Londres, dezembro de 1788

— Como foi a reunião com sua Alteza? Rei George esteve disposto a ouvir seus argumentos? – Modred levantou os olhos do livro que lia e olhou para seu primo sentado à sua frente, totalmente relaxado e com jeito de quem pretendia tirar uma boa soneca durante a primeira fase da viagem.

A carruagem que se encontravam era confortável, construída para atender as exigências de uma viagem longa, com acolchoamento, almofadas e encosto elevado de cabeça, suficiente para que ele, com um metro e oitenta e cinco de altura pudesse reclinar com algum conforto e enfrentar os dois dias de viagem entre Londres e Elderwood.

Três guardas armados os escaldavam de volta ao lar, aqueles eram dias perigosos para se viajar sozinho, ainda mais sendo ele um duque com posição elevada dentro do reino.

Londres passava diante do seus olhos, o chão estava duro e congelado, o inverno daquele ano estava sendo rigoroso. Um motivo a mais para ele fugir logo daquela cidade imensa, barulhenta, suja e com um ar poluído. Essa cidade o deixava agoniado, com tanta gente reunida, muitas que não tinham o hábito de tomar banho e com pensamentos mais sujos que as roupas ou a casa que tinham.

Seu primo Leopold Vaughan havia resolvido tirar alguns dias de descanso em Elderwood antes de iniciar uma nova viagem pelo continente a serviço do Rei.

Modred ansiava chegar logo em casa e aos sossegados campos do interior da Inglaterra, para descansar a mente e o corpo. Duas semanas inteiras em Londres a serviço do rei foram suficientes para ele desejar não ter que voltar nunca mais para lá.

— Foi melhor que eu imaginava. Ele ainda insiste que eu fique ao lado dele, mas depois do desastre do baile de ontem, viu que não consigo controlar meus ânimos quando há muita gente por perto. – Modred deu um sorriso debochado, ao expor a ideia que estava o incomodando. - É engraçado o quanto ele confia em mim. Sinto até mau com isto. Caso eu tivesse a pretensão de assumir a coroa, seria perfeito abusar da confiança dele e virar ele contra toda a corte. E ele nem se dá conta disto.

— Ou talvez ele saiba que você é um homem honrado, com um enorme poder e com um juízo suficiente para não agir como um tolo. Duvido que ele manteria você por perto se desconfiasse que haveria tal possibilidade.

— Provavelmente eu estaria morto a esta hora, isto sim. - Apesar de não passar das quatro da tarde, o sol já começava a baixar no horizonte, em breve o frio seria intenso e eles teriam que parar, para preservar seus homens e os cavalos.

— Sentiu isso, Leo? – Um arrepio que não tinha nada a ver com o frio passou por sua espinha. - Olímpia precisa de socorro.

— Senti, vamos voltar para a Toca. – Leo colocou a cabeça pra fora e pediu ao cocheiro para voltar, insistindo que era para ir o mais rápido possível. E apesar do chão congelado e do frio, a parelha de enormes e robustos cavalos se movimentou com graça e agilidade de volta para Londres.

***

Finalmente Maze havia conseguido chegar a casa no subúrbio de Londres que tanto ansiava por encontrar. Em seu íntimo rezava para que ninguém a não ser os empregados estivem por lá, não queria que sua melhor amiga soubesse o que havia lhe acontecido. Chorava, seu corpo todo doía, estava seriamente machucada e se sentia suja. Tremia de frio quando bateu à porta de carvalho, ansiava por um abrigo quando o mordomo abriu a porta da casa.

A noite havia descido muito rápido, a neve caía lentamente sobre a cidade, tornando o frio insuportável dentro daquele vestido imundo, cheio de sangue e rasgado que estava usando quando fugiu do inferno que passou.

— Que diabos aconteceu com você, menina? – Pawl só teve tempo de ampara-la antes dela cair à frente. Com facilidade, ele a tomou nos braços e já estava se dirigindo a ala de empregados, quando Lady Olímpia apareceu à porta do corredor.

— Maze, Maze minha querida! O que houve com você? – Olímpia não podia acreditar no que via. Sua amiga parecia que tinha levado uma surra muito grande. - Leve-a para o quarto de visita Pawl e vá chamar Septimus e doutor Pryne para mim. Vá rápido.

