O Máscara

Adeus e olá!


Adélia Moretz enroscou o dedo indicador na ponta solta de sua trança ao lado da cintura, quase sem ar de tanto nervosismo. Ela lançou um olhar furtivo para a grande mala preta ao seu lado e cruzou os braços, bufando de impaciência.

Ganhei um irmãozinho neste inverno!” – Ela ouviu uma garota ao seu lado sussurrar, e então ouviu risadas. “Estou louca para conhecê-lo!

Adélia ouviu mais risadas e se encolheu, um tanto intimidada com toda a animação que dava calor ao grande salão.

O salão era totalmente iluminado por quatro grandes janelas de vidro que davam para o jardim verde do St.Florence. O lugar estava praticamente vazio – exceto por duas garotas que cochichavam ao lado de Adélia, a própria Adélia e duas Madrinhas que estavam detrás do grande balcão que ficava diretamente de frente para as grandes portas,projetando uma “recepção”. Fora o balcão, quatro poltronas velhas (uma para cada janela) e uma escada, aquele salão não tinha mais nada.

A cada três meses que se via parada ali, à espera de seus pais, Adélia sempre se perguntava para quê os recursos que o famoso – e totalmente anônimo – professor doava para o Instituto era usado. Não que o lugar fosse totalmente uma lástima; ao contrario: era agradável até. Mas ainda assim poderia haver algumas reformas que ajudaria o lugar a parecer menos... Repugnante a primeira vista.

–Adélia – ela ouviu uma voz doce tomar-lhe a concentração. –Está voando nos ares da imaginação outra vez?

A Madrinha Elena se aproximou dela e sacudiu sua mão pequenina, porém calejada, na frente do rosto de Adélia. A garota encarou a mulher baixinha em sua frente, que sorria como se estivesse diante de algo muito engraçado. Ou muito estúpido.

–Sim, Madrinha?

Adélia logo se apressou em verificar as roupas que vestia, - um suéter cinza, um par de jeans escuros e seu costumeiro par de sapatos Converse - pensando ser esse o motivo pelo qual fora chamada a atenção.

–Os seus pais já chegaram.

Adélia perdeu o fôlego por uma fração de segundos, arfando tão de repente que quase se engasgou. Estava com saudades dos pais – e ainda mais de casa. Ela gostava de ficar no St.Florence, mas amava demais estar em casa com seus pais para ficar por lá um ano inteiro. Quando seus pais a adotaram, eles optaram por deixá-la matriculada no St.Florence – que era uma antiga fazenda onde apenas garotas eram aceitas. De início, Adélia ficara muito magoada com a decisão dos pais adotivos de mantê-la em uma escola de tempo integral – com apenas três meses de férias por ano! – ao invés de colocarem-na em uma escola qualquer onde iriam morar. Ela até chegara a pensar que eles não gostavam dela, e que só estavam fazendo aquilo para ficar menos tempo perto dela. Mas por que adotá-la, então?

Quando uma mulher baixinha e loira entrou na sala junto com um homem alto, Adélia desejou poder correr até eles e abraçá-los. Mas se fizesse isso, era capaz de receber uma reclamação da Madrinha Elena pelos “maus modos”. (Uma ressalva sobre o St.Florence: as Madrinhas faziam questão de tomar quase um domingo inteiro com aulas de comportamento, e coitada da garota que ousasse não usar os conhecimentos adquiridos nas aulas na frente das Madrinhas! – mesmo que estivesse morrendo de saudade dos pais).

–Adélia! – A voz estridente de Suzane Moretz atravessou o salão até Adélia, que a recebeu como se fosse uma carícia. – Você está tão bonita!

A Sra.Moretz correu até a filha e a abraçou apertado, e depois se afastou um passo para analisá-la.

–Você está tão bonita... – Repetiu, desta vez como que para si mesma.

Talvez fosse a euforia, mas Adélia podia jurar que vira os olhos da mãe umedecer.

Adélia também aproveitou a chance para analisar a mãe. Ela usava um vestido azul-escuro que dava mais atenção aos seus olhos também azuis. Seus cabelos loiros estavam presos em um coque alto, e seus lábios estavam pintados de rosa – o que dava a ela um ar mais jovial ainda. Quando seu pai se aproximou para um abraço,Adélia aproveitou a chance para enterrar seu rosto no peito do pai, um tanto ansiosa pelo abraço e para esconder o rosto que corava por causa da chegada das lágrimas.

