarto, Rafael arfava. Seu peito doía de aflição com a expectativa de ter que conversar com seu pai sobre aquela foto, mesmo sabendo o que significava.

Pai!— Rafael entrara em seu quarto como uma tempestade, sentindo a adrenalina transitar em seu sangue.

Adam estava na janela, encarando a paisagem coberta por uma névoa cinza-chumbo, não se dando nem ao trabalho de virar-se para encarar o filho. Ele permaneceu em silêncio por alguns segundos e, quando finalmente virou-se para encará-lo, desviou os olhos de desgosto.

—Não me chame de pai - foi tudo o que dissera. Ele observou Rafael cruzar os braços e semicerrar os olhos, irritado. - Não quando estiver sem ela.

Ele sabia que Rafael era seu filho e admitir aquilo era duro, mas vê-lo pronunciar a palavra pai para se referir a ele lhe causava ânsia.Principalmente quando ele estava sem a máscara.

Adam— Rafael tentara colocar o máximo de desdém na voz, mas ela o traiu, soando assim muito tremida e baixa.

—Sabe o quanto me desagrada quando não está usando sua máscara, garoto - Adam apontara para ele acusatoriamente.

—Sim, eu sei muito bem disso - Rafael apertou ainda mais os braços entrelaçados, sentindo um misto de humilhação e raiva. - Não tive tempo de colocá-la. Eu estava...

—Naquele lugar deplorável - Adam se aproximara, receoso, dele. Ele franziu o rosto, em sinal de desaprovação. - Francamente, aquele lugar precisa desaparecer daqui.

Rafael engolira em seco.

Não ousaria desafiar o pai, mas tampouco gostava da ideia de ver um dos seus lugares favoritos ser transformado em pó por Adam.

— Fordy me contou que queria conversar comigo - Rafael descruzou os braços e caminhou em direção pai. - E me mostrou uma foto. O que isso deveria significar, Adam?

Adam ergueu uma sobrancelha, cético. Não acreditava que teria de explicar tudo de novo para ele.

—Você sabe o que significa. - Respondera secamente.

—Eu sei o que significa - Rafael murmurou para si mesmo, tão baixo que se perguntou se ele mesmo tinha ouvido a própria voz. - O problema é esse.

—Deveria me agradecer por ainda lhe dar uma segunda chance. - Adam o encarou de cima abaixo, desdenhoso.

—Eu não quero uma segunda chance.

Adam o encarou irritado por ter que ouvir aquilo.

Estava farto de ouvir Rafael bancando o rebelde e lhe desobedecendo. Quando tinha a idade dele, Adam não era diferente; adorava contrariar as pessoas ao seu redor. Mas com aquele garoto era diferente, pois ele não tinha condições de ser rebelde.

Que outra opção ele teria, caso fosse desobedecer às ordens do pai? Iria fugir para longe, como Adam um dia fizera?

Ele simplesmente não podia.

Aquela ideia fez Adam rir. Um riso seco e oco, sem qualquer vestígio de bom humor.

—Ah, seu eu fosse você, eu ficaria feliz em ter uma segunda chance - ele lançou ao rapaz um olhar semicerrado, que mal continha sua fúria crescente. - No seu mundo, Rafael, eu ficaria feliz por qualquer oportunidade que tivesse de... - Ele apontou para o rapaz - De ser normal.

Rafael teve de esconder sua fúria atrás de um suspiro. Sua respiração estava ruidosa e seu coração estava agitado, sem nenhum resquício da adrenalina que sentira ao entrar no quarto.

—Isso não é uma oportunidade, Adam - dissera, acusatoriamente. - Eu não quero mais isso. Não quero ter um final feliz. Não me importo com as consequências. Só quero que acabe. Logo!

Adam sentiu seu peito de inflar de fúria automaticamente.

Ele aproximou-se do filho sorrateiramente e, quando este calara a boca e o encarou, Adam desferiu-lhe um golpe no rosto.

Rafael tropeçara para trás, enquanto sua face queimava. Ele não ousou encarar o pai; sabia que, de alguma forma, havia ultrapassado o limite de sua paciência.

Adam o encarou, sentindo sua raiva por ele aumentar a cada batida de seu coração. Ele odiava a vulnerabilidade de Rafael. Odiava quando o contrariava. Odiava mais ainda sua tolice e a forma como não parecia se importar com o fim de sua maldição.

—Nunca mais fale isso em minha frente - Adam sussurrou ameaçadoramente. - Ou devo repetir qual será seu fim?