Lady Olímpia estava com os cabelos negros presos com uma fita de cetim, usava um simples vestido azul que realçava seus olhos azuis profundos, trazia o livro que estava lendo quando a amiga havia batido à porta, que foi esquecido assim que viu sua amiga de infância tão machucada como se tivesse sido atropelada por uma carruagem.

— Enid! É Maze, corre, me ajude a cuidar dela. – Olímpia estava agoniada, ver o estado de sua amiga lhe cortava o coração, sentia vontade de pegar quem a tinha machucado e espancar até a morte.

Mesmo sendo uma baronesa, Olímpia fora criada com Enid e Maze, a primeira dois anos mais velha que ela e a segunda dois anos mais nova. Portanto, desde pequena as três eram praticamente inseparáveis.

Órfã de mãe, Maze fora colocada aos cuidados da família de Olímpia, sendo instruída junto com ela, preparada para ser uma dama de companhia capaz de circular no mais alto escalão da sociedade. Ela era uma mulher doce, meiga, de fala mansa e sempre quieta, nunca teria entrado em alguma confusão por escolha. O fato dela estar daquele jeito significava que ela não tinha procurado o problema, mas que o problema tinha chegado até ela. Para Olímpia, Maze era a irmã que ela nunca tivera.

Cerca de seis meses atrás, com má vontade, Olímpia se viu obrigada a aceitar o pedido do tio de Maze, mordomo da família, e deixou a jovem ir trabalhar em uma casa em Londres, com pessoas que ela não tinha muito contatos.

Após tanto tempo sem contato algum, a pobre menina aparecia suja, rasgada, congelada e toda machucada. Ela havia apanhado feio. Seu coração estava em frangalhos!

Com receio do que iria encontrar, Olímpia e Enid tiram o vestido dela com todo cuidado, viram que além do feio hematoma do rosto, seu corpo todo estava roxo, e sua ceroula estava suja de sangue.

Sem fazer nenhuma pergunta a colocaram dentro da banheira e lavaram seus cabelos, tomando cuidado para não causar maiores dores a pobre criatura. Ela não chorava, apenas fitava o nada, com uma apatia absurda, como se sua vida tivesse sido tirada de dentro dela. Olímpia sentia sua fúria aumentando a cada instante, em breve precisaria sentar em algum canto e remoer tudo que havia acontecido com sua amiga. Quando perguntavam algo, ela apenas meneava suavemente a cabeça.

Quando estava vestida e já deitada no quarto de visitas, Septimus e Dr. Pryne entraram e começaram a tratar das feridas e hematomas da jovem. Olímpia rondava o quarto, prestando assistência no que lhe fosse pedido.

— Ela corre o risco de perder os dedos do pé. Como isso aconteceu? – Dr. Pryne estava começando a analisar as feridas dos pés, quando uma gritaria irrompeu na porta da casa, chamando a atenção de Olímpia.

— Fiquem aqui e cuidem dela, vou ver do que se trata.

Saiu correndo e só parou no seu quarto o tempo suficiente para pegar a pistola que deixava ao lado da cama e desceu a escada correndo.

Na porta viu Pawl segurando em um abraço de urso um homem loiro, baixo e meio careca. Os dois estavam embolados de tal forma que seria impossível atirar nele sem acertar em seu mordomo.

- Solte-me! Solte-me seu cão dos infernos! Eu sou um lorde e posso te colocar na cadeia.

— Não pode não! Você não tem o direito de entrar em minha casa assim e se continuar desse jeito vou chamar o pessoal da Bowl Street para vir tirá-lo daqui, mas antes deixarei Pawl te dar uma surra.

— Eu sou um lorde! A senhora é quem?

— Eu sou Lady Wherlocke, a baronesa de Myrtledowns, e esta casa é minha. O senhor a invadiu, está recebendo o tratamento que merece. Agora saia.

— Eu vim atrás daquela cadela imunda que já deve ter inventado todas as mentiras pra vocês, dizendo que eu a deflorei. Quero ela de volta a minha casa agora!

Uma aparente calma invadiu Olímpia, seu sangue fervia e ela tinha vontade de dar um tiro no homem, segurando a pistola fortemente em sua mão, dentro da saia, olhava com nojo e desdém para aquele homem nojento parado a sua frente.

