O feiticeiro Mestre, Mejen, ficou para trás, enfrentando sozinho o espectro, enquanto Luahn e eu nos afastamos. O mestiço estava angustiado por ter que fugir, mas continuou determinado a obedecer sua ordem. De repente, algo atingiu a proteção mágica do mestiço por trás e o empurrou para frente, o derrubando num tropeço. Mesmo tendo caído, a cúpula não se desfez e o ajudei a ficar de pé novamente. Nesse tempo, com sua rede mágica, Mejen recapturou o espectro que tinha nos atacado e arrastou-o com toda sua força para longe de nós ao mesmo tempo em que aplicava feitiços secundários para mantê-lo distraído.

Voltamos a correr para a fazenda de Carlyne e uma fala diferente ecoou no ambiente, lançando um contra feitiço. Imediatamente um calafrio percorreu meu corpo e parei, Luahn teve a mesma surpresa ao reconhecer aquela voz grossa, parando e olhando para trás.

— É o feiticeiro negro do castelo! — Falei preocupado e Luahn retribuiu meu olhar. — Ele não pode ter sobrevivido aquilo!

— Seu corpo não sobreviveu, mas a alma sim — esclareceu.

Logo, chamas escuras formaram um circulo ao redor de Mejen e as labaredas atingiram seu feitiço de rede, corrompendo-a até que ficasse fraca e quebrasse – o que não demorou. Livre, o espectro maligno jogou suas chamas para sobre o mestre feiticeiro sem hesitação alguma e o encobrindo por completo. Ver isso fez Luahn arregalar os olhos e ter o impulso de ir até ele desesperado, mas o segurei e fui atingido bruscamente pelo som natural do nosso redor porque ele desfez a cúpula de proteção. O mestiço tentou soltar minhas mãos dele, mas resisti, sendo molhado por uma chuva que surgiu igualmente de repente e de alguma forma a água abaixou um pouco a altura das chamas que escondiam Mejen.

Mas, enquanto isso, o espectro não nos deu tempo algum, investiu em nossa direção feroz enquanto eu segurava o garoto.

— Luahn! — chamei-o aflito, para que ele reagisse a tempo, mas nós fomos atingidos e separados, como se um meteoro conseguisse atingir exatamente entre nós e me jogasse para longe.

Apaguei, sem saber quando atingi o chão, e quando voltei à consciência meus ferimentos cicatrizados doeram instantaneamente. Estava caído de bruços sobre uma área de capim amassado, com um longo apito ressoando em meus ouvidos e sentindo o gosto de sangue na boca. Virei no chão e notei que o vento soprava bravo, jogando meus cabelos no rosto e impulsionando as gotas da chuva para varias direções, mas mais claramente senti a predominância do cheiro de especiarias, esse era o mesmo odor que o feiticeiro negro tinha então com certeza era ele. Busquei por Luahn e o encontrei vários metros longe, ajoelhado, sujo de terra e com alguns esfolados na pele.

O garoto estava surpreso com a distância em que ficamos e, em seu olhar, vi um pedido de desculpa por ter se esquecido de nos proteger. O vulto negro no céu chamou minha atenção em seguida, se contorcendo e envolto por chamas douradas, ziguezagueando como se quisesse livrar-se delas. Então notei Mejen de pé, com áreas queimadas no rosto e da fuligem na roupa, concentrado nele e atando-o determinado.

Aproveitando da distração, levantei e corri para o mestiço, porém mal cheguei ao meio do espaço e ouvi um chiado seguido de um impacto que tremeu todo o solo. Olhei na direção de Mejen e o vi caido e derrotado. A voz de Luahn gritou algo no mesmo pequeno segundo, mas o que assisti foi o vulto apontar para minha direção e avançar muito rápido em um ataque direto. Surpreso, só tive tempo de levantar a espada na minha frente e a bola de fumaça foi cortada no meio com um chiado agoniado, dividindo-se em dois e se tornando momentaneamente branca perola onde a lamina polida da arma tocou-o fatiando. Rapidamente o corpo do espectro acabou e foi um alivio sentir a pressão contra a espada terminar. Busquei saber onde ele foi, me preparando para um próximo ataque, mas meu corpo foi encoberto por uma pressão súbita, onde não pude move os músculos e fui, literalmente, arrastado até Luahn que me estendia uma mão. Nós dois colidimos e caímos juntos no chão, confusos.

— Não acredito que deu certo! — ele disse feliz debaixo de meu corpo, que já estava livre da pressão que me arrastou. O encarei sem entender e ele sorria, apesar do momento ainda ser perigoso para nós dois. Explicou: — Eu o puxei para mim! Com magia e só na intenção!

Mas não tínhamos tempo para apreciar as novidades dos poderes de feiticeiro dele.