Rafael balançou a cabeça devagar, ainda sentindo seu rosto arder.

Ele sabia muito bem como acabaria se sua maldição não fosse quebrada. Mas algo dentro de si já não se importava mais. Tudo o que ele queria era que acabasse, sem se importar em como acabaria.

Mas Rafael sabia que seu pai não iria desistir. Mesmo que quase não lhe restasse mais tempo algum, ele sabia que Adam insistiria em continuar, até que aquilo finalmente acabasse. Rafael via aquilo como um consolo; gostava de pensar que seu pai se importava o suficiente para não querer perdê-lo. Mesmo que às vezes demonstrasse aquilo de uma forma nada carinhosa.

Adam sabia daquilo. Sabia que Rafael o via com outros olhos. Mas se ele tivesse contado a história toda para o rapaz...

Ele tirou um pedaço de papel de dentro do paletó que usava e o empurrou para Rafael.

Rafael pegou a foto e a encarou só por alguns segundos breves.

Adam...

Rafael engolira em seco, sentindo seu peito se fechar.

Por que seu pai nunca o ouvia? Será que ele não fazia noção do que estava fazendo àquela moça? Não fazia noção de que aquilo teria consequências devastadoras para ela?

—Adam, eu não posso fazer isso - ele murmurou, encarando a foto em suas mãos. Não conseguia tirar os olhos dela. - Eu não quero fazer isso.

—Ela virá logo- anunciara, ignorando completamente o rapaz. Não queria ouvir sua opinião a respeito. - Devo dizer que é uma moça adorável. Seus pais-criados me garantiram isso. Eles até se afeiçoaram a ela.

Aquilo fez Rafael soltar um arquejo.

Adam... - Ele encarou o pai, que tinha uma expressão indiferente enfeitada com um sorriso de escárnio. - Não pode fazer isso com eles. Se eles a amam...

—Bobagem! - Anunciara com um gesto de mão. - Isso é bobagem pura. Eles sabiam desde o início que isso aconteceria. Seus apelos não significam nada para mim agora.

Rafael piscou, atônito.

—Eles apelaram? - Sussurrou, tão inaudível que mal se ouviu. Como seu pai conseguia ser tão frio?

Aquilo não era justo. Nem mesmo com Rafael. Era muito egoísmo de sua parte aceitar aquele acordo. Mas como poderia argumentar com Adam?

Rafael sempre temera o pai, mesmo quando tinha uma breve perda de noção para discutir com ele. Ele sempre o encarava como alguém indiscutível, intimidador e impenetrável. Era comum Rafael perder a cabeça durante uma discussão com o pai, mas quando seu pai perdia a cabeça... Um golpe no rosto era a mais simples de suas consequências que Rafael já provara.

—Isto é tão... - Rafael não tinha palavras para terminar aquela frase. Errado lhe pareceu fraco demais.

Sorrateiramente, Adam se aproximou do garoto e segurou seu rosto entre as mãos.

Rafael o encarou um tanto surpreso com seu toque.

Aquele era um de seus truques mais usados com o filho. Adam sabia que seu filho era quase um desesperado, e quando lhe mostrava um simples toque afeição, o garoto ficava sem argumentos contra ele. Afinal, não havia motivos para negar algo para alguém que o ama.

—Você não vai deixar que seja como da última vez, não é? - ele falou, disfarçando sua voz com um toque de suavidade. Rafael negou rapidamente e Adam sorriu. - Então não será como da última vez.

—Mas como farei isso? - Rafael perguntou, trêmulo. - Como vou saber?

—Você saberá no final - Adam sussurrara, encarando-o tão fixamente que ele próprio sentiu o garoto se encolher.

—Como pode ter certeza de que dessa vez vai dar certo? - Rafael desviou o olhar quando seu pai desvencilhou-se de seu rosto.

Adam agora tinha as mãos agarradas nos ombros fortes do filho. Devagar, ele aproximou-se do garoto, como quem ia lhe abraçar. Rafael prendeu a respiração com a expectativa quando o pai se aproximou.

—Por que, - Adam sussurrou-lhe no ouvido - esta é a sua última chance.

Ele deu um passo para trás e se afastou do garoto, que o encarava. Quando ficou diante das enormes portas do quarto dele, Adam virou-se para Rafael mais uma vez e, como para deixar bem claro, repetiu o aviso, apontando um dedo para ele.

—Sua última chance. - Dissera - Não a desperdice.

E saiu, deixando-o sozinho no cômodo.