— Se por cadela imunda, você está se referindo a Maze, acho melhor fechar sua boca, pois ela não é uma serviçal nesta casa e se continuar a falar assim irei te dar um tiro. E não pense que eu não o faria, atiro melhor que muitos homens que você conhece.

Ela tirou a pistola de dentro do bolso e mirou entre os olhos do idiota, seus dedos coçavam de vontade de puxar o gatilho. Havia uma voz no fundo da sua mente dizendo que teria sérios problemas se o fizesse, mas mesmo assim sentia vontade de lavar a honra de Maze com o sangue daquele bastardo.

O que a impediu de atirar foi que se errasse poderia acertar seu mordomo e ela não queria machucar o marido de Enid.

— Solte ele, mas lá na rua, não quero este lixo fedorento dentro da minha casa. E se você violou mesmo minha irmã, juro, por tudo que é mais sagrado, vou te dar um tiro bem no meio dessa fuça de porco que você tem. Agora, rua!

Pawl o jogou escada abaixo rolando os degraus da porta de entrada como seu fosse um barril velho.

O criado dele, o ajudou a levantar e com dificuldade ele saiu mancando em direção a carruagem, proferindo ameaças contra todos os parentes de Olímpia. E dizendo que na primeira oportunidade ele iria pegar a saborosa Lady Olímpia também.

— Vou dar um tiro nele, depois resolvo o que contar para a sociedade. – Correu em direção a sacada da casa e já estava mirando no homem quando Paul segurou sua mão e a impediu de atirar.

— Milady contenha-se, por favor! Matar o homem poderá dar um conforto imediato, mas não irá trazer paz pelo resto da vida. A senhora sabe quem é ele?

— Infelizmente sei, é o maldito do Lorde Burton. Não sei como meus parentes suportam trabalhar com ele dentro do governo. – Tentando se acalmar, Olímpia voltou para a sala de visitas e começou a andar de um lado para outro. – Pawl, você devia ter me deixado dar um tiro nele, apenas um...

— Olímpia. - Septimus a chamou da porta, seu olhar estava preocupado. Por um momento ela temeu que o pior houvesse acontecido.

— O que foi, meu querido? – Respirando com muita dificuldade Olímpia conseguiu se acalmou o suficiente para que ele deixasse de olhar como se ela tivesse ficado doida.

— Ela me expulsou do quarto, parecia que estava com medo de mim. Enid está cuidando dela, mas ela pediu pra você ir vê-la. Dr. Pryne também já concluiu o atendimento e gostaria muito de falar com você.

Entrou no quarto e encontrou sua amiga aos prantos, enroscada nos braços de Enid que alisava seus cabelos tentando conforta-la. Olímpia deu um pouco de láudano para a amiga e depois saiu para ouvir o que Dr. Prayne tinha a dizer.

— Ela foi violada, apanhou muito do homem que fez esta maldade com ela. Está bem ferida, mas especialmente na alma. Acredito que será difícil ela superar o que passou nas mãos dele. Pelo visto ela chegou aqui congelando. – Uma lágrima escorreu por seu rosto enquanto servia um pouco de vinho para si e para o bom homem que havia corrido para lá sob uma fina chuva de neve que caía desde o início da noite.

— Sim. – Olímpia sentia ódio e nojo, ainda pensando que deveria ter dado um tiro no ordinário. – O que devo fazer pra ajuda-la, doutor?

— Além das compressas e chás, dê o remédio que deixei ao lado da cama. Apenas uma colher nos dias que estiver mais agitada, pois ela pode ficar viciada no láudano. E recomendo que, se possível a tire da cidade por alguns tempos.

Olímpia apenas assentiu e pediu a Pawl para pagar e levar o médico para casa. E se enroscou em um canto do sofá, deixando que o choro viesse livremente, se sentindo tão machucada quanto a amiga e tão dolorida quanto ela. Era horrível ser forte, o ponto de apoio de todos, pois precisava sempre manter a cabeça no lugar para não cometer nenhuma loucura.

O ordinário que havia machucado Maze, era o chefe imediato de vários parentes seus e qualquer ato contra ele, poderia repercutir diretamente neles e em seu irmão.

Argus! A não! Se ele descobrisse o que havia acontecido com a delicada Maze, isto acabaria muito pior do que um simples tiro no meio da fuça do idiota!

