O Lobo-homem e o Feiticeiro Mestiço

~ Alma quebrada e dragões...~


Quase esquecido nas sombras de outros prédios, o Casarão de Riscket não era um lugar chamativo e existia em uma rua de acesso para outra região mais popular da cidade. Apesar disso, muitos conheciam o nome, pois Riscket foi um louco amante de histórias que ninguém realmente gostaria de saber. Bem, só os sádicos e melancólicos que ficariam felizes em conhecer lendas que não deram certo e fatos macabros. E sua coleção era exibida no casarão. Provavelmente, se alguém soubesse dos detalhes da primeira vez que virei uma criatura meio lobo, iriam contar para Riscket. Meu mestre Mejem comentou que essas histórias ensinavam muito mais que as que deram certo, ensinavam o que não fazer.

Felizmente para alguns, o Riscket original havia falecido há anos e era seu herdeiro que cuidava do lugar junto com sua avó. Já que os cômodos temáticos não eram muito frequentados, a família usou o maior salão do térreo para montar uma cantina. E qual seria o melhor lugar para pessoas suspeitas do que um canto sombrio e mal frequentado da cidade para fofocar sobre coisas que outros diriam que era errado?

As mesas lotavam o espaço iluminado por algumas lamparinas acesas mesmo sendo dia e havia apenas mais dois homens no lugar. Agatha seguiu rápida para o lugar oposto e longe deles. Ela Mejem ocuparam o lado da mesa estreita que ficava no canto das paredes, fiquei sozinho no banco que restou sem nenhuma vista do salão. Queria saber o que aqueles dois haviam descoberto!

Agatha ficou meio encolhida e sem contato visual com ninguém assim que notou que um atendente se aproximava. Perspicaz, Mejem conversou com ele e fez pedidos de comida. Era incrível como ele podia soar como se estivesse em um dia comum. O atendente comentou que era neto de Riscket e tentou nos convencer a conhecer mais do lugar, mas ele tinha uma composição estranha, seus olhos escuros e salientes no rosto geravam um olhar de atenção a tudo, como se estivesse esperando ver algo incomum acontecer bem diante de seu nariz, apesar disso tinha um sorriso largo e carismático.

― Não se preocupem, ― disse ele ao me ver encarar ― quem cozinha é minha avó. É o dom dela.

Forcei um riso:

― Irei apostar que sim.

No momento em que ele se foi, olhei ansiosamente para Agatha, pronto para ouvi-la, porem ela parecia muito rígida e silenciosa.

― O que aconteceu com você? ― Perguntei.

― Eu... encontrei o feiticeiro ― murmurou ela entre alguns tremores. ― Não foi por querer, mas ele preparou uma cena instantaneamente. Acusou-me de amaldiçoada... no meio das pessoas em uma via e incitou-as contra mim... Eu não poderia machucá-las durante um confronto então fugi... Contudo, o Okuma-nuai mand- ― De repente, a mão esquerda de Agatha simplesmente agarrou seu rosto, furiosa e incontrolável. Ela tentou se livrar, mas o braço direito que ela ainda controlava parecia não ter força suficiente. Rapidamente Mejem a ajudou, forçando-o para baixo e o contendo-o sobre a mesa. A movimentação deles fez os dois homens na outra mesa olharam para nós com estranhamento e desconfiados, disfarçamos por uns segundos e eles em pouco tempo viraram o rosto.

― O que foi isso? ― Mejem sussurrou perturbado e arquei sobre a mesa para ficar mais perto e ouvir a conversa muito baixa deles.

― Chegarei nisso logo ― ela suspirou. ― O feiticeiro criou aquelas armaduras vazias e mandou-os me perseguir. Quando sai do meio das pessoas, enfrentei os soldados e me distraí, então o próprio Okuma-nuai apareceu a minha frente, me encurralou contra uma parede e tocou minha alma usando o feitiço profano dele. Ele queria roubar minha alma como fez com todos os outros que tentaram impedi-los e os inocentes, e isso aumentaria a quantidade de mana dele. Ele tinha tanta certeza que seria meu fim que falou algumas coisas que pretende fazer nesse mundo. Mas estava apenas me distraindo, então antes que falasse tudo e pegasse toda minha alma, tentei um encanto reverso. Foi uma luta dolorosa e minha alma se partiu quando quebrei o feitiço... ― Ela suspirou, tremendo um pouco. ― O que aconteceu com o meu braço é um efeito colateral. A dona desse corpo está tendo chances de controlar as coisas novamente, já que a minha força não está completa. Mas não quero que vocês se preocupem com isso, só precisarei de algum tempo para aprender a reagir antes que ela atue.