–Olá minha querida – o Sr.Moretz beijou o topo da cabeça dela.

Thiago segurou-a pelos ombros e a afastou para poder encará-la melhor. Ela parecia mais magra (ou talvez fosse apenas o suéter que fosse grande demais para seu corpo), e sua pele não estava tão bronzeada como da última vez em que ele a vira. Seus lábios estavam rachados e seus cabelos cacheados e cor de caramelo estavam embolados em uma trança. Mas seus olhos grandes brilhavam de animação.

–Com licença – a Madrinha Elena se reaproximou da família. – Preciso que os dois assinem alguns papéis para a transferência.

Adélia soltou um arquejo, surpresa. Ela encarou o pai, que a olhava cheio de admiração.

–Transferência? – Perguntou, tão baixinho que apenas seu pai escutou.

Thiago passou o braço por cima dos ombros de Adélia e a abraçou de lado – isso para não encarar aqueles olhos que sempre o fazia se lembrar do pôr-do-sol, de tão claros que eram.

–Sim querida. – Era tudo o que tinha para dizer, até aquele momento. Mas ele sabia que não seria o suficiente, pois Adélia franziu a testa, confusa e insatisfeita com sua resposta curta.

–É para mim?

Thiago seguiu a esposa e a Madrinha Elena até o grande balcão que ficava ao pé da escada, como que para bloqueia - lá. Adélia ainda encarava o pai esperando uma resposta, mas já sabia que não teria. Thiago apenas caminhava despreocupadamente, ainda com a filha embaixo do braço.

–Por que não vai colocar as suas coisas no carro? Daqui a pouco nós nos encontramos lá fora.

Adélia sabia que aquilo era uma desculpa para que ela se retirasse, mas jamais ousaria desobedecer ao pai ali. Ela assentiu obediente e seu pai lhe entregou um molho de chaves, o qual estava à chave do carro dele.

Ela pegou a grande mala preta de onde estava e a arrastou para fora, lutando para não tropeçar nos degraus da escada que não facilitavam nada naquele momento. Depois de lutar contra a maçaneta do porta-malas do Chevette 76 do pai, Adélia guardou suas coisas e se recostou no carro, bufando.

Ela sentia que estava perdendo alguma coisa lá dentro, mas não era ousada o suficiente para entrar lá e descobrir o quê. A Madrinha Elena dissera sobre assinar papéis para uma transferência; o que com toda certeza se tratava de Adélia. Mas por que de repente seus pais queriam transferi - lá para outro lugar? E por que fazer isso sem sequer conversar com ela?

Adélia amava os pais adotivos mais do que qualquer outra pessoa no mundo, mas as vezes eles a tratavam como se ela fosse uma criança incapaz de entender qualquer coisa; ou como se não se importassem nem um pouco com a opinião dela. Eram eles que faziam as escolhas da vida dela, sem nem sequer saber se ela tinha alguma objeção ou coisa parecida.

Talvez seja assim com todas as pessoas que são adotadas, ela pensou, elas sempre serão crianças para seus pais.

Para piorar, Adélia mal usava seu senso crítico sobre as coisas. Quando lhe perguntavam se algo estava bom ou ruim, ela costumava dar de ombros ou confirmar o que a pessoa dissera sobre tal assunto. Ou concordar, sem nenhuma objeção, sobre as decisões que tinham para ela. Tudo o que Adélia menos queria era desapontar os pais – e aquilo significava não discordar sobre nada que eles achassem certo para ela.

Mas como dizer para as pessoas que você mais ama que aquilo o que elas acham que é certo para você não é o que te faz feliz de verdade, sem desapontá-las?

Adélia sentiu um aperto no peito e lutou contra a bile que se formava em sua garganta ao ver seus pais descerem as escadas juntos, conversando entre si. Quando a família Moretz entrou no velho - porém muito bem conservado – carro da família, as duas Madrinhas ao pé da escada que dava entrada ao prédio principal do St.Florence acenaram para eles em despedida, já sentindo um aperto no peito pela falta e pelo medo que sentiriam pela garota que partira naquele momento.

–Pobre garota – a Madrinha Wanda tocou o peito com as pontas dos dedos. – Espero que todas as sete virtudes tomem conta dela.

A Madrinha Elena enxugou uma lágrima que escapara sem que ela percebesse.