Durante suas amargas infâncias e adolescência sempre fora os dois e Maze, que nunca se cansava de fugir dos criados, da tia Dot ou de outra pessoa qualquer para ir cuidar dele quando ele precisava.

Se havia uma pessoa que sempre tinha sido muito mais do que serviçal ou amiga para Argus, era Maze. Com dor no coração, Olímpia decidiu que não era o momento de contar a verdade para seu irmão. Precisava ver como as coisas iriam se desenrolar para depois contar a verdade a ele. Temia o que ele poderia fazer e não queria que ele revisse os piores momentos que Olímpia tinha vivido, tal como ela estava remoendo naquele momento.

De repente alguém bateu na porta com força, obrigando Olímpia a sair do sofá e secar as lágrimas antes de ir abrir a porta.

Com receio de que fosse novamente Lorde Burton, ela atendeu a porta com a pistola em punho e já pronta para atirar. E quase matou seu primo Leopold do coração.

— Calma Ollie. Somos nós, eu e Modred. – Ouviu Pawl vindo correndo atrás dela e pelo canto do olho viu que o mesmo estava com a espingarda levantada e pronto para atirar.

Apesar de ser alto, forte e musculoso, Leo estava com as mãos levantadas, Modred havia recuado dois degraus na escada, flocos de neve agarravam em seus cabelos pretos e nas roupas que usava.

Pawl os fez entrar, enquanto Olímpia tentava recuperar um pouco de sua calma que havia perdido enroscada no sofá.

— O que aconteceu com vocês para estarem aqui a esta hora da noite?

— Nós que te perguntamos, Olímpia. Estávamos indo para Elderwood quando sentimos que algo estava errado com você. Como se estivesse em perigo.

- Droga, esqueci da empatia entre todos nós. Sentem, por favor. E descansem. Vou preparar um pouco de vinho e alimentos para vocês. - Saiu para a cozinha alisando a saia e respirando fundo, aquela noite seria longa e não era momento de descontar sua dor e raiva em seus amados primos.

Quando chegou na cozinha, Enid a advertiu que Maze iria preferir sigilo sobre toda a confusão e que seria melhor elas também partirem para o campo na manhã seguinte, antes que a Toca ficasse cheia de parentes curiosos e isto poderia machucar ainda mais a mente da amifa.

Concordando com ela, Olímpia contou apenas uma parte da verdade aos primos, os acalmando e deixando claro que ela iria embora para Myrtledowns na manhã seguinte. E que não iria colocar-se em risco.

Tanto Leo quanto Modred sabiam que a prima estava editando a história, que ela escondia algo mais sério e que poderia coloca-la em risco, mas preferiram permanecer calados, sabiam que não era dela esconder da família quaisquer fossem os problemas que tivesse. E se o fazia era porque não dizia diretamente a ela.

— Olímpia se sentimos que algo estava acontecendo a você é sinal de que o perigo ainda não passou.

— Tenho consciência disso, Modred. Amanhã partimos, não ficarei aqui e duvido que o problema irá até nós em Myrtledowns.

— Olha, sinto que você não está contando toda a verdade, mas irei respeitar a sua vontade ou de quem quer que esteja envolvida com ela. Mas se você precisar de ajuda, nos deixe saber, está bem? – Modred falou olhando no fundo dos olhos de Olímpia, sua prima precisava saber que não estava sozinha.

Para surpresa de Olímpia, seu raro dom da visão resolveu aparecer naquele exato momento e ela viu Modred sentado ao lado de Maze e brincando com os ruivos cabelos dela. Não sabia porque, mas sabia que caberia a ela contar a verdade a ele. Olhou para o primo e apenas balançou a cabeça concordando e sentindo que havia um pouco de esperança que sua amiga um dia voltaria a ser feliz.

— Estou mesmo indo embora amanhã cedo e caso seja preciso, irei convocar todos vocês para me defenderem. Mas agora vou pedir a Enid arrumar um quarto para vocês. O cocheiro já está acomodado e os cavalos bem guardados e alimentados também. Todos nós precisamos de um pouco de paz esta noite. - Olímpia sabia que sua noite seria longa, muito longa, mas ainda assim, não seria pior do que os maus momentos que Maze estava passando.