― Teve algo útil no que o feiticeiro disse? ― Mejem perguntou tão friamente.

― Antes quero ouvir o que vocês descobriram.

Respondi logo:

― Bom, eu o vi em uma procissão. Estava cercado de pessoas ricas, mas ainda com aquela expressão de quem não está onde queria. Aposto que só estava por segundas intenções, talvez conquistar a confiança de alguém importante.

Mejem, ao receber nossos olhares a espera, limpou a garganta e contou:

― Descobri que há o boato de que um homem está atiçando aventureiros para irem em busca de um tesouro que contém muito valor. Ninguém sabe o nome dele, mas a história que espalha fala que quem se interessar devem ir para um lugar chamado Pináculo do Dragão e nas sombras das estalagmites encontrará o que procura. Contudo, absolutamente ninguém voltou e estão dizendo que uma criatura os impede no meio caminho, mas não há quem tenha certeza ou mais detalhes.

― Sim. Isso faz parte do plano do feiticeiro. ― Agatha parecia muito certa disso. ― Ele está apenas sacrificando essas pessoas e disse que o que precisa ficará guardado até que chegue o momento certo. Então nenhuma pessoa ou fronteiras continentais poderá o impedir... Seja o sangue ou as almas, ele já deixou aquele lugar pronto para o ritual que planeja.

― Ah! Oras se não é mesmo um escarrado de porco! Sabia que tinha algo obscuro naquela mente!

Fomos surpreendidos com a voz súbita veio de trás de mim. Olhei rápido para trás e vi apenas uma criança, infelizmente com apenas alguns anos mais nova que eu.

― Não é educado escutar a conversa das pessoas ― disse Mejem que havia se recuperado logo.

― É inevitável se você está na minha casa e o salão está um tédio. Não tenho culpa de ter ouvidos bons. ― Ficamos quietos e o garoto mordeu um pedaço de pão que tinha em mãos, nos olhando atento. ― Mas também tenho informações boas sobre esse sujeito! Desde que ele esteve aqui não gostei dele, pois soube o que ele realmente é!

Ele mordeu o pão novamente, mastigando calmamente, certamente vendo nosso interesse e esperando que alguém reagisse.

― Sabe mesmo? ― Perguntei, suspeitando que ele seria apenas uma criança falando qualquer coisa para se intrometer na conversa e ter atenção.

O menino despenteado sorriu de canto da boca:

― E vocês não?

Na mesa, nós nos entre olhamos, calculando se falávamos e qual era o rumo daquela conversa.

― Bem! ― exclamou o garoto sentando do meu lado, empolgado. ― Aquele homem é o feiticeiro que irritou o deus da morte e vem fazendo isso há muito tempo! Achei alguns pergaminhos dos tempos antigos nas coisas do meu tio que contam sobre alguém que foi abençoado com magia, mas passou a agir contra a humanidade e fugindo de seus inimigos e da justiça. Esse ser um dia desapareceu e quem escreveu esses registros deixou um aviso de que em algum século ele iria reaparecer novamente para escravizar todos que fossem fracos! ― Ele mordeu o pão, falando de boca cheia: ― Porém o ponto importante é que roubar as almas que a morte devia levar e depois se esconder é um delito gigante para quem foi abençoado, além de que deixou o deus cheio de problemas. Por isso, com certeza, ele arrumou um inimigo que não o deixará impune mesmo que passe séculos!

― Então podemos não ser os únicos atrás dele? ― Olhei para Mejem, realmente preocupado de Fiel receber a fúria de um deus, apesar de nenhuma divindade primária ter se manifestado há décadas.

― Desde minha época ― disse Agatha pensativa ― o feiticeiro coleciona almas que podem controlar a magia e já deve possuir algumas centenas. Ele as usa como uma fonte para se manter vivo e para momentos que precisa de muita mana... Mas ao vir para essa época, onde não há pessoas com a benção direta da magia, os feiticeiros que ele encontra são fracos e não lhe servem bem. Então cada coisa grande que ele fazer, perderá mais poder, mas mesmo com suas ações limitadas, a população atual não tem força para lutar contra a dominação dele ou impedir seus planos.

Após um minuto de silencio, Mejem disse:

― É verdadeiro quando dizem que tudo acontece por uma razão... O nosso objetivo mudou. Definitivamente somos os únicos que podem fazer algo antes que ele inicie o que está planejando na montanha do Dragão. Sabemos melhor do que ninguém que os atos dele serão capazes de mudar o nosso mundo se ele tiver sucesso, por isso temos que o impedir como for necessário.

― Mas sem machucar o Fiel! Ele ainda está naquele corpo e vamos trazê-lo de volta!