–Vai sim, Madrinha – ela disse, segurando a Madrinha Wanda pelo braço, em um gesto reconfortante. – Os anjos estão a favor dela.

As duas Madrinhas se entreolharam e sorriram para si mesmas.

Quando Adélia entrou em seu quarto, não pôde evitar soltar um gritinho de surpresa. Seu pai - que estava ao seu lado - riu da reação da filha ao ver o rosto dela se iluminar ao ver a “surpresa” que ele e Suzane haviam preparado para ela durante os últimos meses.

–Pai! - Ela correu e o abraçou. - Está maravilhoso!

O quarto de Adélia havia sido transformado em um quarto de boneca. As paredes estavam lilás e a roupa de cama era toda estampada de flores coloridas. Tinha até almofadas em formato de flores!

Os livros de Adélia estavam todos enfileirados em uma prateleira nova, e tinha até um aparelho de som novo para ela ouvir seus CDs preferidos quando quisesse. Ela caminhou até uma portinhola pintada de roxo embutida na parede e a abriu, dando-se conta de que era seu antigo guarda-roupa. Estava praticamente vazio, já que metade de suas roupas estava dentro da mala, porém os poucos vestidos e sapatos que tinha estavam todos lindamente organizados por cor.

–Sua mãe escolheu a cor e as outras coisas - Thiago disse, encarando o ambiente também. Com Adélia radiante ali dentro, ele finalmente pode notar o quanto o quarto estava realmente bonito. Como se ela desse mais cor ao lugar. - Eu só fiz colocar as coisas nas paredes e carregar as caixas para cima e para baixo…

–Ah pai, está tudo tão adorável!

Adélia correu até ele e o abraçou outra vez, grata por tudo aquilo. Havia muita coisa a qual Adélia era grata aos seus pais, mas a generosidade deles era a virtude que ela mais admirava.

–Vou deixá-la sozinha com o seu novo quarto. Se precisar de ajuda para desfazer as malas, é só chamar.

Ele acenou para ela e saiu, deixando a porta entreaberta para lhe dar privacidade. Adélia girou sobre os calcanhares ainda um pouco boba pela surpresa. Seu quarto antigo nunca a incomodara; era simples, com paredes brancas, uma cama com lençóis simples e as prateleiras cheias de seus livros favoritos. Ela não tinha muitos CDs, já que praticamente não ouvia música nenhuma no St.Florence e por isso era difícil dizer de qual banda gostava ou coisas do tipo. Mas algumas garotas do St.Florence com que ela conversava as vezes falavam sobre seus cantores prediletos e suas bandas; e havia, claro, seu pai, que tinha um gosto eclético incrível e que agradava bastante Adélia. Foi no seu aniversário de dezessete anos que ela ganhou um aparelho de som velho e os CDs favoritos de seu pai.

Ela arrastou a mala pesada até sua cama e a jogou ali, pronta para tentar ao máximo organizar as roupas simples - que se resumiam apenas em jeans e suéteres, já que era tudo o que o St.Florence permitia - e deixá-la da mesma forma que as outras coisas em seu guarda-roupas estavam. Depois de separar os jeans dos suéteres, as meias e as roupas íntimas e todo o resto, ela se permitiu ficar na janela do seu quarto ouvindo o barulho dos carros e das pessoas no Brooklyn. A vista que tinha de sua janela dava diretamente para a calçada de casa, que ficava dois andares abaixo no prédio onde moravam. Ela deixou que suas mãos acariciassem as cortinas roxas - e bem escuras- que a protegiam dos olhos curiosos do lado de fora, junto com as persianas. Seus pais eram muito rigorosos quando o assunto era a privacidade da filha.

As pessoas passeavam alheias à garota na janela, observando-as com certa curiosidade no olhar. As pessoas sempre fascinaram Adélia. O cotidiano delas, o modo como se comportavam, as coisas que faziam em nome dos sentimentos que tinham um pelo outro... Mas a coisa que ela mais admirava nas pessoas era a capacidade de amar incondicionalmente a outra. Ou pelo menos era isso o que ela lia nos livros. Era fascinante o que as pessoas eram capaz de fazer em nome do amor. Era algo que Adélia ainda não conhecia, mas que esperava conhecer em breve. Ela não tinha pressa.