Procurei pelo inimigo enquanto ficava de pé. O espectro estava dividido em dois disformes vultos que planavam entorpecidos e sem reação, então puxei Luahn do chão enquanto definia no ar a presença de Carlyne. Ela estava chegando ao campo e não devia estar longe. Corremos na direção dela e em alguns metros pude enxergá-la no alto de um morro. Ao ver o cenário do tumulto, a mulher parou de correr, devia saber que aquilo que nos perseguia não era coisa boa e nos esperou.

Na confusão de sons, com a ventania, a chuva que estava mais fraca e os sinos e apito que o espectro produzia na minha audição mais sensível que a human, apenas vi Carlyne apontar atrás de nós de repente e mover a boca como se gritasse nervosa. Instintivamente, olhei na direção e vi que a mancha negra era uma novamente e vinha em nossa direção, emanando mais fúria do que antes. Pela sua velocidade, não daria tempo de fugirmos correndo ou do mestiço pensar em algo, então empurrei Luahn para fora da mira do espectro acelerado e levantei a espada diante de meu corpo outra vez, pronto para fatiá-lo de novo.

Contudo, espectro negro desviou-se da minha arma no ultimo momento. Meu coração pulsou dolorido ao imaginar que a curva que fez foi para pegar Luahn, exposto e caído no chão atordoado, mas o impacto seguinte veio contra a lateral da minha costela. Algo penetrou definitivamente na minha carne, espalhando um choque tóxico que desligou todos meus músculos do meu controle, espremendo minha energia ou alma para um espaço minúsculo dentro de mim mesmo, até esse lugar se tornar tão apertado e sufocante que senti dor e minha consciência oscilou. Cai ouvindo a tortura de milhares de arranhões em metal e sentindo meu corpo queimando, apesar de não haver chamas. Inspirei sem conseguir ar e fiquei aflito... Eu estava perdendo a luta por mim, sem chance de continuar comigo naquela realidade, e quando pensei em olhar na direção de Luahn sabendo que era o fim, tudo sumiu. Não pude nem observá-lo uma ultima vez. Realmente, eu não era forte suficiente para aquele papel na vida do mestiço.

************************************Luahn:************************************

Um silêncio puro ocupou todo o campo de repente. O capim alto, que chacoalhava intensamente, passou a se mover mais lento com um vento mais fraco. E a chuva gelada se tornou uma garoa fina e suave. Era uma calmaria completamente nula e pacifica. Muda e... Vazia.

A menos de seis metros de mim, Fiel estava caído inconsciente e o espectro e sua energia malvada tinham desaparecido.

— Luahn? O que foi isso?! — ouvi a voz de Carlyne em tom alto e surpreso, longe de nós.

Não lhe respondi, ainda estava atordoado e com uma sensação forte de que aquilo não tinha acabado. Virei lentamente para olhá-la, percebendo que só restava nos dois de pé naquele lugar, e para me surpreender mais, um brilho gigante surgiu logo atrás dela, materializando-se em uma aura com forma humana que ela não notou. Era a mesma coisa que havia nos alertado para fugir, não era ameaça, mas me assustei quando aquela áurea olhou para o alto da cabeça de Carlyne e, num segundo e com um pisar sobre ela, escorreu-se para dentro do corpo da mulher. Não tive nem tempo de avisá-la.
Levantei-me do chão atento e preocupado com Carlyne, ela estava apenas parada de pé e com os olhos fechados, até que me encarou de repente e sua expressão era completamente nova, séria, confiante e determinada, além de que seus olhos brilhavam como se refletisse uma luz interna.

— Carlyne? — chamei, ao vê-la se aproximando de mim com passos decididos e olhar fixo no meu cinto, e quando ela chegou pegou a adaga de Fiel que estava comigo dizendo:

— Isto não lhe pertence. — Depois foi na direção do homem-lobo

No mesmo momento do inicio da aproximação dela, Fiel se moveu e fiquei mais aliviado de vê-lo acordando e se levantando do chão devagar, também comecei a ir até ele para saber como estava. Carlyne pegou a espada caída no meio do caminho e com seu movimento ele nos notou, olhando para nós. Então parei imediatamente, estranhando-o, pois, entre as mechas de cabelos longos que caiam escondendo em seu rosto, vi um sorriso torto, muito incomum, e ele ria baixo.

Quando parei de pensar naquela expressão sarcástica clara que Fiel nunca fez, Carlyne avançou rapidamente contra ele com um golpe da espada, querendo atingi-lo mortalmente, ele se esquivou veloz e correu para longe. Ela lançou a adaga com precisão e força, mas Fiel parou subitamente, virou-se e disse uma única palavra no dialeto mais antigo que eu mal conhecia para usar magia e, com isso, o fino traço prata da adaga curvou-se abruptamente e foi em direção ao nada.

Enquanto eu fiquei para trás, chocado e sem entender como ele sabia usar magia, a mulher correu até ele determinada, novamente com a espada em punho e o golpeou, já que ele a esperou, mas facilmente Fiel desviada dos movimentos dela, rindo de suas tentativas sucessivas. E novamente, de repente, ele usou uma palavra extinta e executou um feitiço que jogou Carlyne para longe dele.