O velho homem me deu um olhar sério e com algum pesar, optando por ficar em silencio. Quase iniciei uma discussão mental com ele, mas o garoto de repente saltou do banco e saiu correndo com passadas largas e velozes, sumindo por uma porta com barulhos altos. Seu movimento chamou atenção dos outros clientes então nós três ficamos em silencio e dissimulados até que nossos pedidos de comida chegaram e pareciam mesmo apetitosos. Justamente quando minha fome ia ser morta pela minha primeira colherada de comida, o menino voltou com um amontoado de papel amarelado e um velho embrulho de tecido cinza debaixo do braço.

― Coisas como essas que aquele feiticeiro queria quando passou por aqui ― e ele simplesmente bateu as folhas no meio da mesa. ― Ele estava atrás de qualquer coisa e informação. Até obrigou meu primo a falar tudo que sabia com um feitiço, mas ele é bem desleixado e não se importa em saber de tudo que tem nessa casa!

Curioso, enquanto ouvia e deixava a comida de lado, espiei os desenhos nas folhas e as coisas escritas. Mejem logo pegou uma delas com bastante atenção e o garoto estendeu uma página qualquer para Agatha ver também.

― Ei! Nikan! Não os perturbe assim! ― O neto de Riscket gritou bravo, arrumando a mesa dos outros clientes que haviam ido embora, mas o menino não ligou para o velho irmão.

― Mas eles querem saber!

―... “Relíquias de um dragão”? ― Sussurrei lendo enquanto os dois discutiam.

― Sim! ― Falou o menino com o rosto perto de mim. ― Faz parte das lendas sobre o último dragão vivo que morreu em terra. Sabe, no passado, quando os dragões não tinham inimigos e ficavam simplesmente velhos, eles pressentiam a morte e iam para o mar, sem deixar nada de seus corpos para trás. Mas o ultimo dragão não fez isso! Ele enfrentou um exército de um rei e acabou ferido demais, então pousou em uma montanha distante e num local alto, sem conseguir alcançar o mar, e se deixou ali até sua vida se esvair.

― É a montanha do Pináculo do Dragão ― disse Mejem, olhando um mapa encardido e simplório de uma folha.

Nikan assentiu intenso:

― Isso, mas nenhum resto de dragão jamais foi encontrado lá. No entanto, nós temos uma prova de que é tudo verdade! ― O garoto me entregou sem cuidado o embrulho de tecido velho e empoeirado. Ao desenrolar esperei muito que não fosse algum tipo de carne ressecada, esquisita e fedorenta. ― As relíquias são um olho dentro de um cristal tirado por um feiticeiro durante a batalha, um tecido embebido no sangue do animal e ... uma adaga feita de parte do dente do dragão!

O artefato branco, porém, um pouco amarelado pelo tempo, tinha linhas metálicas finas e entrelaçadas e ainda estava bem polido e liso ao toque, tinha um formato triangular e pontiagudo e com uma fenda para colocar os dedos e segurá-lo onde era mais áspero.

― Ela bem que podia ser encantada, mas não achei nada sobre seus efeitos... ― Nikan disse. ― Eu deixo você levá-la para enfrentar o feiticeiro e matá-lo!

Olhei para o garoto de volta, chocado:

― Não posso matá-lo! O corpo que ele está usando é de alguém que quero resgatar!

― Oh, isso complicaria o plano. E o deus da morte não terá consideração por esse detalhe...

Meu mestre feiticeiro soltou um leve riso, o encarei sem entender e só o vi pegando quase todos os papeis e parecer mais interessado no que lia. Agatha também parecia compreender alguma coisa no amontoado de papeis que ele organizava.

― O que está acontecendo? Expliquem ― Segurei firme a folha que estava comigo, quando Mejem tentou tomá-la.

― Nikan estava perto de encontrar uma forma de impedir o feiticeiro Okumanuai! É impressionante, Luahn. E é pouca coisa mais novo que você ― e o homem soltou um risinho novamente.

Grunhi e ele só se voltou a organizar os papeis até começar a explicar as coisas que entendeu.

― Existem partes em branco que precisamos achar soluções antes de agir. Mas... ― ele me olhou sério ― para dar certo, o preço vai ser alto para aquele que fazer o ritual principal para impedir o feiticeiro. Isso será grande e precisaremos de alguém muito determinado, pois vai consumir toda a magia dessa pessoa até chegar à mana vital, que é um dos elementos que nós feiticeiros não podemos substituir. Esse plano anda na margem da morte para ter sucesso.

Passamos o resto do dia no casarão de Riscket, estudando os papeis e pensando em um plano, com Nikan sempre se intrometendo. Acabamos alugando os maus usados quartos para descansar.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.