Adélia suspirou e caminhou até seu aparelho de som e o ligou, escolhendo a estação de rádio que ela e o pai mais gostavam. Estava passando uma música que ela não conhecia, mas que tinha uma melodia doce e envolvente, com uma voz feminina sussurrando juras de uma paixão que a queimava de dentro para fora.

Com isso, Adélia sentiu uma saudade repentina de seus romances literários. Ela passou os dedos pelas lombadas dos livros dispostos nas prateleiras embutidas encima da sua nova penteadeira. Havia ali livros que ela mesma escolhera - uma minoria - sobre aventuras e mistérios, e os livros que seus pais lhe deram - a maioria. Mas ela adorava a todos, pois em todos eles ela conseguiu achar uma brecha a qual se encaixava perfeitamente. Ela fechou os olhos e deixou que seus dedos passeassem pelas lombadas dos livros e escolhessem sua próxima leitura. Ela estava quase decidindo optar por qualquer um quando ouviu batidas na porta, que a fizeram saltar de susto. Quando abriu os olhos, viu que seus dedos haviam parado sobre a lombada de um livro de capa dura e cor de rosa, e ela o puxou da prateleira para analisá-lo melhor.

A Bela e a Fera: Um Conto Clássico.

Ela franziu a testa enquanto relia as letras douradas na capa do livro, mal se lembrando da última vez em que o lera. Ou melhor, que sua mãe lera para ela.

Adélia se lembrava vagamente da história, mas podia se lembrar claramente de sua mãe lendo para ela quando já tinha por volta de doze anos de idade, quando estava de férias do St.Florence. Ela gostara da história da primeira vez, mas não conseguira entender muito bem o motivo pelo qual a garota havia se apaixonado por uma besta que ameaçara sua vida.

–Adélia? - Suzane a tocou no ombro.

Adélia saltou de susto ao mesmo tempo em que continha um gritinho, assustando também sua mãe.

–Desculpe mãe - ela disse, rindo. - Estava meio distraída com isso.

–Percebi - Suzane também riu e pegou o livro da mão da filha. - O que é isto?

Suzane conteve uma exclamação ao ler o título do livro. Não pelas boas lembranças que tinha ao terminar de ler o livro e poder observar Adélia dormindo, mas pelo fato de que aquilo era uma coincidência horrível e de muito mau gosto.

–Você leu isto? – A voz de Suzane tremeu tanto que deixou Adélia confusa.

A garota negou rapidamente, e Suzane soltou a respiração que prendera naqueles sufocantes segundos.

–Eu gostaria de ler.

Adélia - que não era de contradizer os pais por motivo nenhum- surpreendeu-se pelo próprio pedido, logo depois de ver a mãe ficar pálida e parecer nervosa ao ver o livro.

–Nem pense nisto… - Suzane se surpreendeu com a ponta de agressividade que impusera sem se dar conta na voz. – Você não o leu agora, não é?

Adélia negou outra vez, ficando cada vez mais desconfortável com o nervosismo da mãe.

–Onde você o achou? - Suzane conseguiu não soar tão transtornada dessa vez, já que percebera o nervosismo da filha.

–Estava aqui em minha prateleira quando eu… - Adélia se interrompeu; não podia dizer meditando sem parecer boba. - Eu só queria algo para ler e…

–Ele estava simplesmente aí?

Adélia assentiu.

Estava morrendo de vontade de perguntar o motivo pelo qual sua mãe estava tão transtornada por causa de um livro bobo de contos de fadas, o qual lera para ela durante toda sua infância. Mas, óbvio, temia deixar a mãe mais desconfortável - o que poderia lhe render uma punição.

–Não pode ler este livro. Escolha outra coisa. Algo mais… real e divertido. Não leia este livro, tudo bem?

Suzane colocou o livro embaixo do braço e encarou Adélia em busca de uma resposta. A garota apenas assentiu, acuada e receosa de ter feito algo errado.

Mas é só um livro bobo...

–Está pronta para jantar? - Suzane acariciou os cachos soltos da filha, distraindo-a. Suzane imediatamente sentiu-se um tanto pesada por dentro por ter dado aquele chilique na frente dela. Sua intenção não era assustá-la – ou pior, lhe dar motivos para desconfiança. Tudo o que a Sra.Moretz esperava era que Adélia continuasse sendo a boa menina que era e que seguisse todos os passos que ela e seu marido escolhessem, para que nada do que Blessed faria interferisse em suas vidas. Ela amava demais sua filha para deixar que bestas amaldiçoadas a machucasse.