Corri para ajudar a mulher, já que tinha que fazer alguma coisa apesar de confuso com tudo, mas o lobo-homem me percebeu e apenas observou enquanto seu riso esquisito de divertimento se amenizou até uma seriedade, quase parecendo o normal de Fiel. Parei antes de chegar a Carlyne, não resistindo em encará-lo de volta e sentindo-me ser tomado por uma raiva e amargura intensa. Com toda certeza aquele não era Fiel. Então ele riu presunçoso e num movimento de mão, senti antecipadamente que ia sumir e quis fazer algo para impedir, apesar de não ter ideia, mas em instantes seu corpo se tornou nevoa e se dissolveu no ambiente, realmente desaparecendo por completo. Fiquei desesperado quando percebei que não sentia mais a presença de Fiel perto e nem por quilômetros ao nosso redor, nada dele havia ficado e não sabia para onde foi. Estava sozinho... Sem ele.

— Bastardo! — ouvi e me lembrei de Carlyne. Movi os pés e fui ajudá-la a se levantar. — Esse corpo é lento...

— E quem é você? — questionei sério e ela me olhou com leve pesar.

— Avisei para irem para longe, mas não lhes dei tempo suficiente. É parte minha culpa.

— Não tínhamos muito para onde ir.

Ela só assentiu, desviando o olhar para suas mãos e corpo, analisando-se. Depois caminhou até sua espada e, quando se arcou, o grande capuz da capa verde escorregou para sua cabeça, incomodando-a. Num bufar, ela pegou sua espada e em seguida desamarrou a capa, a largando ali e vindo até mim exposta, sem qualquer receio de sua aparência:

— Esta mulher possui uma pequena parte do sangue da minha raça. Por isso consigo emprestar seu corpo.

— Sua raça? — estranhei, surpreso.

— Sim. Ela é descendente de um dos Atroes. Mas neste mundo, nós só existimos há muito anos atrás. Seria impossível eu continuar aqui sem me fixar em algo, por milagre encontrei-a nesta ultima hora e poderei enfrentar aquele amaldiçoado que vaga por aqui com planos malignos.

— Fiel não é um amaldiçoado!

— Não! O lobo não, garoto! O feiticeiro que roubou o corpo dele.

— Roubou? — Sim, aquilo fazia sentido!

— Eu avisei que aquela coisa estava atrás de um de vocês — disse Carlyne. — Ele perdeu o primeiro corpo que usava neste mundo e estava em busca de um novo que o suportasse. Era a melhor oportunidade que eu tinha para pegá-lo, mas deu tudo errado.

— Por que... Porque o corpo de Fiel? Porque não eu ou Mejen?

— Porque aquele corpo suporta as mudanças e a magia. É um corpo modificado para isso.

E pensar que Mejen estava preocupado comigo, enquanto nem pensamos que o inimigo só queria isso, um corpo para se abrigar. Então me lembrei do mestre e corri na ultima direção em que o vi para socorrê-lo antes que fosse tarde e o perdesse também. Felizmente, o encontrei apenas inconsciente e com alguns ferimentos.

— Precisamos cuidar dele — falei para Carlyne, que me seguiu curiosa. Mas hesitei também porque aquilo iria me obrigar a ficar ali sem poder investigar aonde o feiticeiro negro foi com Fiel.

— Eu vou atrás de Okumanuai. Não ficarei. — condisse Carlyne.

— Okuma... o quê?

— Okumanuai é o nome do feiticeiro. Seus gostos são malignos e seu desejo por poder são quase impiedosos. Vai buscar almas e magia enquanto estiver aqui e quando for invencível formara seu império se não o impedirmos. Eu vou atrás dele. — ela deu um passo, determinada iniciar sua viagem imediatamente.

— Não! Por favor! — desesperei. — Me ajude com Mejen. Eu vou com você atrás desse homem para trazer Fiel de volta para mim. Mas que tudo eu farei isso, mas não posso deixar meu mestre assim.

Apesar da expressão concentrada, ela era no fundo gentil.

— Não posso ajudá-lo. Minhas habilidades são concentradas na luta e proteção contra o mago negro. E se não formos agora, a tempestade que cairá dessas nuvens terríveis nos atrasará até amanhã.

Carlyne havia olhado para o céu então notei como tudo estava escuro, escondendo o por do sol, e por alguma razão aquilo me deixou um pouco mais amargurado. Era estranho demais não ter a companhia de Fiel por perto, não sentir seu olhar de vigia em minhas costas, em menos de alguns minutos eu já sentia falta do que ele podia falar para mim.

— Certo — a mulher me distraiu de pensar na distancia entre nós dois ao surgir perto e me ajudou a apoiar o corpo de Mejen. — Aonde podemos ficar?

— Vamos para a fazenda, não há outro lugar perto.